Brasil quer regular mercado de carbono: como é no exterior
Marcelo Roubicek
27 de abril de 2023(atualizado 28/12/2023 às 18h45)Mecanismo surgiu nos anos 1990 como aposta no combate às mudanças climáticas. O ‘Nexo’ traça o cenário global em 2023 e mostra como o debate chega ao país
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Usina termelétrica movida a carvão no estado de Utah, EUA
Os créditos de carbono foram criados na década de 1990 como uma possível solução de mercado no combate às mudanças climáticas. Desde então, eles sofreram grandes transformações, principalmente no âmbito da forma de emitir e negociar esses créditos.
No Brasil de 2023, ainda não há uma regulamentação avançada sobre mercados de carbono — embora diversos textos em tramitação no Congresso tragam diferentes propostas. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva também sinaliza que pode enviar um novo texto com suas ideias para o mercado de carbono no país.
Neste texto, o Nexo explica o que são créditos e mercados de carbono. Também mostra suas trajetórias desde os anos 1990 e como a discussão sobre esse tema se dá no Brasil de 2023.
Os créditos de carbono surgiram no Protocolo de Kyoto, que em 1997 definiu metas de redução de emissão de gases do efeito estufa para países desenvolvidos. Os mercados começaram a funcionar efetivamente em 2005.
Créditos de carbono são cotas de emissão de gases do efeito estufa que podem ser compradas e vendidas por empresas e governos ( e até consumidores ). O direito de emitir novos gases, portanto, é precificado e pode ser comercializado.
A princípio, parece contraintuitivo criar um dispositivo que permite poluir. Mas um crédito de carbono só é obtido quando um país ou empresa apoia, como contrapartida para a emissão, uma medida para reduzir a poluição ou capturar carbono.
Uma unidade de crédito de carbono corresponde a uma tonelada de gás carbônico (CO2) compensada por um projeto ambiental. Um projeto que ajuda a neutralizar 200 mil toneladas de emissões de carbono, por exemplo, representa 200 mil unidades de crédito de carbono.
Há duas modalidades principais de mercados de carbono:
A dinâmica inicial de venda e compra de créditos de carbono foi adotada via MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), um instrumento criado pelo acordo de Kyoto. Portanto, a primeira modalidade de mercado de carbono era um mercado regulado.
A ideia era que países desenvolvidos bancariam projetos para redução de emissões em países emergentes ou em desenvolvimento, gerando créditos de carbono.
Sessão do plenário da conferência da ONU em Kyoto, em 1997
Para que a redução de emissão de gases virasse efetivamente um crédito de carbono, era necessário passar por uma máquina burocrática avaliando os impactos dos projetos para conceder (ou não) o selo de aprovação. Também era feita a análise da chamada adicionalidade , para entender se um projeto precisaria de fato dos retornos dos créditos de carbono para ser realizado, ou se aconteceria de todo jeito.
A fórmula, no entanto, apresentou falhas. Com o tempo, as estatísticas, a fiscalização e a eficiência dos projetos feitos sob o MDL perderam credibilidade. Além disso, a eclosão da crise financeira de 2008 levou esses mercados a uma forte desaceleração.
Em 2023, os créditos que foram gerados por projetos do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo seguem existindo e sendo negociados, mas novos projetos não são implementados desde 2021 . Na prática, portanto, o MDL foi extinto.
No Acordo de Paris, de 2015 — que adotou o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5 ºC até o fim do século — , os quase 200 países signatários concordaram em estabelecer um novo mercado global de carbono para suceder o MDL. Até abril de 2023, a iniciativa ainda não havia saído do papel .
Laurent Fabius, então chanceler da França e presidente da COP-21, comemora o Acordo de Paris, em 2015
O esgotamento do MDL levou ao surgimento de outras modalidades de mercados regulados de carbono, sobretudo em países desenvolvidos. Um dos principais são os chamados sistemas de comércio de emissões (Emissions Trading Systems ou ETS, em inglês), que operam numa lógica conhecida como “cap-and-trade”.
Resumidamente, nessa modalidade, um governo distribui um número limitado de autorizações para poluir. Na prática, isso coloca uma espécie de teto, pelo qual cada empresa só poderá emitir uma determinada quantidade de gases. Se a empresa reduzir suas emissões e ficar abaixo do teto, ela pode negociar as permissões que sobraram para empresas que não conseguiram cumprir suas metas e precisaram comprar.
Esse sistema não se aplica a todas as atividades de um país. “O mercado [de autorizações ‘cap-and-trade’] não regula todas as emissões de um país, ele foca em setores que têm muita dificuldade de se descarbonizar”, disse ao Nexo Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de Economia de Baixo Carbono do iCS (Instituto Clima e Sociedade). Geralmente, isso engloba indústrias pesadas e empresas ligadas ao setor de energia.
Homem caminha diante de fábrica de automóveis, na China
Há também outra modalidade geralmente classificada como mercado regulado: a taxação de carbono. Nesse sistema, os governos tributam empresas com base nas emissões, o que na prática, coloca um custo mais alto para quem emitir. Isso desincentiva emissões e estimula empresas a procurarem processos mais limpos de produção.
Mesmo que seja comumente colocada como um mercado regulado, a taxação não gera créditos de carbono (ou autorizações para emitir) que possam ser comercializados. “Não é um mercado. É uma forma de implementar uma precificação de carbono”, disse Pinheiro. Ou seja, é uma forma de trazer uma punição financeira àqueles que emitirem muito.
