Expresso

Como a musicalização é usada na educação básica

Lucas Zacari

03 de fevereiro de 2023(atualizado 06/02/2024 às 10h58)

Importante fator de desenvolvimento infantil, o ensino de música nas escolas encontra entraves como baixa formação profissional e dificuldade de aplicação mesmo após quase 15 anos de obrigatoriedade

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FOTO: REUTERS – 17/09/2012

Um homem, de camisa e calça preta, está ao centro da imagem, com o braço direito levantado. Crianças estão ao seu redor, sentados em cadeiras, com vários instrumentos

Professor de música rege alunos da “Banda Música do Silêncio”, durante aula na Escola Municipal de Educação Bilíngue para Surdos Madre Lucie Bray, em São Paulo

A modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação em 2008 tornou obrigatório o ensino de música como disciplina escolar. Com isso, o ensino de artes na grade curricular precisa contar com a música como forma de atividade para a educação básica. Perto de completar quinze anos da instauração da lei, no entanto, a aplicação musical na grade curricular ainda passa por dificuldades estruturais e pedagógicas.

A obrigatoriedade do ensino de música na educação básica é baseada no consenso de especialistas de que a música é um importante instrumento de desenvolvimento das crianças. Habilidades como percepção, sensibilidade, imaginação e atenção podem ser fortalecidas a partir do ensino musical. Além disso, a musicalização auxilia na memorização de conteúdos e de exploração das emoções, tornando-se uma forma importante de contribuir para a socialização infantil.

Neste texto, o Nexo apresenta um histórico do ensino de música no Brasil, como ele é aplicado nas escolas e os principais impactos da musicalização para as crianças.

O ensino de música no Brasil

A utilização da música como forma de transmitir conhecimento no Brasil data do século 16. A música foi utilizada pela Igreja Católica para evangelizar o povo indígena , ensinar a ler e a contar, segundo o Jornal de Políticas Educacionais da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Nas escolas, o ensino de música passou a ser instaurado em 1854, de forma optativa, nas instituições de ensino primário e secundário do Rio de Janeiro. Ainda segundo o artigo do Jornal de Políticas Educacionais, a implementação aconteceu pela música ser considerada “um conhecimento fundamental para a formação básica do cidadão”.

Durante o século 20, uma das figuras de destaque no ensino musical foi Heitor Villa-Lobos. No início da década de 1930, o maestro e compositor carioca trouxe de Paris o Canto Orfeônico. O canto é uma prática coletiva e que, por não necessitar de instrumentos, foi amplamente usada nas escolas durante a Era Vargas (1930-1945). Antes disso, Villa-Lobos já tinha produzido o Guia Prático, uma coletânea de canções educativas que apresentavam as sonoridades brasileiras.

Apesar da atuação de Villa-Lobos, a música deixou de ser disciplina obrigatória durante o período da ditadura militar, incluída na matéria de Educação Artística. Oito anos após a redemocratização, Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei nº 9.394, que ficou conhecida como “Lei de Diretrizes e Bases da Educação”. O código colocou o ensino de artes como disciplina obrigatória da educação básica, “de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.

Nesta primeira legislação, não havia uma especificidade sobre o ensino musical. Foi somente em 2008, durante o segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, que a obrigatoriedade, mas não exclusividade , da música dentro do ensino artístico foi implementada. Com isso, uma das bases da disciplina de Artes deveria ser o ensino de música, mas também deveria contar com outras linguagens artísticas no planejamento escolar.

Posteriormente, em 2016, Dilma Rousseff ampliou a obrigatoriedade para artes visuais, dança e teatro . No mesmo ano, as Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de música na educação básica foram definidas, resolução que atribui responsabilidades do ensino musical às escolas, às Secretarias de Educação, às universidades e ao Ministério da Educação.

Qual o cenário da musicalização atualmente

A Base Nacional Comum Curricular — documento de caráter normativo do Ministério da Educação que define as aprendizagens essenciais ao longo da Educação Básica — ressalta a importância da musicalização em diversas etapas da educação básica. O documento afirma que, dos primeiros anos do ensino infantil até os últimos do fundamental, a música é uma das linguagens usadas pelos alunos para expressão e comunicação.

Apesar de ser obrigatório e estar presente como primordial em várias fases escolares, o ensino de música não é implementado de forma ideal no país. O baixo número de professores capacitados a trabalhar com música e a falta de estrutura das escolas são alguns dos fatores que prejudicam a formação musical dos alunos.

Em relação à formação de professores, os números do Censo da Educação Superior de 2021 ressaltam o cenário alarmante do ensino musical. Ao todo, são 130 cursos de licenciatura em música no país, com 7.095 ingressantes e 2.493 concluintes no ano de 2021. A comparação com cursos semelhantes reforça a situação: pedagogia, por exemplo, possui 1.851 cursos, 284.306 ingressantes e 165.439 concluintes no mesmo período.

