Como a PRF caminhou para a ação política no governo Bolsonaro
Marcelo Roubicek
01 de novembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h49)Blitze nas eleições e bloqueios em rodovias pelo Brasil expõem aparelhamento do órgão de segurança. Autoridades reagem e diretor-geral será investigado criminalmente, segundo jornal
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Agente da Polícia Rodoviária Federal próximo de bloqueio em rodovia em Planaltina, em Goiás
APRF (Polícia Rodoviária Federal) se colocou como protagonista da política nacional entre domingo (30) e terça-feira (1°). Primeiro, por ter feito operações no dia do segundo turno das eleições, levantando suspeitas de tentativa de supressão de votos em regiões em que havia forte apoio a Luiz Inácio Lula da Silva, adversário do presidente Jair Bolsonaro no segundo turno da disputa pelo Palácio do Planalto. Depois, por sua ação no caso das manifestações de bolsonaristas que não aceitaram a derrota para o petista e fecharam rodovias pelo Brasil.
Em ambos casos, foram levantadas suspeitas de ação para favorecer Bolsonaro. Há registros de policiais agindo com passividade e cumplicidade diante dos grupos golpistas. O diretor-geral da PRF,Silvinei Vasques, será investigado criminalmente sob suspeita de prevaricação (retardar ou deixar de cumprir sua função pública). O presidente ainda não havia se manifestado sobre o resultado das urnas até a tarde desta terça-feira (1º) – embora aliados tenham reconhecido publicamente a vitória de Lula.
A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais e sindicatos de agentes do órgão publicaram uma nota dizendo ter “compromisso com o Estado Democrático de Direito” e criticando o silêncio de Bolsonaro . Houve mobilização intensa do Poder Judiciário, de governos estaduais e municipais e de forças de segurança para liberar as estradas.
A suspeita de ligação entre a PRF e o bolsonarismo não é nova. Neste texto, o Nexo mostra como o presidente instrumentalizou a instituição a partir de 2019, e como o órgão concentrou as atenções durante o período eleitoral e pós-eleitoral.
A PRF foi fundada como “Polícia das Estradas” em 1928 , durante o governo do presidente Washington Luís. Alguns historiadores atribuem a ele a frase “governar é abrir estradas”.
Durante décadas, o órgão teve a função equivalente a uma guarda das rodovias. Fazia a vigilância e prendia quem cometesse crimes nas estradas. Na Constituição de 1988, a PRF – já com seu nome atual – ganhou poderes para investigar, de maneira autônoma, as infrações ligadas ao sistema rodoviário brasileiro.
“A Polícia Rodoviária Federal é bastante estratégica na segurança do país”, disse ao Nexo Felipe da Silva Freitas, professor do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa) e pesquisador do Núcleo Justiça Racial e Direito da FGV-SP. “Tem um papel importante não só naquilo que é mais óbvio – a guarda das rodovias –, mas também em ações estratégicas de segurança, como o combate ao tráfico de drogas e sobretudo de armas e munições”.
Uma reportagem publicada pela revista Piauí em agosto de 2022 mostrou como, a partir de 2019, a PRF foi alvo de intenso esforço de aparelhamento pelo governo de Jair Bolsonaro. Foram algumas frentes de atuação.
Jair Bolsonaro fala com jornalistas em Brasília sobre inserções de rádio da campanha
Uma das principais frentes foi o aumento da verba disponível ao órgão. De acordo com a Piauí, a PRF recebeu 54% mais investimentos entre 2019 e 2021, na comparação com os três anos anteriores. O número de agentes aumentou mais de 20% nesse mesmo período. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) chegaram a enviar R$ 3,6 milhões à Polícia Rodoviária via emendas do relator, no chamado orçamento secreto.
Também durante o governo Bolsonaro, conforme revelou a Piauí, a PRF fez investimentos maciços em sistemas de inteligência avançados, para vigilância. O monitoramento não se restringe às estradas , mas ocorre também nas redes sociais.