Em paralelo ao avanço do MDL pelo mundo, foi surgindo nos anos 2000 um mercado de créditos de carbono voluntários . Esses mercados funcionam em lógica similar à do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo: projetos que resultam na redução de emissões ou na captura de carbono geram créditos que podem ser negociados entre ONGs, governos, empresas e indivíduos.
Essas iniciativas podem ter diferentes motivações. No caso de empresas, geralmente estão ligadas a tentativas de associar a imagem da firma à responsabilidade ambiental.
Há diferentes formas de gerar créditos de carbono no mercado voluntário, como, por exemplo:
No último ponto, aparece uma diferença importante entre os créditos de carbono gerados no mercado voluntário e os mercados regulados. O MDL, por exemplo, não concedia créditos para proteção florestal (REDD+, ou Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal); os mercados voluntários costumam aceitar. A principal discussão é que nem toda área protegida está efetivamente ameaçada pelo desmatamento. Ou seja, manter a floresta em pé nem sempre traz um impacto ambiental real.
Outra diferença importante é que nos mercados regulados, os créditos de carbono costumam ser emitidos com base em critérios unificados, estabelecidos por governos ou autoridades internacionais. No mercado voluntário, esse trabalho é feito por diferentes organizações, que não necessariamente têm os mesmos critérios ou níveis de rigor.
Vacas pastam em frente a local de queima de metano na França
“O mercado voluntário cria seu próprio regime de validação. Ele tem mais flexibilidade, mas também tem menos controle”, disse ao Nexo Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV.
A principal dessas entidades de validação é a Verra , organização sem fins lucrativos responsável por quase três quartos de todas as certificações emitidas a nível global no mercado voluntário. A segunda colocada é a Gold Standard, com pouco mais de 10% das emissões de créditos.
As certificações são um ponto central das críticas sobre os créditos voluntários. De acordo com levantamento da agência Bloomberg, o mercado voluntário de carbono teve uma retração de 4% em 2022 justamente por dúvidas sobre a qualidade desses créditos.
Ou seja, há questionamentos sobre o quanto de fato os projetos que renderam créditos trazem benefícios ambientais efetivos, seja via redução de emissões ou captura de carbono. No âmbito dessas preocupações, os projetos de proteção de floresta estão entre os mais questionados.
Os mercados voluntários estão em pleno crescimento desde meados da década de 2010. Eles praticamente quadruplicaram entre 2016 e 2021 , como mostrou um estudo da FGV. Ainda assim, “o mercado voluntário é muito pequeno se comparado com o tamanho dos mercados regulados no mundo”, disse Vargas.
Segundo dados do Banco Mundial, em 2022 as iniciativas de “cap-and-trade” (de mercado regulado) cobriam mais de um sexto de todas as emissões no mundo.
17,55%
das emissões globais estavam cobertas por sistemas de comércio de emissões
Ao todo, o Banco Mundial diz que 39 países já adotam ou têm previsão concreta de adotar sistemas de comércio de emissões, incluindo Canadá, México e China. Mas o principal mercado regulado é o da União Europeia, em que as empresas de energia são o principal alvo da política de “cap-and-trade”.
Outros 28 países adotam alguma forma de taxação de carbono. Há ainda alguns países com políticas híbridas, que combinam os dois tipos de precificação.
No Brasil, o esgotamento do MDL não foi acompanhado pelo surgimento de um mercado regulado. Isso abriu espaço para que créditos voluntários avançassem — embora ainda não tenham grande escala em 2023. Segundo a FGV, eram menos de 200 os projetos certificados nessa modalidade em 2021.
159
eram os projetos de créditos voluntários certificados no Brasil
A maior parte dos projetos era realizado na área de energia. Mas o maior volume de créditos era gerado na área de uso da terra — desses, 37% dos créditos vinham de projetos de proteção de florestas (REDD+).
Em maio de 2022, Jair Bolsonaro publicou um decreto que, segundo o governo da época, “ cria o mercado regulado brasileiro de carbono”. Na prática, no entanto, não foi isso que aconteceu , como mostrou o jornal Folha de S.Paulo.
O texto apenas instituiu o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa e colocou procedimentos para que fossem criados planos de mitigação em diferentes setores da economia. Mas não trouxe regras, metas ou limites claros. O decreto foi considerado insuficiente por analistas especializados.
Em 2023, há diversos projetos de lei que tratam do estabelecimento de mercados de carbono no Brasil. A maior parte trata da criação de um sistema de comércio de emissões , trazendo para o Brasil o modelo de “cap-and-trade”. Mas há também discussões sobre medidas para dar mais segurança jurídica ao mercado voluntário .
Luiz Inácio Lula da Silva durante anúncio de programa no Palácio do Planalto
O próprio governo Lula, via Ministério da Fazenda, também sinalizou que deve enviar ao Congresso um novo projeto com regras mais detalhadas para a criação de um mercado regulado no Brasil. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, também já defendeu publicamente que o Brasil tenha um mercado regulado.
Para Vargas, da FGV, as diferentes propostas e debates na esfera pública sobre mercado de carbono no Brasil compõem uma “cacofonia”. “Há uma confusão de vozes sobre o que fazer. É como se a gente tivesse concordado que precisamos ter um mercado de carbono, mas ninguém sabe para quê”, afirmou.
Pinheiro, do iCS, vê como positivas as iniciativas do governo para estabelecer um mercado regulado. “A preocupação do governo brasileiro em criar um mercado regulado está alinhada com as melhores práticas internacionais. A gente precisa de políticas públicas para implementar os compromissos que assumimos internacionalmente”, disse. No Acordo de Paris, o Brasil se comprometeu a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 37% em 2025 e em 50% em 2030. Os percentuais são em relação às emissões de 2005.
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