A necessidade de se realizar um teste de habilidades específicas para entrar no curso de música reduz o número de interessados na profissão, disse ao Nexo Cristiane Maria Galdino de Almeida, presidente da Abem (Associação Brasileira de Ensino Musical).

“Algumas das habilidades pedidas dependem dessa pessoa ter feito um conservatório, ter estudado em uma escola de música. E a gente sabe que a maioria das pessoas não têm acesso a esse tipo de ensino. As pessoas não têm música na escola e, ao fazer o vestibular, é exigido um conhecimento que não foi oferecido na educação básica”, afirmou Almeida.

A posterior dificuldade de ingresso no mercado de trabalho é outro fator que prejudica os índices de formação de professores de música. Apesar da legislação de 2016 apontar como obrigatória as quatro linguagens artísticas — com diferentes cursos de formação —, muitas escolas e concursos precarizam essa escolha, buscando um único profissional para atuar nas quatro áreas.

“Se acontece ainda esse equívoco, isso sugere que o próprio sistema estadual, municipal e privado não possuem clareza sobre a disciplina, sobre quem deve atuar e como essa disciplina deve acontecer”, afirmou Almeida.

As diretrizes nacionais para a operacionalização do ensino de música na educação básica apontam que as escolas devem “incluir o ensino de música nos seus projetos político-pedagógicos como conteúdo curricular obrigatório, tratado de diferentes modos em seus tempos e espaços educativos”.

Essa indefinição sobre o regimento da musicalização também se reflete na aplicação da disciplina. A resolução de 2016 aponta a necessidade de destinação de um espaço e de um tempo específico para o ensino de música. Entretanto, levantamento de Jussara Cristina Barbosa Tortella eVivian Annicchini Forner, pesquisadoras da UFPR, mostra que os professores da área apontam esses fatores como duas das três principais dificuldades encontradas para o ensino.

Um dos obstáculos, segundo especialistas, é a falta de instrumentos, que deveriam ser fornecidos pelas Secretarias de Educação. A presidente da Abem ressalta, no entanto, que nem sempre é necessário o uso dos instrumentos musicais para a musicalização.

“Mesmo que não tenha [instrumentos], você pode fazer todo um trabalho de construção de instrumentos com material alternativo, pode usar o corpo como instrumento, usa-se muito a voz para fazer coros. Há várias possibilidades de trabalho”, disse Cristiane Maria Galdino de Almeida ao Nexo . A própria Base Nacional Comum Curricular aponta que o uso de instrumentos convencionais é opcional.

O impacto da musicalização em crianças

O ensino de música nas escolas pode trazer uma série de benefícios para o desenvolvimento cognitivo , motor e social infantil. Como ferramenta lúdica, a música é essencial para o descobrimento de sentimentos, sensações e de habilidades, como sensibilidade, concentração, autodisciplina e memória. O uso da música em sala de aula também é responsável pela consciência corporal e espacial da criança.

Todo esse processo, de acordo com a presidente da Abem, é primordial também para o desenvolvimento da personalidade dessas crianças. “O fato de vocês estar se relacionando com o instrumento ou com uma atividade que vai requerer de você algumas habilidades faz você conhecer o seu próprio corpo, do que ele é capaz.”

Aulas de musicalização podem também ser essenciais para a socialização e para o aprimoramento de habilidades sociais de crianças com deficiência. Dois estudos brasileiros recentes confirmam como o uso da música nas escolas pode ter um impacto no desenvolvimento social desse grupo.

Um doutorado da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) apontou que crianças com TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção com Hiperatividade) erraram menos em suas atividades quando estavam ouvindo música . Apesar de não ter apresentado efeitos diretos em relação à atenção — aspecto primário do estudo —, a música pode ter auxiliado no interesse dos jovens naquelas atividades. Esse foi o primeiro estudo brasileiro especializado no impacto na atenção de jovens com TDAH.

Outro estudo, feito por pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos, mostrou que o ensino de música para crianças com autismo favorece a socialização e o aprendizado .

Em aulas de 45 minutos, dois grupos de crianças, de 4 a 10 anos e acima de 10 anos, se reuniam com pais e responsáveis para as aulas de musicalização. O estudo apontou que, a cada encontro realizado, participação, atenção e empatia foram algumas das características desenvolvidas pelos alunos. Ao final, com o desenvolvimento do grupo, foi possível realizar uma apresentação de canto no anfiteatro da universidade.

Segundo o artigo, “para algumas crianças com deficiência, como no caso daquelas com o Transtorno do Espectro do Autismo, que podem, às vezes, recusar ou ignorar qualquer tipo de contato com outra pessoa, este recurso [o uso de instrumentos] pode ser bastante eficaz”.

Almeida ressalta que a musicalização, como apresentada nos dois estudos, ajuda as crianças a compreenderem o mundo ao seu redor. “Eu acho que a música ajuda a entender o respeito que a gente tem que ter com o diferente, com os outros. Então, se eu toco só na minha vez, é em respeito ao outro, que tem o direito de tocar agora.”

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