Os problemas legais do estado de emergência à beira da eleição
Marcelo Roubicek
01 de julho de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)Manobra garante recursos para o governo Bolsonaro driblar leis eleitorais e fiscais a três meses da votação de outubro. O ‘Nexo’ ouviu a procuradora e professora Élida Graziane sobre a medida
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Jair Bolsonaro participa de cerimônia em Brasília
O Senado aprovou na quinta-feira (30) a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do “ pacote de bondades ” do governo de Jair Bolsonaro. O texto inclui medidas sociais como expansão do Auxílio Brasil e criação de um “voucher caminhoneiro” de R$ 1.000 por mês – as políticas são válidas somente até o fim de 2022, ano eleitoral. A proposta segue agora para análise da Câmara.
A PEC também prevê a declaração de estado de emergência, o que permite que o governo drible regras fiscais e eleitorais nos meses que antecedem o pleito de outubro de 2022. Bolsonaro está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Neste texto, o Nexo explica o que é o estado de emergência, por que ele é central nos planos eleitorais de Bolsonaro e ouve uma especialista sobre os problemas da medida.
O QUE É
O estado de emergência ocorre quando há entendimento de que danos à saúde e aos serviços públicos são iminentes – ou seja, quando esses danos estão muito próximos de se concretizar.
A RELAÇÃO COM CALAMIDADE
O estado de emergência costuma ser associado também à expressão calamidade pública. Ambas estão relacionadas, mas não significam exatamente a mesma coisa em termos legais. A calamidade pública é justamente o passo seguinte à emergência: ocorre quando a situação de prejuízo já estiver instalada. A calamidade foi acionada em 2020, primeiro ano da pandemia de covid-19.
QUAL A JUSTIFICATIVA
A justificativa oficial dada para a decretação do estado de emergência é “a elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados e dos impactos sociais deles decorrentes”. O preço dos combustíveis é o principal motor da inflação alta no Brasil em 2022. Eles estão pressionados pela alta global do petróleo no contexto da guerra na Ucrânia. A Petrobras mantém a política de repassar os movimentos internacionais do barril aos preços praticados nas refinarias.
QUAL O CONTEXTO
O Brasil vive uma grave crise social. Para além da inflação alta protagonizada pelos combustíveis, o momento também é marcado pela renda em baixa e pela fome em alta . O estado de emergência é articulado por governo e Congresso a três meses da eleição. O presidente Jair Bolsonaro está em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás do ex-presidente Lula.
A palavra-chave da justificativa dada para o estado de emergência é “imprevisível”. Isso porque a imprevisibilidade e urgência são as exigências, por lei , para que o governo possa abrir créditos extraordinários – modalidade de financiamento do governo para casos excepcionais.
O pacote de bondades será bancado justamente com dinheiro aberto por créditos extraordinários. E os créditos extraordinários não entram na conta do teto de gastos , a regra que limita as despesas do governo a um nível pré-determinado. Portanto, o estado de emergência permite que o governo drible o teto, bancando uma expansão de gastos sem precisar respeitar a regra fiscal.
R$ 41,25 bilhões
é o gasto total estimado com as medidas do pacote
O texto da PEC limita a abertura de créditos extraordinários às despesas previstas no pacote. Isso faz com que o estado de emergência acabe tendo efeitos um pouco mais brandos que a calamidade, disse ao Nexo Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora do curso de administração pública da FGV-EAESP (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas). Isso porque reconhece um prejuízo parcial (e não total) à capacidade do governo de responder à situação. “Se fosse uma calamidade, a gente não teria limite para os créditos extraordinários”, afirmou.
Além da questão fiscal, o estado de emergência permite que o governo drible a lei eleitoral brasileira, que tem mecanismos para tentar evitar que medidas eleitoreiras sejam tomadas. A legislação que estabelece as regras para as eleições diz:
“No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”.
Ou seja, a emergência libera o governo para criar benefícios (como o voucher a caminhoneiros) e ampliar gastos sociais em ano eleitoral. O texto recebeu diferentes apelidos, como “ PEC Kamikaze ”, por seu alto impacto fiscal (o apelido foi dado por membros da equipe econômica em fevereiro, durante as discussões das primeiras versões do texto); e “PEC do desespero” (atribuído por técnicos do governo e pela oposição ) por suas intenções políticas.
