Como o Brics se reposiciona com a guerra na Ucrânia
João Paulo Charleaux
23 de junho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h34)Em 14ª cúpula do grupo, Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul alinham discurso para se contrapor a ações de europeus e americanos diante do conflito
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Presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante a 14ª cúpula do Brics, realizada de forma virtual
Os líderes dos países-membros do Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – realizaram nesta quinta-feira (23) sua 14ª reunião de cúpula . O encontro foi marcado pela ambição de maior protagonismo desses cinco governos em contraposição aos EUA e às potências europeias – uma retomada da retórica que motivou a própria criação do grupo, em 2009.
O líder chinês, Xi Jinping, ciceroneou o encontro, realizado de forma virtual. Esta foi a primeira vez que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, participou de uma cúpula de grande envergadura desde o início da guerra na Ucrânia, em 24 de fevereiro. Indianos, chineses e sul-africanos não aderiram às sanções impostas a Moscou por causa da guerra, enquanto o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, visitou Putin oito dias antes do início da invasão da Ucrânia e disse, na ocasião, que o Brasil era “ solidário à Rússia ”.
Neste texto, o Nexo mostra o alinhamento de discurso entre os líderes dos cinco países do Brics. O texto também contextualiza a 14ª cúpula em relação aos efeitos da guerra na Ucrânia.
O nome Brics é um acrônimo formado pelas iniciais de seus países-membros: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e se refere a um conceito mais amplo, criado por pessoas do mercado financeiro antes mesmo da formação oficial do bloco. O responsável pela criação do nome Bric (sem a África do Sul), em 2001, é Jim O’Neil, então economista-chefe do banco Goldman Sachs, que, anos depois, se tornaria ministro do Tesouro do Reino Unido, cargo que deixou em 2016.
Seus membros têm em comum o fato de serem potências em diferentes escalas: China e Rússia, potências globais. África do Sul, Índia e Brasil, potências regionais; todos com grandes populações, grandes territórios e grande potencial econômico a ser desenvolvido.
Em cúpula na Rússia, Putin espera convidados ao lado de letreiro do Brics
A África do Sul só foi admitida em 2011. Em 2018, a Turquia pediu para entrar, mas o processo não foi adiante. O mesmo ocorreu com Egito, Indonésia e Argentina. O grupo tem mais de 20 países observadores, mas funciona em torno de seus cinco membros plenos.
Do ponto de vista prático, o bloco dispõe de um banco que pretende reunir US$ 200 bilhões em fundos para financiar obras de infraestrutura e desenvolvimento ou socorrer membros que estejam em dificuldade financeira. Mas o fim do ciclo das commodities, primeiro – que teve um boom em 2000, mas foi decaindo a partir de 2010 –, e a covid-19, a partir de dezembro de 2019, golpearam essas pretensões.
Do ponto de vista conceitual, seus membros defendem o deslocamento do eixo de tomada de decisões no mundo, propondo uma nova divisão do poder que hoje está concentrado nas mãos de europeus e americanos. Esse é um argumento que divide o mundo em norte-sul, considerando os países do norte do globo, mais ricos e mais influentes, como menos propensos a dividir espaço com essas potências emergentes do sul.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro, fez com que europeus e americanos impusessem 6.350 sanções a empresas, pessoas e órgãos governamentais russos. A guerra em si, assim como essa política de sanções, afetou a exportação de grãos, de petróleo e de gás natural da Rússia e da Ucrânia, fazendo os preços subirem em escala mundial e trazendo risco de fome e desabastecimento sobretudo para os países em desenvolvimento.
Os membros dos Brics são mais afetados por essas medidas disruptivas do que os EUA e os países europeus. Os continentes africano e asiático têm grande dependência dos cereais que são produzidos por ucranianos e russos, que respondem juntos por 30% de todo trigo e 18% de todo o milho consumido no mundo.
