Expresso

Como o garimpo foi expulso da terra Yanomami em 1992

Isadora Rupp

24 de janeiro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h28)

Ações do governo à época retiraram cerca de 40 mil pessoas do território indígena. Especialistas dizem ao ‘Nexo’ o que precisa ser feito para desmantelar a atividade ilegal em 2023 

O Nexo depende de você para financiar seu trabalho e seguir produzindo um jornalismo de qualidade, no qual se pode confiar.Conheça nossos planos de assinatura.Junte-se ao Nexo! Seu apoio é fundamental.

Temas

Compartilhe

FOTO: REPRODUÇÃO/WIKIMEDIA COMMONS

Em imagem em preto-e-branco, Collor sorri enquanto parece conversar com três homens indígenas.

O presidente Fernando Collor ao lado de indígenas

O governo federal promete dar fim ao garimpo ilegal na terra Yanomami, atividade apontada como a raiz da crise humanitária que assola os indígenas da região. A ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara disse nesta terça-feira (24) que a Polícia Federal, o Ibama e o Ministério da Defesa irão retirar os garimpeiros do local. São pelo menos 20 mil pessoas .

A situação atual de invasão de garimpeiros no território Yanomami é semelhante à de 1992, quando o governo de Fernando Collor de Mello conseguiu expulsar cerca de 40 mil pessoas que exerciam ilegalmente a atividade no local. Naquele ano, a Terra Indígena Yanomami havia sido demarcada.

Pouco mais de três décadas depois, o território vive novamente uma situação dramática. Neste texto, o Nexo conta como os garimpeiros foram expulsos em 1992, mostra como o problema voltou e elenca o que deve ser feito hoje para acabar com a atividade na região.

A demarcação do território Yanomami

O texto da Constituição de 1988 abriu caminho para a demarcação da terra indígena Yanomami , uma área de 9 milhões de hectares de floresta tropical em parte dos estados do Amazonas e de Roraima e da Venezuela.

Depois de um processo de ocupação iniciado na década de 1940 e intensificado nos anos 1970 pela ditadura militar, o garimpo avançou sobre a região Yanomami. Isso ocorreu após a divulgação do relatório Radam, que falava sobre possíveis recursos minerais na região para extração de ouro.

38 mil

indígenas vivem na Terra Indígena Yanomami, segundo a organização indigenista Survival

Garimpeiros lotaram a região ao longo dos anos 1980, o que gerou uma crise social e sanitária entre os indígenas. A situação foi denunciada internacionalmente e, só depois da promulgação da Constituição, a demarcação e proteção dos Yanomami começou a ser instituída.

O início se deu no governo de José Sarney, com uma proposta que deixaria o território 70% menor do que é hoje. Com a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, o quadro mudou. Collor mostrou vontade política em abraçar a causa indígena, em uma época onde o tema ambiental ganhava espaço no mundo. O então presidente modificou a proposta anterior, revogou decretos do presidente Sarney e, em 1992, homologou o decreto com a administração da terra Yanomami.

A retirada dos garimpeiros

Collor iniciou, com a Polícia Federal e o Exército, a explosão de pistas, literalmente, de pouso clandestinas que possibilitavam a chegada dos garimpeiros – eram comuns os jornais estamparem fotos das operações, com o presidente vestindo o uniforme do Exército, após o local ser destruído com explosivos.

“Mas a estratégia não deu certo, porque as pistas se recompunham rapidamente e os garimpeiros voltavam”, disse ao Nexo o indigenista Sydney Possuelo, que presidia a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na época. O ativista, considerado a maior autoridade em povos indígenas isolados do Brasil, assumiu o órgão e mudou a dinâmica do trabalho de limpeza da área.

O primeiro passo foi o trabalho técnico, que mapeou o número de garimpeiros: de 40 mil a 45 mil, segundo Possuelo, que se acumularam na região Yanomami. “Tinha umas 1.000 balsas, tudo poluído de mercúrio, um processo que estava consolidado há muitos anos”, falou ao Nexo .

Junto com delegados do estado de Roraima, a Funai elaborou um plano que envolvia agentes da Polícia Federal e funcionários do órgão. Como a explosão das pistas havia falhado, o projeto se baseou em cessar o abastecimento de combustível e comida para os garimpeiros. O espaço aéreo da terra Yanomami também foi interditado pela FAB (Força Aérea Brasileira).

