Como a mudança do clima afeta os povos indígenas no Brasil
Mariana Vick
26 de abril de 2023(atualizado 28/12/2023 às 19h58)Movimento reunido no Acampamento Terra Livre, em Brasília, declara emergência climática de forma simbólica e chama atenção para impacto da crise em terras tradicionais
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Indígenas do povo Pataxó participam do Acampamento Terra Livre, em Brasília
Indígenas de todo o Brasil estão reunidos até sexta-feira (28) no Acampamento Terra Livre , que acontece todos os anos em Brasília e pede mais demarcações e o fim de violências contra as comunidades que vivem em terras tradicionais. O encontro de 2023 começou na segunda-feira (24).
O acampamento deste ano terá foco maior no combate à mudança climática , que afeta de forma particular as terras indígenas . Segundo informações da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), o grupo decretou, de forma simbólica, emergência climática em um ato nesta quarta (26), na tentativa de chamar a atenção para o papel dos territórios no enfrentamento à crise.
Neste texto, o Nexo lembra o que são as terras indígenas e explica quais os efeitos do aumento das temperaturas e dos chamados eventos climáticos extremos para elas. Mostra também como esses territórios podem ajudar a combater a mudança do clima e quais as críticas do movimento indígena ao que consideram falsas soluções para a crise.
As terras indígenas são territórios habitados de forma permanente pelos povos originários do Brasil. Usadas para atividades produtivas e de subsistência como a agricultura, a pesca e a caça, elas são essenciais para preservar os recursos ambientais necessários para o bem-estar desses grupos e para sua reprodução física e cultural, de acordo com seus costumes e tradições.
Segundo dados da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), há 443 terras indígenas homologadas ou regularizadas no Brasil. Outras 237 ainda estão nas fases iniciais do processo de demarcação. Essas terras representam 13,75% do território brasileiro e estão espalhadas por todo o país, a maioria concentrada na Amazônia Legal.
Essas terras abrigam diversos povos com características e culturas diferentes. Segundo dados do Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 517 mil dos 896 mil indígenas brasileiros vivem nessas áreas. O país tem no total 305 etnias que falam 274 línguas ou dialetos.
57,7%
dos indígenas do país vivem em terras tradicionais; o restante vive em outros lugares, como as cidades
A mudança climática provoca nas terras indígenas os mesmos efeitos que em outros lugares: eleva as temperaturas médias, altera os ciclos das chuvas e transforma também os ciclos das estações do ano. Grande parte do problema, porém, é que nesses territórios os impactos são aumentados, pois as populações locais têm uma relação mais próxima e dependente da natureza.
1ºC
foi quanto a temperatura média da Amazônia, bioma onde está a maior parte das terras indígenas do Brasil, aumentou em 40 anos, segundo dados apresentados em 2022
36%
foi quanto o nível de chuvas diminuiu em algumas áreas da Amazônia nesses mesmos 40 anos, segundo esses dados
Segundo a publicação “Mudanças climáticas e percepção indígena”, editada em 2018 pela organização Opan (Operação Amazônia Nativa), as principais consequências dessas mudanças estão na produção de alimentos . Enchentes e secas prolongadas, por exemplo, afetam o volume dos rios e prejudicam a pesca, ao mesmo tempo que podem destruir cultivos e facilitar o espraiamento de pragas.
Indígenas Kanamari em trabalho na roça na terra indígena Vale do Javari, no Amazonas
Tipuci Manoki, liderança que vive na terra indígena Irantxe, no Mato Grosso, conta na publicação sobre a mudança na aldeia onde vive: “Quando eu era criança, meu avô ainda pegava trairão na ponte do córrego São Domingos, que passa no meio da aldeia Cravari. Muitas pessoas pescavam ali, tiravam seus alimentos desse córrego. Hoje virou história”, disse.
Para se adaptar, diversos povos passaram a implementar mudanças nos modos de produção, alterando os lugares onde cultivam, remanejando as horas de trabalho e adotando mais cultivos para prevenir os prejuízos de eventuais perdas. Atividades como a pesca, que depende da disponibilidade de peixes, porém, são mais difíceis de se adequar à nova realidade do clima.
Indígena da etnia Kayapó faz vigilância da Terra Indígena Menkragnoti (PA) contra invasores
Outra consequência da mudança climática que atinge terras indígenas são os chamados eventos climáticos extremos, que incluem secas, inundações e incêndios florestais mais intensos que o comum. Fortes chuvas que caíram nos estados do Norte do país em março, por exemplo, afetaram territórios em estados como Acre e Rondônia , onde comunidades indígenas ficaram desabrigadas por causa do transbordamento dos rios.
Essas mudanças também têm efeitos sobre a relação dos povos com a natureza. Segundo o líder Caimi Waiassé Xavante, da terra indígena Pimentel Barbosa, do Mato Grosso, em texto para a publicação “Mudanças climáticas e percepção indígena”, sua comunidade está interligada “com tudo na natureza” que os envolve:
“Nossa vida e nossos ritos de passagem e de iniciação estão interligados com ela [a natureza] desde a primeira respiração até o nosso último suspiro. […] Para sonharmos nossos cantos e termos sabedoria para compreendermos as respostas para nossas dúvidas e problemas devemos nos alimentar de espécies vindas dos nossos ecossistemas […] Nossa saúde mental, física e espiritual está interligada com o que nos cerca, com a forma como nos alimentamos e levamos nossa vida em cada momento. Mas isso tudo vem sofrendo mudanças”
Efeitos da mudança climática como a seca e a insegurança alimentar são agravados por interferências externas nas terras indígenas, como queimadas, a exploração de recursos naturais — a exemplo da madeira — e a construção de empreendimentos como as usinas hidrelétricas, que têm grande impacto sobre a vida nos rios.
