Expresso

O uso da máquina num novo patamar na disputa pelo Planalto

Malu Delgado

08 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h43)

‘Orçamento secreto’, PEC das Bondades e apropriação do bicentenário da Independência compõem medidas para impulsionar a reeleição do presidente. Especialistas falam sobre o que há de inédito em 2022

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FOTO: DIVULGAÇÃO CAMPANHA DO PL/VIA REUTERS

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em Brasília no 7 de setembro de 2022

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro em Brasília no 7 de setembro de 2022

Jair Bolsonaro tomou medidas em 2022 que expandiram os limites de uso da máquina pública numa eleição ao Palácio do Planalto. Para muitos especialistas, tais medidas foram tomadas à revelia da lei.

Os atos políticos do 7 de Setembro, nas comemorações do bicentenário da Independência do Brasil, foram mais um capítulo dos esforços do presidente pela reeleição. Indícios de ilícito serão analisados pela Justiça Eleitoral. Partidos políticos de oposição acusam Bolsonaro de se apropriar de uma celebração cívica para fazer um ato de campanha, o que torna a disputa desigual e configura uso irregular da máquina pública e abuso do poder econômico.

Um dia antes da comemoração de 7 de Setembro, Bolsonaro editou um decreto que permitirá, na prática, que recursos orçamentários para as emendas de relator, do chamado “orçamento secreto”, sejam liberados antes das eleições de 2 de outubro. O “orçamento secreto” tem possibilitado aos parlamentares da base aliada destinar recursos para seus redutos eleitorais sem transparência. Na prática, esse decreto vai permitir que R$ 5,6 bilhões do Orçamento da União de 2022 sejam liberados imediatamente para uso. O decreto presidencial exime a necessidade de se fazer uma apuração bimestral de despesas obrigatórias, o que era praxe.

Outra medida que gerou controvérsia no meio político e jurídico foi a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) apresentada pelo governo e aprovada pelo Congresso em julho que liberou R$ 41,2 bilhões para uso no ano eleitoral fora do teto de gastos, criando novas despesas sob a justificativa de estado de emergência.

Por expandir o gasto público num ano eleitoral, a PEC ganhou vários apelidos, entre eles o de PEC das Bondades . Com a emenda constitucional, o governo elevou o pagamento do Auxílio Brasil, criou o vale-caminhoneiro e o vale-taxista e expandiu o vale-gás. Tais medidas valem a princípio apenas em 2022. A lei eleitoral veda a distribuição de bens, valores e serviços pela administração pública em ano de eleições.

Neste texto o Nexo elenca que limites legais podem ter sido violados por Bolsonaro no bicentenário da Independência e traz comentários de especialistas em direito eleitoral sobre como o comportamento do presidente pode ser questionado. Eles também indicam quais podem ser as consequências de um discurso que Bolsonaro costuma fazer quando se vê prestes a ser contestado: o discurso de que é alvo de perseguição política.

O discurso de Bolsonaro e os sinais de violação

Nos pronunciamentos do 7 de Setembro, que foram apontados por seus adversários como propaganda eleitoral antecipada, Bolsonaro apresentou uma espécie de antídoto em caso de derrota eleitoral ou em relação a possíveis efeitos de investigações que possam ser conduzidas pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral). O presidente tem se apresentado como vítima de perseguição política e contesta as pesquisas de intenção de votos, que colocam o ex-presidente petista Luiz Inácio Lula da Silva à frente e como vencedor do pleito, caso fosse hoje.

É o método semelhante quando questiona a credibilidade das urnas eletrônicas, abrindo espaço para contestar futuramente o resultado da votação. “Nunca vi um mar tão grande aqui, com essas cores verde e amarela. Aqui não tem a mentirosa Datafolha. Aqui é o nosso Datapovo. Aqui, a verdade. Aqui, a vontade de um povo honesto, livre e trabalhador”, afirmou Bolsonaro ao discursar na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, no 7 de Setembro. O presidente usou a alta adesão aos atos, em Brasília e Rio de Janeiro, para contestar os institutos de pesquisa. A coordenação de campanha de Bolsonaro também pretende usar as imagens dos eventos para massificar a ideia de que o presidente conta com amplo apoio popular.

