Expresso

O passado, presente e futuro da BR-319 na Amazônia

Marcelo Roubicek

22 de agosto de 2022(atualizado 28/12/2023 às 23h31)

Licenciamento para obras na rodovia avançam em 2022, sob a promessa de ganhos econômicos e integração. Ambientalistas alertam para explosão do desmatamento e riscos sociais

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FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 22.AGO.2019

Vista aéra de trecho de terra batida da BR-319. Ao lado, floresta com alguns pontos de desmatamento.

Trecho de terra batida da BR-319

A BR-319 liga Manaus, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. Mas boa parte da rodovia federal praticamente não é utilizada pela população: ela tem trechos em estado deplorável , nos quais o atolamento é visivelmente inevitável.

Obras para pavimentar mais de 400 km da via receberam sinalização positiva de autoridades ambientais federais no final de julho de 2022 – embora o aval definitivo ainda não tenha sido concedido. Ambientalistas alertam, no entanto, que há riscos de explosão do desmatamento , com efeitos irreversíveis sobre a região. Há também críticas de grupos indígenas, que dizem não ter sido consultados no processo de licenciamento.

Neste texto, o Nexo relembra a história da rodovia federal e explica por que ela é alvo de tanto debate. Também mostra os principais argumentos da discussão.

BR-319

O QUE É

A BR-319 é uma rodovia federal que liga Manaus, no Amazonas, a Porto Velho, em Rondônia. Ela atravessa, portanto, o coração da floresta amazônica. São 885 km de extensão , a maioria no estado do Amazonas. É a única rodovia que liga por terra o Amazonas ao restante do país.

QUAIS OS PRINCIPAIS TRECHOS

Cerca de metade da BR-319 não tem condições de trânsito por seis meses do ano, temporada de chuvas na região. A lama deixa a via impraticável. Os trechos asfaltados se restringem às proximidades das capitais . Há partes em que a estrada de terra batida permite o tráfego. Mas há duas partes importantes onde a rodovia é composta somente de barro, sem condições para passagem: o “Lote C” (ou “Lote Charlie”), de 52 km, e o “trecho do meio” (ou “meião”), de 405 km.

POR QUE GERA DEBATE

A restauração e pavimentação da BR-319 foi, e continua sendo, tema de discussão de diferentes gestões no governo federal em Brasília. Os debates são complexos e envolvem aspectos ambientais, econômicos, fundiários e sociais. Em resumo: críticos apontam grave risco de deterioração da Amazônia – floresta, fauna e povos nativos –, enquanto defensores da pavimentação ressaltam os ganhos econômicos e logísticos que podem decorrer da estrada.

TRAJETO DA BR-319

Mapa mostra a BR-319 entre Manaus e Porto Velho. Trecho do meio tem indicação de falta de asfalto, Lote C de que está em pavimentação.

De projeto da ditadura a imbróglio do século 21

O período da ditadura militar brasileira (1964 a 1985) foi palco de projetos de grande porte na infraestrutura. Na região Norte, a principal talvez tenha sido a Transamazônica (BR-230), rodovia que sintetizou a ideia de “desenvolver” e “integrar” a Amazônia. A estrada foi inaugurada em 1972, mas nunca chegou a ser concluída .

Também em 1972, foram iniciadas as obras para a construção da BR-319 . A abertura do caminho, com derrubamento de floresta, já havia sido conduzida no final dos anos 1960 . A rodovia foi inaugurada em 27 de março de 1976 , com a presença do então presidente, o general Ernesto Geisel.

Nos anos seguintes, a falta de manutenção fez com que o caminho se tornasse intrafegável . O ano geralmente apontado como marco do abandono é 1988, quando a empresa que operava a via suspendeu os serviços .

Diferentes trechos passaram a ser ocupados pela floresta. Em muitos deles, não há vestígios de asfalto – há somente barro.

FOTO: AGENCIA CNT DE NOTICIAS/VIA WIKIMEDIA COMMONS – 25.JUL.2011

Estrada com sol e muita lama. Uma moto se aproxima e tentará passar pelo atoleiro.

Trecho de atoleiro na BR-319

As condições de trafegabilidade da BR-319 voltaram ao debate público em 1996, sob Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002) e ganharam maior espaço em meados dos anos 2000, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010).