Outra marca da PRF entre 2019 e 2022 foi o aumento de casos de violência. Isso inclui a multiplicação do número de mortes causadas por policiais rodoviários – foram quatro em 2019 e 38 somente no primeiro semestre de 2022, segundo a Piauí. “Os casos de violência praticados por agentes da PRF nos últimos anos são causa de preocupação”, disse Freitas.
Um caso que ganhou repercussão nacional foi o de Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro de 38 anos, que foi abordado quando andava de moto sem capacete numa rodovia em Umbaúba, Sergipe. Depois de imobilizarem Genivaldo, os policiais rodoviários o prenderam em uma viatura e encheram o carro de spray de pimenta e gás lacrimogêneo , enquanto ele se debatia. Genivaldo morreu sufocado .
Outro caso foi o da chacina de 26 pessoas em 31 de outubro de 2021, em Varginha, Minas Gerais, com participação de agentes da PRF. As vítimas eram suspeitas de planejar um assalto a um banco, nos moldes do chamado “ novo cangaço ”.
Para Freitas, o caso da Polícia Rodoviária Federal se insere num contexto de politização das polícias e forças de segurança pelo governo Bolsonaro. “No caso da PRF em particular, é muito forte a atuação discursiva do presidente, disputando símbolos dessa corporação.”
Durante o mandato, “sempre que o presidente chegava nos lugares, ele visitava postos de fiscalização da PRF e ficava ali na beira da pista, acenando para motoristas”, disse Freitas.
Bolsonaro concede entrevista à beira da rodovia
Em um desses episódios, uma mulher de 40 anos foi detida em novembro de 2021 por ter xingado Bolsonaro na beira da rodovia Dutra, em Resende, no Rio de Janeiro. Segundo o jornal O Tempo, que teve acesso ao documento, o boletim de ocorrência dizia que ela “gritou palavras de calão direcionadas a ele, mais especificamente berrou ‘Bolsonaro filho da p…’, em atitude de tamanho desrespeito”.
Ainda segundo o boletim de ocorrência, a mulher foi abordada pela Polícia Rodoviária Federal “mediante determinação do próprio sr. Presidente”. Ou seja, foi Bolsonaro quem pediu que ela fosse abordada. A mulher foi levada à delegacia da Polícia Federal de Volta Redonda, e liberada após se comprometer a comparecer em juízo. À época, o caso foi considerado autoritário e criticado por especialistas em direito. O episódio também ficou marcado por ter sido estopim de uma fake news segundo a qual Bolsonaro teria sido chamado de “noivinha do Aristides” – o boato foi desmentido pelo Nexo .
Além disso, a PRF também agiu com frequência como aliada de Bolsonaro nas chamadas “motociatas” promovidas pelo presidente. Nessas manifestações, o mandatário raramente usou capacete – infração que foi ignorada inúmeras vezes pelas autoridades.
“Esse uso simbólico da PRF foi muito forte”, disse Freitas. “Esse projeto de transformação da PRF em um instrumento de marketing do presidente da República foi o principal prejuízo da gestão Bolsonaro sobre essa instituição”.
Para além do “marketing” político, Bolsonaro também atuou “na utilização das nomeações do comando da PRF, nas direções e superintendências, de maneira a aumentar o seu poder e fragilizar a instituição”, disse ao Nexo o pesquisador da FGV. O caso mais simbólico é o do diretor-geral do órgão.
Desde abril de 2021, o diretor-geral da PRF é Silvinei Vasques . Ele foi nomeado por Anderson Torres, ministro da Justiça – segundo a Piauí, por indicação de Flávio Bolsonaro.
Vasques tem diversos incidentes no currículo. Em 1997, dois anos depois de entrar na PRF, foi acusado junto a outros 15 agentes de pedir propina a uma empresa de guincho em rodovias em Santa Catarina. Ele chegou a ser investigado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público Federal, mas o crime prescreveu em 2011.
Além disso, ele também foi acusado de agressão contra um frentista , em episódio ocorrido em Goiás, em 2000. Vasques chegou a ser condenado em primeira instância em 2017, mas recorreu . O caso está parado desde 2019 . Em 2006, um processo interno da PRF chegou a pedir a demissão do agora diretor-geral, por causa do caso de agressão.
