Expresso

Como o vaivém de verba da Capes joga incertezas sobre bolsistas

Mariana Vick

08 de dezembro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h52)

Bloqueio de recursos atrasa bolsa de 200 mil mestrandos e doutorandos em universidades públicas. Governo fala em recompor valores para pagamento, que é única fonte de renda para maioria dos pesquisadores

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FOTO: FRÉDÉRIC SOLTAN/GETTY IMAGES – 15.NOV.2015

Estudante na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Estudante na biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo

Estudantes de pós-graduação foram às ruas em diversas cidades nesta quinta-feira (8) para protestar contra os bloqueios mais recentes do governo federal, que suspenderam o pagamentos de bolsas de pesquisa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), agência de fomento ligada ao MEC (Ministério da Educação).

Cerca de 200 mil bolsistas de mestrado e doutorado de universidades públicas deixaram de receber no prazo por causa do corte. Responsáveis pela maior parte da ciência do país, os pesquisadores têm as bolsas como única fonte de renda, e a incerteza quanto ao pagamento causa a eles impactos individuais e profissionais.

Sob pressão, o ministro da Educação anunciou na quinta (8) a liberação de verba para recompor parcialmente o orçamento do MEC, o que deve garantir o pagamento das bolsas de dezembro, com atraso. Neste texto, o Nexo explica o bloqueio de verbas da Capes e do MEC e recupera o histórico do financiamento de pesquisa no Brasil. Mostra também os efeitos dessas medidas para pesquisadores e para a produção científica nacional.

O que aconteceu com as bolsas

Depois de ter cortado e bloqueado recursos do MEC outras vezes em 2022, o governo de Jair Bolsonaro publicou um decreto no fim de novembro, dia de jogo do Brasil contra a Suíça na Copa do Mundo, congelando R$ 366 milhões da pasta, sob a justificativa de respeitar a regra do teto de gastos, que limita as despesas do governo.

O governo voltou atrás no primeiro dia de dezembro e desbloqueou os recursos da pasta, que afetavam universidades e institutos federais. Mais tarde no mesmo dia, porém, tomou uma nova medida, congelando de novo verbas do MEC, mas num valor maior: R$ 1,36 bilhão .

FOTO: ADRIANO MACHADO/REUTERS – 13.MAR.2020

Estudantes na Universidade de Brasília

Estudantes na Universidade de Brasília

Universidades federais que dependem de repasses do MEC suspenderam gastos básicos de manutenção por causa dos cortes feitos pelo governo. Na terça-feira (6), a Capes, também afetada pelo bloqueio, disse que não conseguiria pagar bolsas de pesquisa em dezembro.

O corte, que também afetou bolsas para alunos de graduação, médicos residentes e professores da educação básica beneficiados pela Capes, tornou-se um novo episódio da crise de financiamento que atinge há anos a educação superior e a produção científica no país.

Pesquisadores de mestrado pagos pela Capes recebem em 2022 R$ 1.500, enquanto os de doutorado recebem R$ 2.200. Sem reajustes desde 2013, as bolsas da agência pagam hoje 66% menos do que há quase uma década, quando considerada a inflação do período.

FOTO: LUCAS LANDAU/REUTERS

Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro trabalha no desenvolvimento de um novo teste da covid-19

Pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro trabalha no desenvolvimento de um novo teste da covid-19

Esse cenário se deve a reduções crescentes no orçamento da Capes e de outra agência de fomento, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), vinculado ao Ministério da Ciência, desde 2015. Enquanto, naquele ano, os orçamentos somados das agências foi de R$ 13,4 bilhões, em 2021 foram de R$ 3,6 bilhões.

73,4%

foi quanto os orçamentos caíram de 2015 a 2021

Os cortes começaram no início da crise econômica do governo de Dilma Rousseff e continuaram nas administrações de Michel Temer e Bolsonaro. Além de não terem recebido reajuste, os pós-graduandos enfrentaram nesse período escassez de bolsas e de verbas adicionais para pesquisas.

