As chacinas policiais como arma política no Rio de Janeiro
Isadora Rupp
25 de maio de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h31)Dados de entidades que pesquisam o tema mostram aumento de operações e mortes a partir da intervenção militar na segurança em 2018. Sob Cláudio Castro, estado teve 165 óbitos em 31 ações
Sepultamento da cabeleireira Gabrielle Ferreira Cunha, morta dentro de casa com bala de alto alcance da operação na Vila Cruzeiro
A segunda operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro aconteceu na Vila Cruzeiro na terça-feira (24) e deixou 23 mortos, equiparando-se à chacina da Vila Operária em Duque de Caxias, em 1998, e ficando atrás apenas do massacre de Jacarezinho, que acabou com 28 mortes em maio de 2021. Chacinas são parte do cotidiano do estado.
Dados da plataforma Fogo Cruzado e do Geni/UFF (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense) mostram que há uma aceleração no número de pessoas mortas em operações.
Neste texto, o Nexo traz dados sobre a letalidade das operações no Rio e traz análise de especialistas em segurança pública sobre o uso da matança policial como arma política.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), completou em maio de 2022 um ano no cargo. Castro assumiu após o impeachment do ex-juiz Wilson Witzel, um outsider que foi eleito em 2018 na onda de extrema direita bolsonarista, e que perpetrou a frase segundo a qual a polícia iria “ mirar na cabecinha ” e atirar em criminosos.
De maio de 2021 a maio de 2022, a gestão de Cláudio Castro, que é pré-candidato à reeleição em outubro, registrou 31 chacinas e 165 mortes em operações policiais, segundo levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado, que monitora violência policial desde 2016, em conjunto com o Geni/UFF.
Em 2019, primeiro ano do mandato de Witzel, houve recorde no número de mortes em chacinas durante operações policiais no Rio de Janeiro desde 2016: 63 chacinas e 234 mortes. Uma chacina se configura como episódio com três mortes ou mais, algo convencionado por instituições e pesquisadores que produzem dados sobre violência policial.
Segundo o Fogo Cruzado, as operações policiais mais letais aconteceram a partir de 2018, ano da intervenção federal militar no Rio, comandada pelo general Walter Braga Netto, ex-ministro de Jair Bolsonaro e provável candidato a vice na chapa reeleitoral do presidente.
As sete maiores chacinas desde julho de 2016, quando o monitoramento começou, ocorreram a partir de 2019, após a posse de Bolsonaro no governo federal e Witzel no governo estadual. A chacina da Vila Operária em Duque de Caxias, em 1998, que deixou 23 mortos, não entra na lista abaixo porque ocorreu antes de o Instituto Fogo Cruzado começar a computar os casos:
A PM diz que realizou a operação porque queria prender em flagrante traficantes que tinham saído da Rocinha, na zona sul, mas uma das equipes à paisana teria sido descoberta e atacada. Um vídeo que circulou na quarta (25) nas redes mostra um policial atirando contra moradores . Um perito diz que a munição, nesse caso, era não letal.
Bolsonaro parabenizou a operação policial na Vila Cruzeiro. Em publicação no Twitter, o presidente escreveu que “20 marginais foram mortos”. Ele lamentou a morte de uma moradora, a cabeleireira Gabrielle Ferreira da Cunha , 41 anos, atingida por uma bala de longo alcance dentro de sua casa, na Chatuba, uma comunidade vizinha.
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pessoas morreram em chacinas e operações policiais em comunidades da região metropolitana do Rio de Janeiro entre 2007 e 2021, segundo relatório do Geni/UFF
Cláudio Castro disse que “quem aponta uma arma contra a polícia está apontando uma arma contra toda sociedade”. O governador afirmou ainda que “essa gente ruim” quer matar o povo fluminense e que não vai “permitir anarquia” no estado. A PM exibiu imagens com armas e drogas apreendidas durante a operação: 13 fuzis, 12 granadas, 4 pistolas e uma quantidade de droga não especificada. Também foram apreendidos 10 carros, dois de luxo, um deles um Porsche que aparece em um clipe de rap.
Ministro do Supremo, Edson Fachin demonstrou “muita preocupação” com o alto índice de letalidade da chacina. Operações policiais em comunidades do Rio estão proibidas pelo tribunal por causa da pandemia de covid-19. Elas só podem ocorrer em casos excepcionais. A PM diz que a decisão do tribunal ajuda traficantes . Fachin, relator da ação que levou à restrição, cobrou investigação do massacre “em todas as circunstâncias”.
O Nexo conversou com os especialistas em segurança pública no Rio de Janeiro sobre as operações policiais no estado. São eles:
Daniel Hirata A mobilização desses símbolos do sofrimento e do ódio associado à ideia de lei e ordem é bastante antiga. Não só no Rio de Janeiro e no Brasil, esse símbolo como dividendo eleitoral é algo bastante comum, e há um debate internacional sobre o que é chamado de populismo penal. Ou seja: você mobiliza menos políticas públicas na área de segurança e mais um sentimento associado à lei e ordem. Claramente isso foi reforçado com o avanço da extrema direita de cunho autoritário no Brasil.
