Expresso

As propostas para aprimorar concursos públicos no Brasil

Isabela Cruz

10 de setembro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h07)

Ministério da Gestão e da Inovação consulta pastas sobre adesão a modelo unificado de seleção, enquanto Lei Geral dos Concursos tramita no Congresso

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FOTO: JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL – 22.AGO.2023

Dweck e outras pessoas à mesa falam a uma plateia. Ao fundo, telão onde se vê escrito Auditório Enap

A ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (de blazer preto), durante evento da Enap (Escola Nacional de Administração Pública), em Brasília

Comandado por Esther Dweck, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos quer mudar a forma de recrutamento de servidores federais. A pasta solicitou aos outros órgãos do governo que digam até 29 de setembro quem está disposto a aderir a um modelo unificado de seleção, uma espécie de Enem dos concursos.

Um projeto de Lei Geral dos Concursos, em tramitação no Senado desde que foi aprovado na Câmara em 2022, também ganhou a atenção do governo Luiz Inácio Lula da Silva, que autorizou em 2023 processos seletivos para mais de 16 mil vagas . A gestão federal lançou em agosto um Guia Referencial sobre o tema.

Neste texto, o Nexo explica os deficits atuais dos concursos públicos e as propostas de mudança. Também traz as análises de um especialista no tema do recrutamento para a administração pública sobre os potenciais e os desafios de um novo modelo.

Os concursos hoje

O Brasil adota um modelo descentralizado de entrada no serviço público. Assim, cada um dos diversos órgãos da burocracia federal faz seu próprio concurso quando precisa contratar servidores.

Nessa estrutura, órgãos com menos recursos, financeiros e de pessoal, têm dificuldades para:

  • Elaborar editais convocatórios técnica e juridicamente adequados
  • Contratar as melhores bancas do país para a realização das provas
  • Garantir que os exames serão feitos em diferentes localidades do Brasil

Os participantes de concursos, por sua vez, se quiserem concorrer a vagas em mais de um órgão, precisam:

  • Preparar-se para diferentes perfis de avaliações
  • Pagar diferentes taxas de inscrição
  • Viajar para os diferentes locais das provas

Segundo Fernando de Souza Coelho, professor de Administração Pública da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo), todos esses problemas deixam a administração pública menos diversa e representativa do país e afastam candidatos que poderiam ser vocacionados para os cargos.

“Acaba sendo um custo proibitivo para parcelas menos favorecidas da população que têm a pretensão de entrar no funcionalismo público”, afirmou Coelho.

A impossibilidade de contratação de bancas melhores, disse o professor ao Nexo , também gera provas de baixa qualidade, que apenas reproduzem questões padronizadas aprendidas nos cursinhos voltados aos exames.

Foi nesse contexto, segundo Coelho, que os concursos públicos se tornaram “um gargalo” na administração federal, especialmente em áreas de caráter mais generalista, como as de gestão. Isso foi identificado inclusive por movimentos da sociedade civil , que passaram a advogar pela aprovação de uma Lei Geral de Concursos.

De acordo com o professor, gestores públicos e acadêmicos especialistas no tema têm apontado, há pelo menos 15 anos, que muitos dos processos seletivos estão recrutando pessoas muito jovens, sem experiência profissional e sem clareza da importância do serviço público.

“Em muitos certames nós não estamos selecionando de fato as pessoas mais qualificadas e vocacionadas”

Fernando de Souza Coelho

professor de administração pública da USP, ao Nexo , sobre o fenômeno que a academia chama de “seleção adversa”

Mirando somente nos altos salários e na estabilidade do funcionalismo, os candidatos aumentaram muito em número, mas a parcela mais vocacionada ficou pequena perto do total.

Isso tudo diz respeito ao que Coelho chama de “fenômeno concurseiro”, que ganhou impulso a partir do final da década de 2000, no segundo governo Luiz Inácio Lula da Silva, com a intensificação dos concursos na gestão federal.

O modelo unificado

A ideia do Ministério da Gestão é criar um “Concurso Nacional Unificado” para ajudar a selecionar, de uma só vez, pessoas para oito áreas do governo . Trata-se de um modelo semelhante aos adotados por Portugal e Espanha, segundo Coelho, da USP.

Estas são as áreas:

  • Administração e finanças públicas
  • Setores econômicos, infraestrutura e regulação
  • Agricultura, meio ambiente e desenvolvimento agrário
  • Educação, ciência, tecnologia e inovação
  • Políticas sociais, justiça e saúde
  • Trabalho e Previdência
  • Dados, tecnologia e informação
  • Nível intermediário

Depois de realizada a prova única, os órgãos que aderirem ao concurso unificado ainda poderão realizar outras etapas de avaliação, de acordo com as necessidades do trabalho. Poderão ser agregadas, a critério dos órgãos ou por determinação legal de carreiras específicas, pontuações relativas, por exemplo, a titulação acadêmica, experiência profissional, apresentação de memoriais e provas práticas.

A unificação ao menos de uma primeira fase, no entanto, é importante para a racionalização dos custos tanto para a administração federal quanto para os concorrentes. Juntamente com a realização dos exames em diversos locais do país, isso promete democratizar o acesso ao serviço público.

A possibilidade de contratação das melhores bancas também deve garantir qualidade mais alta das provas e, portanto, um processo seletivo que recrute os melhores candidatos.

A ideia é realizar a primeira edição desse concurso unificado em fevereiro ou março de 2024, em 179 municípios brasileiros, a fim de preencher as vagas autorizadas no Executivo federal, mas ainda sem concurso planejado.

