A tentativa de uma juíza de impedir uma criança de abortar
Isadora Rupp
20 de junho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h34)Magistrada catarinense manteve menina de 11 anos em abrigo para impedir que procedimento fosse realizado. Desembargadora ouvida pelo ‘Nexo’ definiu a audiência como ‘tortura’ e disse que decisão ‘infringiu a lei’
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, da 1ª Vara Cível de Tijucas (SC)
Uma menina de 11 anos, vítima de violência sexual, foi impedida de realizar um aborto legal e coagida pelo Judiciário e pelo Ministério Público de Tijucas, cidade no litoral de Santa Catarina, a seguir com a gestação. Com a justificativa de manter a criança longe do convívio com o estuprador, ela foi mantida em um abrigo, e decisões judiciais impediram que ela realizasse o procedimento.
O caso foi revelado pelo jornal The Intercept Brasil e pelo portal Catarinas, que tiveram acesso às imagens da audiência, que estão sob sigilo judicial, e aos despachos da juíza Joana Ribeiro Zimmer, então titular da 1ª vara cível da cidade de Tijucas, em Santa Catarina.Nesta terça-feira (21), depois de um mês no abrigo e em meio à repercussão nacional do caso, a menina foi autorizada a deixar o local e ficar com a mãe, mas a realização do aborto segue incerta.
Neste texto, o Nexo explica o caso e a reação à atuação da juíza, que contrariou o que está no Código Penal brasileiro. Também detalha as situações em que o aborto legal é previsto no Brasil e os entraves ao acesso ao procedimento.
Com 10 anos na época do estupro, a gravidez da criança foi descoberta pela mãe da menina, que estranhou os enjoos e o crescimento da barriga da filha. O estupro foi cometido por um familiar, segundo os documentos obtidos pelo Intercept.
A família buscou o Conselho Tutelar e o hospital de referência em aborto legal no estado, o Hospital Universitário da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que não realizou o procedimento por causa doestágio da gravidez. A menina estava com 22 semanas e 2 dias de gestação, e uma norma interna da instituição limitaria a realização do procedimento ao período de 20 semanas.
O hospital então pediu uma autorização judicial para realizar o aborto, e ocaso chegou à juíza Joana Ribeiro Zimmer. Uma norma técnica do Ministério da Saúde recomenda que o aborto em caso de violência sexual seja realizado entre 20 e 22 semanas de gravidez.
Uma medida protetiva determinou que a criança fosse institucionalizada – ou seja, levada a um abrigo – para não ter contato com o agressor. A mãe da menina argumentou que ela não tinha mais convívio com o abusador e pediu que as duas ficassem juntas, mas a menina passou mais de um mês sozinha na instituição. No dia 12 de maio, o juiz Mônani Menine Pereira, de Florianópolis, autorizou o aborto.
No dia 13 de maio, a decisão de Pereira foi revogada a pedido do Ministério Público de Tijucas, que alegou que as varas da infância e criminal da cidade já acompanhavam o caso. A advogada da família entrou com um requerimento para que ela deixasse o abrigo para realizar o aborto, mas o pedido foi negado. Em 23 de maio, Zimmer chegou a nomear um advogado como “curador do feto” para impedir ainda mais o acesso ao aborto legal.
Nesta terça-feira (21), o Tribunal de Justiça de Santa Catarina confirmou que Zimmer deixou o caso porque, em 17 de junho saiu da comarca em que atuava, em Tijucas. Ela foi promovida e transferida para outra comarca, em Brusque. Ao portal UOL, o Tribunal destacou que a mudança ocorreu antes da repercussão do caso da menina de 11 anos.
Na audiência com a vítima e a responsável legal, a juíza Joana Zimmer usa palavras como “bebezinho”, “nenezinho”, e pergunta se a menina sente a criança mexer na barriga. Questiona se ela tem “interesse” em ficar com o filho e chega a chamar o abusador de “pai do bebê”. A menina responde negativamente; tanto ela quanto a mãe haviam manifestado a decisão pela interrupção da gravidez.