Em outubro de 2005, uma decisão da 2ª Vara Federal do Amazonas determinou que a BR-319 precisaria ser reconstruída, e não apenas recuperada. Embora a diferença entre as palavras pareça pequena, isso significou que seria necessário obter licenciamento ambiental para asfaltar a rodovia e torná-la novamente trafegável.

Desde então, a tramitação e discussão em torno do licenciamento ambiental foi marcada por vaivéns burocráticos e políticos, com diversas tentativas frustradas de avançar com o tema. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) reprovou diversos estudos de impacto ambiental. Até 2022.

BR-319 em 2022: estado e futuro da via

O maior passo no processo de licenciamento foi tomado em 29 de julho de 2022, quando o Ibama concedeu licença prévia ao Dnit (Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte) para asfaltar o trecho do meio da BR-319.

Isso não significa que as obras podem começar de imediato. O Dnit ainda precisa comprovar que irá cumprir com as condições colocadas pelo Ibama. Mas especialistas disseram ao jornal Folha de S.Paulo que entendem que a concessão da licença prévia indica alta probabilidade de avanço do processo e de início das obras.

Em 2020, o governo de Jair Bolsonaro já havia publicado um edital para asfaltar o Lote C . As obras nesses 52 km estão em andamento.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS/ 22.08.2019

Madeira cortada da floresta perto da rodovia BR-319 em Realidade, cidade do Amazonas

Madeira cortada da floresta amazônica perto da rodovia BR-319, em Realidade, no Amazonas

Uma reportagem da Folha de S.Paulo publicada em 3 de agosto de 2022 apontou que os planos de obras na BR-319 incluem a regularização de diversas terras de grilagem . A grilagem é o termo usado para referir à invasão de uma área, que é posteriormente reivindicada por meio de documentos falsos.

No caso da BR-319, os indícios são de que a grilagem nos arredores dos trechos da via foi feita em terras da União. Ou seja, no processo, áreas públicas griladas podem ser regularizadas. A Folha também mostrou em 10 de agosto que há risco de que a pavimentação da BR-319 aumente ainda mais a grilagem na região – o alerta chegou a ser feito pelo próprio Ibama em estágios do processo de licenciamento.

Além de terras de grilagem, terras públicas e propriedades privadas regularizadas, a área em torno da BR-319 é rodeada de 28 unidades de conservação ambiental.

As críticas à rodovia

A questão fundiária é apenas um dos aspectos criticados no debate sobre a BR-319. Ela é comumente citada, já que, historicamente, a grilagem traz no seu rastro danos ambientais, atividades extrativistas irregulares, conflitos no campo e doenças.

Mais do que isso, ambientalistas apontam para o risco de que a pavimentação da BR-319 leve à explosão do desmatamento na região – isso já em um contexto de recordes de devastação da floresta. O impacto não deverá se restringir à área ocupada pela estrada.

Um estudo do Climate Policy Initiative da PUC-Rio, apresentado em maio de 2022, mostrou que asfaltar a BR-319 pode ter um impacto sobre um total de 300 mil quilômetros quadrados na floresta, área maior que o estado de São Paulo .

Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em julho de 2022, o biólogo Philip Fearnside – que fez parte do grupo vencedor do Nobel da Paz de 2007, junto ao Painel do Clima da ONU – disse que a abertura da área da rodovia seria catastrófica . Os efeitos seriam de ampliar o alcance do desmatamento, afetando o equilíbrio da região e até mesmo do restante do país.

“Até agora o desmatamento tem se concentrado no chamado ‘arco do desmatamento’, nas partes sul e leste da floresta. A BR-319 liga o arco do desmatamento com Manaus e migra os atores que desmataram tudo [no arco, dando acesso ao centro da floresta]”, disse Fearnside.

FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS – 4.SET.2021

Vista área de um terreno desmatado na floresta amazônica, em Apuí, no Amazonas

Vista área de um terreno desmatado na floresta amazônica, em Apuí, no Amazonas

A principal preocupação de ambientalistas é justamente de que a rodovia ampliará o acesso de agentes do desmatamento ao coração da floresta. E a pavimentação deve ser acompanhada do efeito “espinha de peixe” , com diferentes estradas saindo da rodovia – o que aumentaria ainda mais o alcance da devastação da floresta ligada à BR-319.

Defensores das obras dizem que o efeito será diferente. O governo do estado do Amazonas, por exemplo, argumenta que a pavimentação irá garantir o acesso de agentes de fiscalização , aumentando a proteção da floresta.