Possuelo conta que outra medida articulada foi o controle dos postos de combustível por policiais federais nas cidades próximas da reserva. Em Roraima, ela passa por municípios como Amajari, Alto Alegre, Mucajaí, Iracema e Caracaraí. No Amazonas, São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. “Também conseguimos controlar a compra de alimentos, com a presença de agentes de fiscalização”, falou Possuelo ao Nexo .

FOTO: DIVULGAÇÃO/SURVIVAL

Imagem em preto-e-branco mostra pessoas lado a lado, na rua, com cartazes que pedem, em inglês, o fim da violência contra o povo Yanomami.

Protesto no exterior contra a violência na terra Yanomami

Alguns garimpeiros, sem combustível e sem ter o que comer, acabavam indo até a comunidade de Surucucu, em Roraima, onde ficava uma das bases da Funai. A agência então mandava os garimpeiros para Boa Vista, capital do estado, onde eles eram interrogados. Mas essa foi uma minoria: a maioria foi retirada por operações com o uso de força formada por funcionários da fundação e policiais federais.

Segundo o indigenista, todas as ações eram discutidas em reuniões periódicas com Collor. A Funai, quando desmantelava um garimpo, quebrava todo o equipamento. A fundação também realizou um convênio com a FAB para usar aviões Buffalo para a retirada de garimpeiros nas operações em conjunto com a Polícia Federal – o modelo do avião é eficaz para pouso em pistas curtas.

“Houve tiroteio, agentes da Funai mortos, policiais federais feridos. Mas foi assim que tiramos praticamente todos os garimpeiros. Ficou um resíduo de 1.200, que se espalharam pela selva, e era quase impossível retirá-los, por causa da extensão do território”, disse Possuelo ao Nexo .

O retorno dos garimpeiros

O contexto político de valorização ambiental ao longo dos anos 1990 manteve a região longe da massa de garimpeiros por um tempo, mas, aos poucos, a atividade retornou. Sydney Possuelo fala que é difícil elencar uma causa, mas uma das principais é a retirada dos dispositivos de proteção da área.

Além disso, o perfil do garimpo mudou e ficou mais organizado. “Antes os garimpeiros eram pessoas queriam bamburrar [encontrar uma grande quantidade de ouro e pedras preciosas e enriquecer]. Eram grupos menores, não articulados. Hoje, há empresas de táxi aéreo ligadas com organizações criminosas”, falou Possuelo ao Nexo .

FOTO: AMANDA PEROBELLI /REUTERS

Protesto contra o aumento do garimpo ilegal em frente ao Ministério de Minas e Energia, em Brasília . Placas lado a lado onde se lê "Ouro Ilegal, Crime" estão em frente ao prédio. Nas placas, há tinta vermelha escorrida, que lembra sangue.

Protesto contra o aumento do garimpo ilegal em frente ao Ministério de Minas e Energia, em Brasília

Segundo o professor e pesquisador Aiala Colares, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e da Universidade Estadual do Pará, facções como o PCC e o Comando Vermelho, que antes concentravam suas ações no Sudeste, migraram para o Norte, com interesse no narcogarimpo . “Esse celeiro de atividades ilícitas na região acaba, de certa forma, influenciando as políticas públicas de segurança e ambientais”, disse o pesquisador ao Nexo em entrevista no dia 18 de junho de 2022.

O que fazer em 2023

Segundo o Secretário Especial de Saúde Indígena, Ricardo Weibe Tapeba, a área está tomada pelo garimpo ilegal e as comunidades estão à mercê do crime organizado – a atividade se expandiu nos anos recentes junto ao narcogarimpo . Em entrevista ao Estado de S. Paulo, Weibe contou que nem a FAB (Força Aérea Brasileira) consegue pousar em algumas pistas, que foram tomadas pelos garimpeiros.