Putin disse que está redirecionando as exportações russas de petróleo para China e Índia, dois de seus parceiros no Brics. Desde o início da guerra na Ucrânia, a Arábia Saudita deixou de ser a principal fornecedora do petróleo consumido pelos chineses, e esse lugar passou a ser ocupado pela Rússia, que incrementou em 55% suas exportações para Pequim nesse setor.
A importância da Rússia para o suprimento de gás, petróleo e grãos é uma das razões pelas quais os governos dos países-membros do Brics têm uma postura cautelosa em relação à condenação da Rússia no conflito. A outra é a ideia de que, mais uma vez, as potências do norte do globo tomam sozinhas decisões que têm impacto sobre todos os demais países do mundo, sem contrapeso possível.
“A Europa tem de abandonar a mentalidade de que os problemas da Europa são os problemas do mundo”, disse com exasperação o ministro das Relações Exteriores da Índia, S Jaishankar, em 5 de junho, durante uma conferência na Europa, na qual ele foi questionado por um participante sobre onde a Índia se encaixa em relação à guerra na Ucrânia, tendo em vista a existência de dois eixos opostos: um formado por americanos e europeus, e outro que seria formado por países como os que formam o Brics, mais simpáticos a Moscou.
“Essa é uma construção que você está tentando me impor, e eu não a aceito. Eu sou um quinto da população do mundo. Eu sou hoje a quinta ou sexta economia. Nem vou falar de história, civilização. Eu penso que tenho direito à minha própria visão, tenho direito de pesar o meu próprio interesse”, disse Jaishankar na ocasião.
Nesta quinta-feira (23), ao falar na cúpula dos Brics, o anfitrião do encontro virtual, o líder chinês Xi Jinping, disse que “países acabarão em dificuldades se depositarem fé cega na expansão de alianças militares e na busca de sua própria segurança às custas dos outros”, num recado à Europa, aos EUA e à aliança militar ocidental, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Em sua fala na 14ª cúpula do Brics, Bolsonaro não se referiu à guerra na Ucrânia, nem às sanções e embargos decorrentes dela. O presidente brasileiro defendeu que as potências emergentes tenham a “ devida e merecida representação ” em instâncias como o Conselho de Segurança da ONU, o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial – um argumento que pode ser encontrado também na política externa que pautou os oito anos de mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
China, Índia e África do Sul se abstiveram na votação da Assembleia-Geral das Nações Unidas que, no dia 2 de março, condenou a Rússia pela invasão da Ucrânia. O Brasil votou a favor, mas o embaixador do Brasil na ONU, Ronaldo Costa Filho, disse na ocasião que a aplicação de sanções a Moscou não levaria à reconstrução do diálogo.
Os cinco membros dos Brics não deram apoio total à Rússia, mas a posição de indianos, chineses e sul-africanos destoou dos outros 141 países que optaram por condenar diretamente Moscou pela agressão aos ucranianos.
“No contexto da invasão da Ucrânia, o Brics ganhou um novo sopro de relevância geopolítica, sobretudo para a Rússia, que necessita romper com seu isolamento internacional”, diz ao Nexo Laura Waisbich, doutora em relações internacionais pela Universidade de Cambridge, que se dedica à pesquisa das relações sul-sul, incluindo o Brics.
De acordo com ela, “as razões pelas quais os países do bloco não condenam Putin com veemência são distintas: vão de uma tradicional crítica ao Ocidente até o imperativo de manter autonomia nas relações internacionais, passando até mesmo pelo simples apreço pelo líder russo”. Para a especialista, independentemente dos motivos, quem mais se beneficia com o cenário é a Rússia.
Waisbich diz ainda que participar do Brics “não pressupõe alinhamento total ou automático entre membros do grupo, sobretudo em pautas bilaterais e de segurança internacional, o que vale tanto para os debates acerca de uma reforma do Conselho de Segurança na ONU, que é uma pauta cara ao Brasil e à Índia, quanto para para as sanções econômicas e guerra da Ucrânia, que têm maior peso para China e Rússia”.
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