Há também preocupação com relação ao impacto do avanço da rodovia para os povos locais da floresta amazônica. Lideranças indígenas da região disseram ao portal G1 e à Folha de S.Paulo que não foram ouvidos no processo de licenciamento – algo que é exigido por lei (embora a lei seja vaga quanto a como essa consulta deve ser feita).

O Observatório da BR-319 – rede formada por grupos da sociedade civil, pesquisadores e associações indígenas – também criticou a licença prévia concedida para as obras na rodovia. “Essa medida, evidentemente eleitoreira, com clara motivação política, ignora etapas importantes do processo de licenciamento, violando direitos dos povos da floresta e comprometendo pilares importantes da democracia”, diz nota emitida pelo Observatório em 1° de agosto de 2022.

Qual a defesa das obras

Do outro lado, os principais argumentos de quem defende as obras na BR-319 são de que a rodovia irá reduzir custos de transporte e integrar comunidades da região.

A via é a única opção de transporte terrestre que liga o Amazonas a outras partes do país. A ideia é que a pavimentação ajude a conectar produtores com outros locais, sejam eles próximos ou longínquos.

Isso reduziria custos de transportes e beneficiaria produtores e moradores da região. O polo industrial de Manaus também poderia ser beneficiado, já que deixaria de ficar dependente de transporte por água e pelo ar.

O ponto de redução de custos de transporte não é consensual. Ao podcast O Assunto, do portal G1, Fearnside questionou a viabilidade econômica do projeto de pavimentação da BR-319 e citou estudos que mostram que não haverá necessariamente queda nos custos.

FOTO: UESLEI MARCELINO/REUTERS – 22.AGO.2019Vista aérea de caminhão passando por estrada de terra rodeada de floresta.

Um estudo publicado pela FGV-Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas) em abril de 2022 mostrou como a falta de asfalto na BR-319 dificulta o acesso de políticas sociais a comunidades locais amazônicas. O acesso a bens e serviços também é limitado. A pesquisa ouviu dezenas de moradores de cidades próximas à via.

Um caso citado frequentemente no debate sobre a rodovia é o da crise de oxigênio de Manaus em janeiro de 2021. O sistema de saúde da capital amazonense entrou em colapso por causa da explosão de casos de covid-19, com registro de falta de cilindros de oxigênio para atender aos hospitalizados.

Um comboio de quatro caminhões foi enviado de Porto Velho a Manaus, carregando mais de 100 mil metros cúbicos de oxigênio . Como o trajeto de balsa foi estimado em seis dias , foi feita a opção de ir pela BR-319.

A previsão original era de que o trajeto demoraria 36 horas, mas levou quatro dias. O atraso aconteceu por causa das condições ruins da rodovia, com inúmeros atoleiros.

Em que contexto esse debate ocorre

O avanço do licenciamento ambiental da BR-319 se insere num contexto de aumento desenfreado do desmatamento da Amazônia – antes mesmo da pavimentação no trecho do meio – no governo de Jair Bolsonaro.

Em seu mandato, o presidente, que tenta a reeleição em outubro de 2022, esvaziou órgãos ambientais, se opôs publicamente à proteção ambiental e reduziu de investimentos em medidas que no passado fizeram o desmate cair. A licença prévia para a obra na BR-319 foi comemorada por Bolsonaro .

O desmatamento, além de ser um dos principais contribuidores do Brasil para a mudança do clima , pode levar a floresta a um “ ponto de não retorno ”, segundo cientistas. Eles afirmam que, com 20% a 25% de desmate, a floresta pode ter perdas irreversíveis. Manter a floresta em pé também é importante para a regulação do clima no resto do país.

FOTO: NACHO DOCE/REUTERS – 11.11.13

Em primeiro plano, toco de árvore cortado. Ao fundo, no lado direito, da foto, policial de costas caminha. O ambiente é de mata

Policial militar anda ao lado de tronco derrubado ilegalmente na Amazônia

Além disso, o ano de 2022 ficou marcado pelo assassinato do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips. O crime aconteceu no Vale do Javari, no Amazonas, em 5 de junho. Três suspeitos chegaram a ser presos e viraram réus – o Ministério Público Federal entende que os assassinatos foram cometidos após Dom fotografar , a pedido de Bruno, um barco suspeito de pesca ilegal.

A região amazônica tem observado uma disparada da criminalidade em anos recentes, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

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