Silvinei Vasques, da Polícia Rodoviária Federal, participa do programa “A Voz do Brasil”
Vasques é também alvo de oito Processos Administrativos Disciplinares dentro da PRF. Em julho de 2021, o órgão impôs sigilo de 100 anos sobre as ações, após tentativa do portal Metrópoles de obter os documentos via Lei de Acesso à Informação.
No sábado (29), Vasques fez uma publicação em seu Instagram pedindo votos para Bolsonaro , com uma imagem da bandeira do Brasil. A postagem foi apagada no início da tarde do domingo (30).
A informação de que o diretor-geral da PRF será investigado criminalmente por suas ações nas eleições foi revelada pelo jornal O Estado de S.Paulo,. Há suspeita de tentativa de interferência no processo eleitoral.
No domingo (30), dia do segundo turno das eleições, a PRF realizou uma série de operações em diferentes rodovias brasileiras. A maior parte das ações ocorreu no Nordeste, região de maior popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT eleito numa das eleições mais acirradas do Brasil.
Na véspera, essas operações haviam sido proibidas pelo presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), Alexandre de Moraes, por suspeitas de instrumentalização para favorecer o presidente. Mesmo assim, elas foram realizadas.
Carros na frente da sede da Polícia Rodoviária Federal, em Brasília
Vasques foi intimado por Moraes, no início da tarde de domingo, a dar explicações sobre as operações. Em entrevista após o encontro com o diretor-geral da PRF, o presidente do TSE afirmou que mandou parar as operações e ressaltou que ninguém deixou de votar, apenas se atrasou.
No TSE, Vasques disse ao ministro que os policiais fizeram checagens ligadas ao Código de Trânsito, em busca de irregularidades como pneus carecas ou faróis queimados. Segundo Moraes, Vasques informou em depoimento que nenhuma das fiscalizações demorou mais de 15 minutos, e que todos os veículos seguiram caminho.
Uma reportagem da Piauí mostrou um agente da PRF numa mensagem de Whatsapp ironizando a decisão do TSE e comemorando o bloqueio a eleitores de Lula. Na mensagem, ele diz que estava “cumprido o cartão programa”, termo usado para determinações da cúpula da corporação.
A Justiça eleitoral vai investigar a PRF pelas operações. Há suspeita de supressão de voto , justamente pelo fato de que a maior parte das operações ocorreram em regiões de maior popularidade de Lula.
Na noite de domingo (30), caminhoneiros bolsonaristas começaram um movimento de fechamento de estradas pelo Brasil . Os bloqueios foram feitos em protesto contra a vitória de Lula nas eleições presidenciais. O petista venceu com 50,9% dos votos válidos, 2,1 milhões de votos a mais que o incumbente.
Os protestos ocorrem na esteira do silêncio de Bolsonaro sobre o resultado das eleições. Até o início da tarde de terça-feira (1°), o presidente não havia dito nada sobre a derrota nas urnas. Diversos aliados do mandatário, como ministros e parlamentares próximos, reconheceram a vitória de Lula.
Na terça-feira (1°), a Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais e sindicatos de agentes do órgão publicaram uma nota dizendo ter “compromisso com o Estado Democrático de Direito”. A nota também diz que o silêncio do presidente “acaba dificultando a pacificação do país , estimulando uma parte de seus seguidores a adotarem ações de bloqueios nas estradas brasileiras”.
Apoiadores de Bolsonaro bloqueiam estrada com queima de pneus em Várzea Grande, Mato Grosso
Uma das principais vias fechadas por caminhoneiros foi a Presidente Dutra, que liga o Rio de Janeiro a São Paulo. Empresas de ônibus suspenderam viagens entre as duas cidades na segunda-feira (31). Houve registro de agressão e hostilização a pelo menos dois veículos na rodovia.