Maria Isabel Couto O Rio de Janeiro é conhecido por casos emblemáticos de chacinas, como da Candelária, Vigário Geral e Acari, nas décadas de 1980 e 1990. Como se as chacinas fossem exceções. Elas são um dado do cotidiano do Rio de Janeiro. Temos uma média de uma chacina por semana no Rio. Esse é um elemento constante e presente. A questão é: como não haviam dados disponíveis para a população que ajudassem a comprovar isso, era fácil que eles passassem como episódios extraordinários, e não um dado da rotina.
Nos últimos anos a gente tem visto uma aceleração do número de mortos em cada episódio. As oito maiores chacinas que ocorreram em ações e operações policiais na região metropolitana do Rio de Janeiro monitoradas por nós aconteceram de 2019 para cá. Desde que o Fogo Cruzado começou a operar, em julho de 2016, foram 238 chacinas. Destas, 112 foram de 2019 para cá. E das oito chacinas com mais vítimas, todas ocorreram de 2019 para cá.
Daniel Hirata O ódio e o medo andam juntos e nunca são bons conselheiros na área de segurança, pois não permitem que a gente diagnostique os problemas, suas causas e efeitos. Se cria uma identidade do “cidadão de bem contra o bandido”. Quando acontece uma chacina como a da Vila Cruzeiro, imediatamente o que é dito é que foram mortos bandidos e suspeitos. Não me compete analisar se houve confronto com as forças sociais, mas claramente a clivagem está colocada.
Maria Isabel Couto A gente vive um cenário no Brasil e no Rio de Janeiro onde a população se sente abandonada. Existe um problema gravíssimo de criminalidade urbana armada, e a população sente essa insegurança e tem medo o tempo inteiro. As autoridades públicas até recentemente detinham os números para tentar explicar o que era essa criminalidade. E esses atores escolheram uma política de enfrentamento armado que alimenta essa violência armada e insegurança. E a forma de prestar contas para a sociedade é fazer ações espetaculares de que essa é uma resposta enérgica para combater o crime.
A população dificilmente tem instrumentos para conseguir contrapor o que o governo do estado está falando. Ela vê essas ações e acredita que algo está sendo feito. O que o governo não mostra é: essas ações do estado acabam alimentando a violência. Em fevereiro de 2022, tivemos uma operação policial que resultou em mortos na mesma Vila Cruzeiro. Três meses depois, ela resolveu alguma coisa? Ela não resolveu nada. E agora temos uma nova que acabou em 25 mortes.
Esse tipo de ação para o transporte, as escolas, o acesso à saúde. Seria muito importante se o governo do estado dissesse: quantas crianças ficaram sem aulas por causa dessa ação? Quantas consultas do SUS deixaram de ser feitas por? Quantas pessoas não tiveram acesso ao transporte público? Qual foi o impacto disso para o desenvolvimento econômico na região e em bairros do entorno, como Penha e Penha Circular?
Essas respostas o governo do estado não dá, e elas precisam ser levadas em consideração em uma política de segurança pública. Que não pode ser só enfrentamento armado com criminosos, mas uma política que traga previsibilidade para a vida das pessoas.
Daniel Hirata O que tem que ser feito, basicamente, é o controle democrático da atividade policial. Que se desdobra em muitas camadas de controle sobre a atividade, como as internas, das corregedorias, e externas, do Ministério Público.
No Rio, temos pesquisas que mostram que em mais de 99% dos casos envolvendo mortes perpetradas pelos agentes de Estado, o próprio Ministério Público pede o arquivamento. Se você não tem nenhuma responsabilização sobre os atos, isso autoriza os policiais a atuarem de forma ilimitada.
O que caracteriza o uso da força em regime democrático é a sua limitação. O uso ilimitado da força é característica de regimes autoritários, onde se dispõe da vida de forma ilimitada. Não é uma questão puramente de segurança pública. Estamos falando da construção democrática do país.
Maria Isabel Couto Muita coisa tem que mudar. Mas a primeira delas é: que o Ministério Público cumpra a sua função. Que é de controle externo das polícias. Se temos hoje em média uma chacina por semana, é porque não há controle externo do que a polícia está fazendo. Sobra impunidade. É muito óbvio que existe um padrão e o Ministério Público deveria cumprir o seu papel de investigar essas mortes. É muito importante que o Ministério Público pare de engavetar essas investigações e exija da Polícia Militar e da Polícia Civil do Rio de Janeiro uma mudança de comportamento para preservar vidas. Esse é o papel constitucional do Ministério Público, e ele não está cumprindo.
NOTA DE ESCLARECIMENTO: As autoridades do Rio chegaram a divulgar que a operação na Vila Cruzeiro havia deixado 26 mortos. O número consolidado, porém, é de 23 vítimas fatais. A informação foi atualizada às 13h52 de 27 de maio de 2022.
ESTAVA ERRADO: A versão original deste texto informava que o massacre de Jacarezinho teve 27 mortos. Na verdade, o número de vítimas foi 28. A informação foi atualizada às 16h20 de 28de maio de 2022.
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