Com a suspensão do pagamento de dezembro da Capes para os bolsistas — o repasse deveria ter sido depositado até quarta-feira (7) —, entidades estudantis entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal no mesmo dia para exigir que o governo federal libere recursos.

O Supremo ainda não julgou a ação. Em resposta à pressão dada na corte, nas ruas e nas redes sociais, o ministro da Educação, Victor Godoy, anunciou na quinta (8) a liberação de R$ 460 milhões para despesas da pasta — um terço do R$ 1,36 bilhão bloqueado.

Ele prometeu transferir valores para a Capes fazer o pagamento de bolsas de pós-graduação até terça-feira (13). O valor liberado para a agência de fomento é menor do que o citado anteriormente como necessário para fazer os pagamentos, segundo o jornal Folha de S.Paulo, mas a presidente da Capes, Cláudia de Toledo, disse que as 200 mil bolsas serão pagas.

Qual é o impacto financeiro

Cortes, atrasos e incertezas no pagamento de bolsas de mestrado e doutorado, como os registrados neste fim de ano, têm impactos individuais sobre os pesquisadores, principalmente financeiros, pois na maioria dos casos essa é a única fonte de renda dos cientistas.

Para receber bolsa da Capes, um pesquisador precisa, por regra da agência, se dedicar de forma exclusiva à pesquisa — ou seja, não pode ter outro vínculo empregatício. Esse quadro os torna dependentes dos valores repassados pelas agências de fomento.

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo mostra que pesquisadores ficaram sem dinheiro para pagar contas básicas, como aluguel, transporte e alimentação, por causa dos cortes mais recentes. Parte deles se viu obrigada a se endividar para cobrir os custos de vida.

Em 2010, uma portaria conjunta da Capes e do CNPq passou a permitir o vínculo empregatício de bolsistas se a atividade estiver alinhada à sua área de formação e tiver relação com o projeto de pesquisa. O vínculo também precisa ter anuência do orientador. Essa, no entanto, está longe de ser a regra no Brasil.

Estudantes de graduação, que não têm bolsa de pesquisa como mestrandos e doutorandos, mas recebem bolsas e auxílios para permanecer na universidade (e arcar com custos como transporte, livros, moradia próxima à instituição de ensino) também relatam dificuldades quando há cortes.

FOTO: RAHEL PATRASSO/REUTERS/02.03.2020

Atrás de uma porta entreaberta, uma mulher de cabelo azul vestida de jaleco e luvas manuseia equipamentos sentada a uma mesa

Pesquisadora no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo

Estão entre os principais beneficiários desses auxílios estudantes de baixa renda, cuja presença cresceu nas universidades nos últimos anos em função de políticas como a Lei de Cotas, que ampliou o acesso de alunos de escolas públicas, negros e indígenas a cursos de graduação.

Segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) analisados pelos pesquisadores Luiz Augusto Campos e Filipe de Oliveira Peixoto, que escreveram no Nexo Políticas Públicas , de 2001 a 2021 houve intensa diversificação racial e econômica do ensino superior público no Brasil.

Estudantes de ensino superior público por ano conforma "classe" de origem de acordo com PNAD Estudantes de ensino superior público por ano conforme os grupos raciais

O efeito na saúde mental

Outro impacto das incertezas no pagamento das bolsas está na saúde mental dos pesquisadores. Com os cortes mais recentes do MEC e da Capes, estudantes relataram episódios de crise de pânico e ansiedade por não saberem como pagar as contas sem a fonte de renda.

Mesmo para quem tem rede de apoio para se manter nos períodos mais incertos, a suspensão dos pagamentos afeta a autoestima. “Quando eu era pequena me disseram que se eu estudasse seria alguém na vida. Hoje sou cientista e fico triste com tanta humilhação”, escreveu na quarta (7) uma pesquisadora nas redes sociais.