As imagens da audiência estão sob sigilo legal, mas foram enviadas ao Intercept de forma anônima (o jornal publicou o vídeo com alterações nos rostos e vozes da mãe e da filha, para proteger suas identidades).
A promotora do caso, Mirela Dutra Alberton, também intimida a menina durante a audiência. “O bebê tem quase seis meses, ele já é um ser humano. Tu consegue entender isso?”. A menina pouco responde, nem faz perguntas. Zimmer fala para as duas que o pedido de aborto é uma “crueldade imensa”, e que o feto “morreria agonizando”. A mãe intervém: “mais crueldade do que a minha filha está passando, do que eu estou passando, de ver minha filha nessa situação? Eu não sei mais o que fazer”.
Zimmer tenta convencer mãe e filha a seguirem com a gestação e entregarem a criança para adoção. “Temos 30 mil casais que querem esse bebê. O que é uma tristeza para a senhora e sua filha hoje é a felicidade para um casal.”
Laudos médicos e da psicóloga que acompanha a menina violentada mostram que há riscos físicos para prosseguir com a gestação e que a menina tem pouco entendimento sobre o que está acontecendo. A realização de uma cesariana também seria arriscada, para ela e para o feto, que teria poucas chances de sobreviver.
O Judiciário e o Ministério Público de Tijucas, entretanto, desconsideram os documentos médicos. A juíza Joana Zimmer também usa a norma técnica do Ministério da Saúde (da realização no máximo até 22 semanas) para justificar sua decisão. O caráter, porém, é uma recomendação, e não uma determinação. O aborto ainda não foi realizado, segundo o Intercept, e a menina está com 29 semanas de gestação (que leva, normalmente, 40 semanas).
A juíza fala que o aborto neste caso “seria uma autorização para homicídio”. “Passadas as 22 semanas ali seria um homicídio segundo o Código Penal”, disse. A informação é falsa: o código não determina o número de semanas de gestação, e a norma técnica não se sobrepõe à lei.
O país é considerado uma das nações com legislação mais restrita do direito ao aborto. É permitido em três situações, segundo o Código Penal :
Mesmo nessas situações, o acesso ao aborto legal é dificultado no país por motivos como a escassez de locais capacitados a oferecer o procedimento na rede pública e a falta de informação sobre o direito e o serviço.
Nos casos de estupro, não há necessidade de realizar boletim de ocorrência para que o serviço médico realize o procedimento. Mas a portaria 2.561 recomenda que os profissionais do SUS (Sistema Único de Saúde) notifiquem as autoridades policiais se houver indícios ou confirmação de crime de estupro.
Essa portaria é uma das que dificultam o acesso ao procedimento e deixam os profissionais de saúde com receio, disse ao Nexo a desembargadora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias. A especialista, que também é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família, analisou as imagens da audiência para o Intercept, e explicou que a conduta da juíza Joana Zimmer “infringiu a lei penal que autoriza o aborto”. “A juíza decidiu absolutamente contrária às regras e ao bom senso. O melhor interesse era da criança vítima, e não a tentativa de salvar um feto”, afirmou.
A vice-presidente doInstituto Brasileiro de Direito de Família chama atenção para a postura da juíza na audiência. “Ela só chamava de nenê, bebezinho. Um negócio horrível. Foi uma tortura o que fizeram com a mãe e com essa menina. O conservadorismo que está tomando conta do Judiciário é muito nocivo. As convicções pessoais e religiosas não podem prevalecer em um julgamento”, disse Dias ao Nexo .
Na avaliação de Berenice Dias, tentar convencer a vítima para que a gravidez prossiga e o bebê seja encaminhado para a adoção foi atroz. “Ela [juíza] mentiu para a mãe e a criança, colocando como se a adoção fosse algo automático. Não é. A menina e a mãe serão levadas para uma vara da infância e da juventude e serão submetidas novamente a um processo. Vai levar a uma revitimização.”