FOTO: XXSTRINGERXX/REUTERS

Indígena yanomami em frente a mina ilegal de ouro na floresta Amazônica

Yanomami acompanha agentes do Ibama em uma operação contra mineração ilegal de ouro em terra indígena na Amazônia

A crise que caiu no colo do governo Lula em 2023 foi gestada ao longo dos últimos anos, mas se intensificou na gestão Bolsonaro. Segundo o Instituto Socioambiental, o desmatamento de terras indígenas com a presença de povos isolados aumentou 14% só entre o primeiro e o segundo bimestre, problema diretamente relacionado com o garimpo ilegal.

Em 2018, ainda pré-candidato à Presidência da República, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) disse uma frase que resumiu a política indigenista e ambiental do seu governo, de desassistência aos povos indígenas e contra a preservação ambiental.

“Se eu assumir como presidente da República, não haverá um centímetro a mais para demarcação”

Jair Bolsonaro

ex-presidente da República em evento de pré-campanha em Dourados (MS), em fevereiro de 2018

O garimpo também é apontado como a raiz dos problemas de saúde que atingem os yanomamis: o garimpo contamina com mercúrio as águas que os indígenas bebem. O que gera doenças e impossibilidade de produzirem o seu próprio alimento.

“O ex-presidente Bolsonaro protegia os invasores. E ele já dizia a que veio em relação aos povos indígenas e ao meio ambiente. O que fizeram foi abrir a porteira para a boiada passar. Esses quatro anos de governo Bolsonaro foram os piores na história do indigenismo. Parte de um projeto de governo, que utilizou a máquina para exterminar os povos indígenas”, disse Sydney Possuelo ao Nexo .

FOTO: REPRODUÇÃO/INSTAGRAM @URIHIYANOMAMI

Criança está de costas. Ela é muito magra, tem cabelo muito curto e ralo e um esparadrapo na cabeça.

Criança yanomami com desnutrição na cidade de Alto Alegre, em Roraima

O governo Lula promete dar fim à atividade no território indígena Yanomami. A ministra dos povos indígenas Sônia Guajajara disse na terça-feira (24) que a Polícia Federal, Ibama e Ministério da Defesa vão retirar garimpeiros da região. São pelo menos 20 mil pessoas , segundo estimativas de lideranças indígenas. Também na terça, a Abip (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) pediu que o Supremo Tribunal Federal assegure a retirada dos garimpeiros.

Na terça-feira (24), um hospital de campanha foi instalado na comunidade Surucucu, em Roraima, para auxiliar no atendimento emergencial dos yanomamis.

Para a conselheira do Fundo Brasileiro de Educação Ambiental Eda Tessara, que é professora emérita do Departamento de Psicologia Social da USP e pesquisadora de políticas ambientais, é necessário expandir e manter um sistema de vigilância na região – policial e sanitária. “Será necessário uma força-tarefa ampla, com antropólogos, educadores, profissionais de saúde da família para sanar a crise aguda enquanto se aumentam as estruturas para retirar o garimpo”, disse ao Nexo .

FOTO: RICARDO STUCKERT/VIA REUTERS – 21.JAN.2023

Lula lê cartaz segurado por um indígena que pede o fim do garimpo

O presidente Lula, em visita à Casa Yanomami, em Boa Vista

Sydney Possuelo pontua que a presença do presidente Lula no sábado (21) é uma simbologia forte de que a atitude do governo em relação ao garimpo será completamente distinta da gestão Bolsonaro, e que há apoio e proteção aos yanomamis. Segundo ele, apesar de o número estimado de garimpeiros ser a metade do que ele encontrou quando estava à frente da Funai em 1992, o governo Lula terá o desafio de retirar uma estrutura mais organizada.

O indigenista aponta que será necessária uma operação de guerra, e que as Forças Armadas precisam contribuir. “Se o Exército e a Aeronáutica não forem capazes de colocar para fora 20 mil homens, então, pelo amor de Deus, não podemos entrar em guerra nem com o Suriname. Está na lei de criação da Funai que as Forças Armadas podem contribuir, então, por que não usar? Com vontade política será possível”, disse Possuelo ao Nexo .

NEWSLETTER GRATUITA

Nexo | Hoje

Enviada à noite de segunda a sexta-feira com os fatos mais importantes do dia

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Gráficos

nos eixos

O melhor em dados e gráficos selecionados por nosso time de infografia para você

Este site é protegido por reCAPTCHA e a Política de Privacidade e os Termos de Serviço Google se aplicam.

Navegue por temas