O que Godard inventou que mudou a forma de fazer e ver cinema
Cesar Gaglioni
13 de setembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h41)O ‘Nexo’ conversou com um crítico e um professor sobre o cineasta franco-suíço morto aos 91 anos
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O cineasta Jean-Luc Godard
O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard morreu nesta terça-feira (13) aos 91 anos. Segundo familiares, a morte ocorreu de “maneira tranquila” após um suicídio assistido – quando o indivíduo encerra a própria vida com acompanhamento médico e psicológico. Godard morava na Suíça, onde o procedimento é legalizado.
Godard foi um dos cineastas mais influentes do século 20. Ícone da nouvelle vague, movimento francês que ganhou o mundo nos anos 1960, sua produção subverteu padrões estabelecidos e criou novas formas de provocar reflexões a partir de imagens.
Neste texto, o Nexo conversa com um crítico e um professor de história do cinema para explicar a trajetória e o legado de Godard.
Godard começou a carreira como cineasta ainda nos anos 1950, com curtas-metragens e outras incursões experimentais. Também teve uma formação teórica robusta, como parte da equipe da revista Cahiers du Cinéma , referência da crítica. Faziam-lhe companhia na redação nomes que viriam a ser grandes realizadores do cinema francês, como François Truffaut, Éric Rohmer e Claude Chabrol.
A geração constituiu o movimento da nouvelle vague, vanguarda que marcou o cinema francês e mundial. E aquela que foi apontada como a sua maior obra foi justamente o primeiro filme de Godard: “Acossado”, de 1960, que usa uma trama policial para subverter a narrativa cinematográfica e as formas de Hollywood.
O SURGIMENTO
Além de “Acossado”, “Uma mulher é uma mulher” (1961), “O desprezo” (1963) e “Alphaville” (1965) são considerados alguns dos filmes mais importantes da nouvelle vague. Em produções de baixo custo, Godard apostava em obras mais contemplativas, lentas e em recursos estéticos e formais opostos ao cinema comercial da época.
A POLITIZAÇÃO
Na segunda metade da década de 1960, Godard passou a simpatizar com o marxismo e politizou seu cinema. O filme mais marcante dessa fase é “A chinesa” (1967), uma crítica à militância pequeno-burguesa. A obra foi lançada enquanto fermentava o ambiente contestatório que levaria ao Maio de 68 , série de manifestações que contestaram as estruturas de poder – familiares, geracionais, de gênero, de Estado.
O ENSAIO
A partir dos anos 1970, passou a investir em ensaios cinematográficos, categoria de difícil definição que ganhou notoriedade a partir das incursões de Godard. Nem ficção nem documentário, as obras sobrepunham imagens sem uma narrativa linear, permeada por reflexões filosóficas.
Godard continuou produzindo muito entre os anos 1980 e 2010. Foram mais de 40 longas ao longo de 70 anos de carreira. Seu último filme foi “Imagem e palavra”, lançado em 2018.
“Existiram vários Godard, de acordo com os momentos do mundo e da sociedade, ele soube acompanhar a história”, afirmou ao Nexo Pedro Maciel Guimarães, professor de história e estética do cinema da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). “Ele foi se modificando. O Godard dos anos 1960 é um, dos 1970 é outro, dos 1980 é outro, dos 1990, dos 2000. Ele conseguiu acompanhar a evolução técnica e estilística do mundo, sempre mantendo um ponto de vista crítico em relação às imagens.”
Para o crítico Chico Fireman, as fases de Godard acompanharam não só a história do mundo, mas também a evolução do cineasta enquanto artista.
“As fases do cinema dele derivam disso. O jovem que queria mudar tudo; o revolucionário prático, que fez do cinema uma plataforma política; o cineasta maduro que assumiu essa persona que construiu ao longo das décadas e garantiu sua liberdade para falar sobre absolutamente tudo, inclusive revisionar o próprio cinema”, disse ao Nexo .
O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard
Na visão de Mário Alves Coutinho, doutor em literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais, Godard produziu, ao mesmo tempo, cinema e literatura . “Godard, concretamente, escreveu com a câmera”, afirmou em sua tese de doutorado, defendida e aprovada em 2007.
Guimarães, da Unicamp, ressalta a versatilidade do cineasta. “Ele fez vídeos, instalações, programas de TV, videoclipes. Ele ousou tocar em tipos de imagens que sofrem com uma falta de reputação diante de uma certa elite intelectual – da qual ele faz parte também – e testar até onde podiam ir”, afirma o professor.
“O Godard reinventou a imagem, a montagem, o trabalho do ator, a escrita de roteiros e a própria postura do diretor diante de sua obra. Foram vários campos de inovação, de rebeldia, de reinvenção”
Curiosamente, Godard acabou influenciando diretores que viriam a figurar entre os principais nomes de Hollywood – que representava um estilo de cinema que ele criticava.
“Eu vejo Godard como o grande artista visual do cinema”, disse Scorsese ao site da Criterion em 2014. “Para mim, ‘O desprezo’ é um encontro cinematográfico com a eternidade. Um dos filmes mais arrebatadores já feitos.” Scorsese homenageou o longa em “Cassino” (1995), ao incorporar parte da trilha sonora da produção godardiana no projeto.
“Há muitos artistas que te levam para um outro lugar sensorial”, disse Tarantino ao podcast Narrative Art em 2016. “E Godard é um desses.” Apesar dos elogios, Godard não era fã do americano. “O trabalho dele é nulo”, afirmou em 2005. “Tarantino batizou sua produtora em homenagem a um de meus filmes [Bande à part]. Teria feito melhor se me desse dinheiro.”
Segundo Chico Fireman, o maior legado de Godard é a liberdade autoral que ele conquistou a partir de suas obras.
“Para Godard, fazer cinema sempre foi um ato revolucionário. Seja na experimentação, seja no discurso. Mexer nas bases sempre foi uma intenção. Ele passou a vida toda tentando escapar do pensamento tradicional, das amarras do cinema, inclusive, e isso deu a ele uma liberdade autoral que muitos tentaram e poucos conseguiram. É sua herança maior”
A revolução promovida por Godard no cinema fez com que sua obra fosse considerada hermética e de difícil entendimento para boa parte do público, mais acostumado a narrativas lineares. O franco-suíço, no entanto, é praticamente uma unanimidade entre estudiosos e críticos do cinema.
“Justamente por ser hermético que ele tem uma tendência inicialmente a agradar as pessoas que estão no entorno do cinema”, disse Guimarães. “Ele demanda uma certa atenção, uma reflexão, uma postura intertextual que nem todo espectador tem, de conseguir relacionar uma imagem às outras que vieram diante dela e uma postura política diante das imagens.”
Para Chico Fireman, o projeto de arte como ato revolucionário proposto por Godard é o que torna ele um cineasta mais difícil de ser acessado pelo grande público.
“Por mais reconhecimento que ele tenha recebido, ele nunca estacionou, sempre esteve se reinventando e, sendo assim, por que poupar o espectador? Cada filme do Godard é um convite à revolução. Ele foi uma espécie de eterno cientista do cinema”, diz o crítico.
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