“O discurso de Bolsonaro antecipando cenários e preparando sua defesa para as irregularidades que pretende cometer já é estratégia comum. Bolsonaro há muito tempo critica o Judiciário, se colocando como vítima perseguida, como forma de descredibilizar qualquer ação do Judiciário que vise a coibir as irregularidades que pratica. Não foi diferente com os atos praticados neste 7 de Setembro”, afirmou ao Nexo a advogada Paula Bernardelli, que é da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político e membro da Comissão Permanente de Estudos em Direito Político e Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo.

Segundo a especialista em direito eleitoral, “o 7 de Setembro foi marcado por atos cívicos, organizados, estruturados e coordenados com recursos públicos e em alguns locais também por atos possivelmente organizados e custeados por pessoas jurídicas, com dinheiro privado de empresas”. Nenhum dos dois casos, “nos atos custeados com dinheiro privado e muito menos aqueles organizados com recursos públicos, poderiam virar um ato de campanha”, disse. Empresários e movimentos de direita bancaram várias caravanas a Brasília, Rio e São Paulo para assegurar a presença de multidões nos eventos. Apoiadores de Bolsonaro também arcaram com o frete de ônibus, passagens e alimentação dos manifestantes. Os investimentos privados nos atos políticos do 7 de Setembro devem ser alvo de investigações no TSE.

Bernardelli afirmou que a utilização de tais estruturas num evento cívico com intuito de promover uma candidatura pode configurar abuso de poder político e abuso de poder econômico — condutas que, quando provadas, podem levar à cassação da candidatura. “O uso da estrutura pública para autopromoção pode ser problemático em qualquer período, podendo configurar um mau uso dos recursos públicos e um crime de responsabilidade — condutas que são apuradas fora da esfera eleitoral. Em ano eleitoral, no entanto, isso se torna ainda mais grave, e essas condutas passam a ter impacto eleitoral e, portanto, podem ser analisadas pelo TSE.”

A advogada Marilda Silveira, doutora e mestre em direito administrativo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professora de direito eleitoral e administrativo do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), acredita que houve sim indícios de ilícitos na ação do presidente. Bolsonaro pode ter violado o artigo 73, incisos I e III, da lei 9.504, que estabelece as normas para as eleições). “O uso dos bens (materiais e imateriais) direcionados para um evento público oficial do governo federal acabou transformado em comício na campanha do presidente que concorre à reeleição. Também cabe ao presidente esclarecer a origem dos recursos que financiaram os trios, em si. Esse ilícito tem como consequência a imposição de multa e, em casos muito graves que se somem a um conjunto de ilícitos, pode levar à cassação do registro ou diploma”, afirmou ao Nexo .

Como aplicar a lei eleitoral nesse caso

Na quinta-feira (8), após Bolsonaro ter feito dois discursos no 7 de Setembro, o procurador-geral da República e também procurador-geral eleitoral, Augusto Aras , disse que apenas nos autos haverá manifestação do órgão sobre a atuação do presidente. Segundo ele, a Procuradoria-Geral Eleitoral vai se manifestar apenas caso eventuais representações chegarem a ela por meio do vice-procurador-geral Eleitoral, Paulo Gustavo Gonet. Indicado ao cargo por Bolsonaro, Aras é visto como aliado do presidente.

Além de apurar qual a origem dos recursos que financiaram os atos que se misturaram a uma comemoração cívica tradicional, como disse Marilda Silveira, as diligências conduzidas pela Justiça Eleitoral devem ser criteriosas, segundo a advogada Paula Bernardelli. “A condução das ações que questionem essas condutas deve ser feita de forma técnica, apurando e diligenciando cada elemento da acusação. As ações ajuizadas também devem ter esse cuidado de efetivamente pedir diligências para apurar as fontes de financiamento dos atos, os envolvidos na organização e todos os outros detalhes relevantes para que seja possível analisar de forma técnica a existência ou não de abuso.”

Somente uma conduta técnica e detalhada poderia neutralizar a “armadilha do discurso bolsonarista”, disse a especialista em direito eleitoral. Ela ressaltou a importância de garantir o contraditório o direito à ampla defesa.

A ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge afirmou nesta quinta-feira (8) que é salutar investigar se todos os candidatos concorrem em igualdade de condições. Durante todo o processo eleitoral até a data de diplomação do candidato cabe investigação, segundo Dodge. Ela declarou, ainda, que é preciso verificar até onde houve uma parada cívico-militar e até onde houve um comício eleitoral, checando, inclusive, os financiamentos dos eventos.

O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior disse no mesmo dia que houve flagrante abuso do poder político por parte do presidente Bolsonaro. Diante das evidências apontadas por especialistas, caberá ao TSE conduzir as apurações.

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