A PRF disse na segunda-feira (31) que acionou a Advocacia-Geral da União para obter decisões liminares para liberar o trânsito nos locais. O órgão respondeu dizendo que a polícia rodoviária não precisa de autorização para agir.
O Ministério Público Federal enviou um ofício à PRF dando 24 horas para que o órgão informe quais providências estão sendo tomadas para garantir a retomada do fluxo nas estradas .
Apesar dos sinais de coordenação nos bloqueios, o movimento não tem liderança identificada. Associações de caminhoneiros, parlamentares da categoria e líderes de protestos anteriores repudiaram os bloqueios ilegais . Bolsonaristas também se reúnem em centros urbanos, se aglomerando em frente a quartéis em capitais como Brasília, Belo Horizonte e São Paulo. A estrada que dá acesso ao aeroporto internacional de Guarulhos foi travada, e voos chegaram a ser cancelados após passageiros e funcionários não conseguirem chegar ao local. A via foi liberada na terça-feira (1°).
Há vídeos de casos de cumplicidade de policiais rodoviários com manifestantes. Em um caso, um agente diz apoiar o levante e que a “única ordem que nós temos é estar aqui com vocês , só isso”.
Em outro vídeo, um policial diz que não irá multar os caminhoneiros. Ele também afirma que os manifestantes são “nossos patrões, enquanto servidores públicos”.
“Em que pese o exercício do poder de polícia ser da competência de vários dos órgãos públicos envolvidos, como as Polícia Rodoviária Federal e Polícias Militares, o que lhe permitiria o emprego do desforço necessário para a livre circulação de bens e pessoas, é também inegável conforme os vídeos citados, que a PRF não vem realizando sua tarefa constitucional e legal”
Na noite de segunda-feira (31), Alexandre de Moraes mandou a Polícia Rodoviária Federal agir para liberar os mais de 300 pontos de paralisação. O ministro ameaçou prender o diretor do órgão, Silvinei Vasques, em caso de descumprimento. Nas primeiras horas de terça (1°), o plenário do Supremo formou maioria para reforçar a ordem de Moraes.
A Polícia Rodoviária começou a desmobilizar os bloqueios após a decisão. Até a manhã de terça-feira (1°), ainda havia mais de 200 pontos de interdição pelo Brasil. Uma entrevista para jornalistas foi realizada pela PRF, sem a presença de Silvinei Vasques.
“Em momento algum a Polícia Rodoviária Federal foi passiva”
Na manhã de terça-feira (1°), Moraes autorizou que as polícias militares estaduais atuassem para liberar as rodovias, mesmo em vias federais. O ministro também ordenou que os proprietários de caminhões usados nos bloqueios sejam multados em R$ 100 mil por hora.
Freitas, do IDP e da FGV, disse que a atuação entre domingo (30) e terça (1°) mostram o “acirramento da politização da Polícia Rodoviária Federal”.
“Nas últimas 72 horas, passamos por um processo acelerado e radicalizado de uso político da PRF com vistas a intervir na cena eleitoral de forma muito perigosa, abrindo um precedente que deve ser repudiado fortemente”
O professor disse que, mesmo com a ação rápida da Justiça Eleitoral, se criou uma “mácula” – ou seja, uma mancha, uma suspeita – sobre a atuação da instituição em meio ao processo eleitoral. “O efeito dessa mácula se desdobra nas 24 horas posteriores à eleição, quando, em vez de cumprir seu papel de desobstruir as rodovias federais que estão sendo palco de manifestações golpistas, a PRF faz vistas grossas, procrastina para fazer aquilo que é seu papel”, afirmou Freitas.
Por fim, o pesquisador disse que as autoridades – governos estaduais, municípios, Poder Judiciário, Ministério Público, Advocacia-Geral da União – devem exigir da Polícia Rodoviária Federal que cumpra devidamente seu papel nas rodovias federais.
“É preciso que se responsabilize individualmente aqueles que estão permitindo que a situação se agrave. Estou me referindo ao diretor[-geral] da PRF, aos diretores regionais e, em última análise, ao presidente da República, que é o responsável em última instância pelo que está acontecendo”, disse Freitas.
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