Élida Graziane disse ao Nexo que a justificativa dada para o estado de emergência – “a elevação extraordinária e imprevisível dos preços do petróleo, combustíveis e seus derivados” – não se sustenta.
“A guerra na Ucrânia já tem quatro meses. Fazer uma PEC como essa na iminência do processo eleitoral revela muito mais um abuso de poder”, afirmou. De acordo com a professora da FGV, a decisão “esvazia a semântica das palavras: é esvaziar o sentido do que é previsível ou imprevisível, urgente ou não-urgente”. Por isso, ela disse que se trata de uma emergência fabricada.
“A crise é tão fabricada, que o governo já trocou inúmeras vezes os presidentes da Petrobras, tem debatido a própria política de paridade de preço de importação, poderia ter tributado o lucro extraordinário que a Petrobras teve. E não fez nada ”, disse Graziane. “Os fatos não corroboram a tese que justifica a situação de emergência. O contexto não dá suporte à emergência alegada”.
Embora entenda que a manobra é ilegal e abusiva, a professora não vê probabilidade de uma contestação do estado de emergência. Um dos motivos para isso é o fato de que disputas ligadas a emendas constitucionais são de competência do Supremo Tribunal Federal – órgão que está sob enfrentamento de Bolsonaro e é alvo frequente de ameaças do presidente.
“Em situações normais, [a emergência] seria declarada inconstitucional pelo Supremo. O problema é que se criou um jogo de xadrez em que politicamente é muito difícil que ele consiga fazê-lo”, disse Graziane.
Sessão plenária do Supremo em 31 de março de 2022
“Se o Supremo barrar – com tanta gente passando fome, e com um apoio tão expressivo do Senado (e certamente da Câmara dos Deputados) –, vai dar o pretexto que o presidente quer para impor um estado de defesa ou uma situação pior, como a suspensão das eleições. Gerando uma comoção e uma situação de risco muito grande para a própria democracia”, afirmou.
Não é a primeira vez que o governo de Jair Bolsonaro articula dribles no teto de gastos. Desde sua implementação em 2016, o teto passou por algumas mudanças.
Uma delas ocorreu em 2019, quando o Congresso excluiu do teto os repasses feitos pela União aos estados e municípios pela exploração de petróleo.
Em 2020, a chegada da pandemia levou o Congresso a aprovar o orçamento de guerra e a calamidade pública , medidas que retiraram as amarras fiscais do governo para permitir ação contra a crise sanitária e econômica. Na prática, o governo ganhou permissão para não cumprir o teto de gastos naquele ano.
A calamidade pública foi encerrada em 31 de dezembro de 2020, e o teto voltou a valer nos mesmos moldes anteriores à pandemia. Mas outro drible veio em março de 2021, quando o governo aprovou a PEC Emergencial, que autorizava R$ 44 bilhões por fora do teto. A medida liberava os recursos para bancar o novo auxílio emergencial, após o hiato de três meses sem a principal política de apoio financeiro à população na crise. Além disso, a PEC alterou os critérios para o acionamento dos chamados gatilhos do teto.
Pouco tempo depois, em abril de 2021, governo e Congresso entraram em um acordo para passar as despesas ligadas à pandemia por fora do teto – isso incluía gastos com saúde, com políticas de apoio a empresas e eventuais extensões do auxílio emergencial.
Jair Bolsonaro (à esq.) e Paulo Guedes em pronunciamento à imprensa
No final de 2021, o governo articulou também outra mudança no teto, valendo a partir de 2022. O cálculo do limite de gastos foi alterado – a mudança foi aprovada como parte da PEC dos Precatórios . A manobra foi articulada pelo presidente Jair Bolsonaro para comportar mais gastos – na ordem de R$ 100 bilhões – no ano de sua tentativa de reeleição. Diferentemente das mudanças feitas para comportar mais gastos no início da pandemia, a manobra do final de 2021 foi mal recebida por agentes de mercado e considerada, na prática, um furo no teto.