Para estudantes neurodivergentes (que têm alguma configuração neurológica atípica, como pessoas com autismo e TDAH ), a falta de pagamentos pode agravar sintomas que já existem. Em entrevista para o UOL, uma estudante com autismo de grau dois contou que, sem a bolsa, não consegue comprar remédios que a ajudam a lidar com a sobrecarga sensorial do transtorno.

Pesquisa publicada pela revista Nature em 2018 com base em entrevistas com 2.279 estudantes de pós-graduação de mais de 26 países mostrou que na época 39% tinham sintomas de depressão e 41%, de ansiedade, enquanto na população geral esses índices eram de 6%.

Tânia Vicchi Freire de Mello, coordenadora do Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante da Unicamp, falou do impacto do financiamento de pesquisa sobre esse quadro em entrevista em 2020 à revista ComCiência. “Os pesquisadores são cobrados como profissionais, mas são remunerados como estudantes”, disse. Fatores como a rotina exigente de prazos e publicações também afetam a saúde mental no dia a dia.

Os efeitos para a ciência

Fora os impactos pessoais para os cientistas, as incertezas em torno do financiamento da pesquisa afetam a produção científica de todo o país. Cerca de 95% das pesquisas desenvolvidas no Brasil são feitas em universidades públicas que dependem do financiamento de agências de fomento.

60%

de toda a ciência nacional produzida entre 2013 e 2018 veio apenas de 15 universidades públicas estaduais e federais, segundo relatório da empresa Clarivate Analytics de 2019

Pesquisadores afetados pelos cortes recentes relataram ao jornal Folha de S.Paulo que mal têm dinheiro para pagar o transporte para ir ao trabalho ao não receber a bolsa. Apesar disso, os trabalhos, via de regra, não foram paralisados, pois, mesmo sem haver financiamento, os pós-graduandos têm contratos para cumprir, e os prazos de entrega de publicações são os mesmos.

O cenário é diferente para estudantes de graduação, que não têm o mesmo compromisso de entregas que os pesquisadores da pós. Segundo reportagens na imprensa, parte dos alunos tende a abandonar os estudos caso não receba bolsa de permanência da universidade.

FOTO: AMANDA PEROBELLI/REUTERS – 17.03.2020

Numa sala vazia, com mesas e cadeiras, um jovem de roupa verde e máscara de proteção usa um computador

Estudante na Universidade de São Paulo, na capital paulista

Esse quadro pode reduzir o acesso à pesquisa no curto prazo. “Com os cortes, quem poderá fazer pós-graduação no Brasil, sobretudo depois de as universidades públicas terem feito uma política de inclusão social e acesso?”, disse ao Nexo em 2019 Maria Arminda do Nascimento Arruda, professora de sociologia da USP (Universidade de São Paulo).

No longo prazo, os principais problemas da falta de financiamento das universidades públicas e da precarização do trabalho são a elitização desses espaços — pois pessoas que dependem de bolsas não terão incentivos para estudar — e a fuga de cérebros, ou seja, o êxodo de profissionais de alto nível educacional (principalmente pesquisadores profissionais) para o exterior.

“Sem condições para desenvolver suas pesquisas no Brasil, as pessoas vão procurar outros centros para pesquisar, que fornecem melhores condições para tal. […] Os cientistas que devolveriam à sociedade brasileira o investimento feito neles com dinheiro público não farão mais isso”

Maria Arminda do Nascimento Arruda

professora de sociologia da USP, em entrevista ao Nexo em 2019

Faltam estatísticas e dados sistematizados para dimensionar a fuga de cérebros no Brasil. Segundo ranking produzido pela escola de negócios francesa Insead sobre capacidade de retenção de talentos, o Brasil caiu da 45ª para a 70ª posição entre 133 países de 2019 a 2020, indicando que mais trabalhadores qualificados estão indo fazer pesquisa fora do país.

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