Estudo de 2021 da UEM (Universidade Estadual de Maringá) e das universidades federais do Pará e de Tocantins mostrou que a operação de hidrelétricas, por exemplo, está relacionada à morte de toneladas de peixes no Brasil. Segundo a publicação, o enchimento do reservatório das usinas e o funcionamento de suas turbinas e vertedouros afetam a quantidade de oxigênio na água, além do próprio volume dos rios, o que leva ao desaparecimento dos animais.
Grafite com crítica à usina de Belo Monte, em São Paulo
Construída a partir de 2010 sem o consentimento dos povos locais, a usina de Belo Monte é um dos principais exemplos desse tipo de obra. Estima-se que a construção tenha diminuído em 80% a vazão de certos pontos do rio Xingu, no Pará, o que comprometeu a biodiversidade local e causou danos irreversíveis.
Segundo o escritor, ambientalista e ativista Ailton Krenak em texto para o relatório “Mudanças climáticas e a percepção indígena”, os efeitos da mudança do clima alcançaram as terras indígenas a ponto de “ desestruturar as formas tradicionais de ocupação do território”, que dependem da preservação da biodiversidade e dos recursos naturais.
Apesar de serem altamente vulneráveis aos impactos da mudança do clima, as comunidades originárias estão entre os grupos que menos contribuíram para o problema, como aponta o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), maior autoridade científica sobre o clima.
Indígenas yanomami em pelotão do Exército em Alto Alegre (RR)
Mais que não contribuir para a mudança climática, as terras indígenas, na verdade, ajudam a combatê-la, de acordo com o movimento. Segundo Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Apib, esses territórios são as áreas com maior biodiversidade e com vegetação mais preservada do Brasil, pois são protegidos e manejados pelas comunidades tradicionais.
2%
da vegetação dentro das terras indígenas no Brasil está desmatada, enquanto ao redor delas esse valor é muito maior, de 29%, segundo dados do projeto MapBiomas levantados em 2022 pela Apib em parceria com o Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia)
Essas contradições, segundo o movimento, são uma expressão do racismo ambiental , mecanismo pelo qual os piores efeitos da degradação do meio ambiente são destinados às populações racializadas, como negras e indígenas. Criado no século 20, o conceito tem relação com o fenômeno da injustiça ambiental, segundo a qual, em sociedades desiguais, há desequilíbrio no acesso aos recursos e na carga dos danos do desenvolvimento.
Para o movimento indígena, as soluções para a crise climática no Brasil começam na demarcação de terras. Entre as reivindicações do Acampamento Terra Livre de 2023, está a oficialização de 13 territórios que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva prometeu demarcar no início do mandato. Segundo lideranças ouvidas pela Agência Pública, há expectativa de que a medida ocorra durante o evento.
Representantes de povos indígenas aumentaram sua presença nos últimos anos em eventos sobre o clima — como a COP26 e a COP27, que aconteceram na Escócia e no Egito em 2021 e 2022 — para mostrar à comunidade global seu papel na preservação de florestas e atrair parceiros para ajudá-los a mantê-las em pé.
Nem todas as soluções propostas para enfrentar a crise climática, porém, são aprovadas pelo movimento. Em carta aberta publicada durante a COP27, em novembro de 2022, organizações indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais disseram ser contra a inclusão de florestas brasileiras no mercado de carbono , por exemplo.
“As florestas devem permanecer fora dos mecanismos de mercado. As florestas são o espaço de enorme biodiversidade e de muitos povos indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas, agricultores familiares que buscam convivência digna e sustentável com seus ecossistemas, devem ser objetos de políticas públicas e sistemas de governança, transparente e democrática”
O mercado de carbono é uma forma de precificar o lançamento de gases que geram o efeito estufa. O mecanismo busca transformar a absorção de carbono em uma commodity — por exemplo, impondo um teto de emissões geral para as empresas. Aquelas que emitem menos que seu teto recebem créditos de carbono e podem vendê-los para empresas que o excedem.
Florestas tropicais, como as do Brasil, são uma boa fonte de créditos de carbono porque são responsáveis por retirar o carbono da atmosfera. Reflorestar uma área degradada ou investir em tecnologias ambientais para as populações que habitam essas áreas são medidas que podem dar direitos a empresas de obter créditos de carbono.
Enquanto, por um lado, governos e empresas consideram o mercado de carbono um meio para driblar o excesso de emissões, o mecanismo é alvo de ressalvas. Para críticos, esse mercado pode ser ineficiente para gerar resultados concretos — pois é difícil contabilizar compensações — e, pior ainda, tornar-se uma espécie de “passe livre” para poluir.
Outra crítica registrada em reportagem da agência Amazônia Real aponta que contratos para créditos de carbono firmados com comunidades amazônicas nos últimos anos têm focado apenas no comércio de emissões e ignorado protocolos como o que prevê a consulta prévia das populações para empreendimentos dentro dos territórios, passando por cima de seus interesses.
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