Berenice Dias crê que o caso em Santa Catarina é algo para ser denunciado “em cortes internacionais”. “Espero que o Conselho Nacional de Justiça dê atenção ao caso”. O CNJ afirmou nesta terça-feira (21) que vai apurar o caso . Conselhos que verificam a conduta da magistratura e do Ministério Público podem responsabilizar juízes e promotores.
O Tribunal de Justiça de Santa Catarina divulgou nota e disse que instaurou “pedido de providências na esfera administrativa para a devida apuração dos fatos”. De acordo com Dias, a punição da juíza vai depender da apuração e da pressão das entidades ligadas ao tema. Com a lei 14.245/2021 , que coíbe e aumenta a pena para vítimas de violência sexual que são constrangidas em processos, todas as partes, inclusive juízes e membros do Ministério Público, podem ser responsabilizados no âmbito civil, administrativo e penal (com reclusão de 1 a 4 anos).
Ao Intercept, a juíza Joana Zimmer afirmou que “não se manifestará sobre trechos da referida audiência, que foram vazados de forma criminosa”. A promotora Mirela Dutra Alberton disse ao jornal que, se houvesse risco à vida da criança, os médicos teriam realizado o procedimento. O Hospital Universitário da UFSC discordou que a sua avaliação médica seria um respaldo ao entendimento do Ministério Público, mas afirmou exigir autorização judicial para realizar o aborto após a 20ª semana de gestação. Segundo informou a instituição ao Intercept, são realizados “inúmeros encaminhamentos ao poder judiciário que, normalmente, defere o pedido com agilidade, compreendendo a complexidade e urgência da situação”.
O sofrimento vivido pela vítima e pela sua mãe em Santa Catarina se assemelha ao de uma menina capixaba de 10 anos em 2020, que engravidou após ser estuprada por um tio.
A então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para que a criança e a família do Espírito Santo desistissem do aborto legal , com pressão sobre os responsáveis e promessas de benfeitorias para o Conselho Tutelar local. A criança foi levada a um hospital em Recife (PE). Com o nome vazado, ativistas antiaborto foram protestar na porta da instituição. Na época, o assunto repercutiu na imprensa europeia, que nomeou a situação como “ fundamentalismo religioso ”.
Jair Bolsonaro e Damares Alves durante cerimônia no Palácio do Planalto em 02.09.2020
A literatura científica sobre o aborto mostra que a criminalização é uma política custosa e ineficiente para conter a procura pelo procedimento. Além de limitar a busca de assistência de saúde adequada por mulheres que precisam recorrer ao aborto, o contexto gera um mercado de clínicas clandestinas e tráfico de medicamentos.
O procedimento é uma pauta cara ao governo federal, que se opõe radicalmente ao direito de abortar. Na quarta-feira (15), a organização Milhas pela Vida protocolou um pedido ao Ministério Público Federal para a retirada de uma cartilha do Ministério da Saúde, direcionada aos profissionais do SUS, que dizia que “ todo aborto é crime ”, uma informação falsa. O documento editado pelo secretário nacional de Atenção Primária, Raphael Câmara, foi retirado do ar.
Segundo pesquisa do Instituto Patrícia Galvão, 74% dos brasileiros acreditam que os casos de aborto previsto em lei no Brasil devem ser mantidos ou ampliados. O levantamento mostra ainda que em 84% dos casos a violência sexual é cometida por alguém que faz parte do círculo social da vítima.
ESTAVA ERRADO: A portaria 2.282/2020 citada na primeira versão deste texto foi revogada e não há obrigatoriedade de o serviço médico comunicar à polícia se houver indícios ou confirmação de crime de estupro. A portaria 2.561 é a que está vigente atualmente. Ela apenas recomenda a c omunicação do fato à autoridade policial responsável. Também diferentemente do que estava escrito, o aborto da menina capixaba de 10 anos foi realizado em Recife (PE), e não em Jacareí (SP). As informações foram corrigidas às 16h do dia 22 de junho.
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