O estado de emergência, portanto, significa que o teto de gastos deixará de ser respeitado mais uma vez em 2022. Em dezembro de 2021, pouco após a aprovação da PEC dos Precatórios, economistas já haviam dito ao Nexo que a credibilidade do teto havia sido esvaziada pela manobra. Ou seja, a regra ficaria sujeita a novas alterações e dribles, perdendo sua efetividade – conforme acontece em 2022. Os economistas também afirmaram que uma revisão das regras fiscais deve ser tema importante do primeiro ano do próximo mandato presidencial, que se inicia em 2023.
Para Graziane, o governo repete no pacote de bondades o argumento usado em outras ocasiões para driblar as regras fiscais.
“Esta PEC repete esse discurso de uma extrema urgência para enfrentar a fome, quando na verdade a gente não consegue planejar a resposta necessária para enfrentar a explosão da desigualdade”, diz a professora da FGV. Segundo ela, o governo perdeu a chance de rever as regras fiscais para adequá-las ao contexto brasileiro da pandemia e do pós-pandemia.
Na visão da procuradora, os sucessivos “puxadinhos” temporários também ajudam a explicar por que o estado de emergência em 2022 é não só ilegal, como ilegítimo. “Legítimo seria a gente planejar políticas públicas que não durassem só até o processo eleitoral. O que acontece em 1° de janeiro de 2023? Você tira todo esse suporte aos mais pobres”, disse.
“O fato de ser estritamente transitório indica a insuficiência e a inépcia da resposta. É apenas a migalha eleitoral para tentar reverter [a situação] no curto prazo eleitoral do governo da ocasião”.
Um efeito da manobra da PEC é o aumento da percepção de risco fiscal por parte dos agentes de mercado. Um reflexo disso foi o fato de que o dólar operou em alta na manhã de sexta-feira (1°), primeira sessão após a aprovação do texto pelo Senado.
O aumento da percepção de risco fiscal vem da ideia de que o governo irá aumentar os gastos de forma significativa, o que levaria a um aumento da dívida pública e aumentaria a possibilidade de o governo não conseguir honrar os compromissos com seus credores.
Se há maior percepção de risco , os agentes de mercado cobram um prêmio cada vez maior para emprestar dinheiro ao poder público – o que acontece via compra de títulos públicos. Isso significa que tende a haver um aumento dos juros.
Há economistas que afirmam também que o aumento do risco fiscal pode alimentar a própria inflação . O entendimento é que, se o risco de colocar dinheiro no Brasil subir, a tendência é que investidores estrangeiros tirem recursos do país – ou então deixem de entrar com dólares.
Homem olha painel na bolsa de valores em São Paulo
Se isso acontecer, haverá uma saída de moeda americana do Brasil, o que significa uma desvalorização do real frente ao dólar. O câmbio mais alto terá reflexo para a população: produtos importados ou bens que são cotados em dólares – como o petróleo e outras commodities – ficarão mais caros, e haverá um impulso de alta de preços no país.
A defesa do teto nunca foi um consenso entre economistas. Nem todos os estudiosos da área concordam que o mecanismo seja positivo para a condução da política econômica. Mas os argumentos contrários ao teto geralmente não propõem um abandono geral de regras fiscais. Muitas vezes a crítica ao teto vem acompanhada de propostas de substituição das regras atuais por desenhos mais flexíveis e que deem mais espaço de manobra para o governo em casos extraordinários.
Além da questão fiscal, Graziane também disse ao Nexo que a PEC do “pacote de bondades” também abre precedentes perigosos para o futuro brasileiro. Inclusive do ponto de vista da democracia.
“Esse estado de emergência às vésperas da eleição efetivamente compromete muito a nossa capacidade de assegurar eleições equilibradas e justas. Tem uma disparidade profunda de armas, além do comprometimento da saúde das contas públicas”, afirmou. “Abre-se um precedente perigoso para todo futuro presidente fazer o mesmo. Basta aprovar no ‘tapetão’ uma alteração na Constituição que suspende as restrições eleitorais e fiscais”.
A professora da FGV ainda disse que “o teto criou um garrote que só acirrou a irracionalidade contra a própria Constituição. E neste momento, essa irracionalidade contra a Constituição pode custar a nossa democracia”.
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