8.000

vagas aproximadamente estarão em disputa no Concurso Nacional Unificado, planeja o governo

Para isso, um edital de convocação para a prova deve ser publicado até o dia 20 de dezembro, segundo o governo. Confira abaixo como deverá ser esse processo, conforme indicou o Ministério da Gestão.

A seleção unificada

TEMAS

Na inscrição, os candidatos deverão escolher por um dos blocos temáticos disponíveis. Dessa forma, poderão concorrer a diferentes vagas que trabalham com aqueles assuntos.

PRIORIDADES

Também será necessário indicar no momento de inscrição a ordem de preferência em relação às vagas disponíveis. É possível se inscrever para somente uma vaga.

GERAIS

A primeira parte da prova será constituída de questões objetivas sobre conteúdos em comum para todos os candidatos.

ESPECÍFICAS

No mesmo dia, ocorrerá a segunda metade da prova, com questões específicas e dissertativas por blocos temáticos.

Um modelo sob teste

A adesão de órgãos e entidades federais ao modelo unificado de concurso é voluntária. Assim, o Ministério da Gestão precisa esperar até o final de setembro para saber quem vai aderir e quais serão suas demandas de contratação de servidores. Segundo a pasta, os participantes do programa vão ajudar na formulação das regras.

Só a partir daí é que se poderá pensar num modelo de prova eficaz, capaz de avaliar competências transversais a cargos diversos. Um levantamento da Enap (Escola Nacional de Administração Pública), por exemplo, publicado em 2021, já traz algumas indicações de como isso deverá ocorrer.

O Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) também dá indicações do que pode ocorrer com a aplicação de uma prova nacional, em que os candidatos apresentam uma lista de preferências para onde gostariam de ser selecionados.

Coelho afirmou que o concurso de acesso às universidades é modelo de qualidade de prova e permite que o recrutamento ocorra em todos os estados do Brasil de forma célere e mais barata do que realizando diversos exames.

No entanto, um efeito colateral negativo do exame nacional, segundo ele, é o aumento da evasão dos selecionados, já que alunos acabam entrando em vagas que não eram as de sua preferência. Nesse sentido, Coelho alerta que problema semelhante poderá acontecer no serviço público, apontando que medidas preventivas dessa tendência deverão ser adotadas.

O professor também afirmou que essa estrutura do concurso unificado tende a colocar em disputa dois tipos de concorrentes: os “concursandos”, que se veem vocacionados a determinado cargo na máquina pública, e os “concurseiros”, que desejam ingressar no funcionalismo apenas por motivos como salário e estabilidade, independentemente do cargo.

“A proposta é válida, temos que fazer a experimentação, mas este cuidado, vamos ter que ter: a depender da forma de agregação [da disputa pelas vagas em diferentes órgãos], pode ser que pessoas aprovadas não sejam as mais vocacionadas”, disse Coelho.

Uma lei geral

Há duas décadas, governo e Congresso discutem projetos de lei para regular os concursos no Brasil. Mas os avanços no campo da inovação na máquina pública deixaram a área de recrutamento de lado, se concentrando em temas como modernização digital e novos sistemas de compras públicas, segundo Fernando de Souza Coelho.

Sem legislação do tipo no país, frequentemente os participantes precisam contestar exigências do edital e outros aspectos desses processos na Justiça. Têm cabido aos tribunais, portanto, estabelecer parâmetros jurídicos para a realização das seleções.

Em agosto de 2022, entretanto, a Câmara aprovou um projeto de lei sobre o assunto. O texto consolida boas práticas desse campo e, como uma de suas maiores novidades, autoriza a realização de concursos de forma online.

Sindicatos e outras entidades questionaram essa possibilidade em razão das dificuldades de se garantir a identidade da pessoa que está fazendo a prova e, consequentemente, das possibilidades de fraude. O governo Lula argumenta, porém, que os concursos só serão realizados pela internet quando esses problemas estiverem contornados.

Para alguns, como o professor de direito Gustavo Henrique Justino de Oliveira, também da USP, o projeto aprovado pelos deputados não resolve problemas que são levados cotidianamente ao Judiciário. Ele cita entre outros exemplos :

  • Condicionantes a discriminação de candidatos por idade, sexo, altura e peso
  • Definição de maus antecedentes criminais para fins de nomeação e posse
  • Hipóteses em que existe direito do candidato a nomeação e posse e hipóteses em que candidato aprovado pode ser preterido

Na visão de Coelho, no entanto, o projeto de lei parte da premissa de que as questões que já têm jurisprudência dos tribunais não precisam ser definidas pelo Legislativo.

A ideia do texto, na verdade, é modernizar os concursos públicos, garantindo instrumentos para que gestores públicos possam inovar nas formas de recrutamento, segundo o professor de administração pública.

Coelho disse que o temor de gestores públicos de implementarem formas mais criativas e eficientes de seleção e depois serem punidos por órgãos de controle, ou terem os concursos anulados, têm gerado “um bloqueio” à inovação na administração pública.

“A lei dá liberdade para o órgão ou entidade escolher como quer fazer o concurso, inclusive continuar fazendo como faz (…). O que ela está tentando garantir é um risco menor para o gestor de pessoas inovar incrementalmente nos certames”

Fernando de Souza Coelho

professor de administração pública da USP, ao Nexo

O projeto oferece aos gestores, por exemplo, a possibilidade de realizarem provas práticas e entrevistas como uma das etapas do processo seletivo.

Entidades como a Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado) criticaram a possibilidade das entrevistas, argumentando que métodos subjetivos de escolha costumam abrir margem para discriminações e favorecimentos indevidos .

Coelho também chamou atenção para a necessidade de se pensar em regramento geral para os concursos em estados e municípios, onde, segundo ele, são mais frequentes os problemas jurídicos e de qualidade das provas.

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