O que a ciência diz sobre a importância de brincar na infância
Isadora Rupp
11 de outubro de 2023(atualizado 06/02/2024 às 10h56)Relação benéfica ao desenvolvimento da criança é comprovada por pesquisas, mas ainda faltam políticas públicas e espaços adequados para a promoção desse direito, avaliam pesquisadores ao ‘Nexo’
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Bebê brinca em parque ao ar livre com folhas secas de árvores
Forma de expressão essencial ao desenvolvimento motor, cognitivo e emocional da criança, o brincar é reconhecido pela ciência como um dos pilares mais importantes para uma infância plena.
Brincar e se divertir também é um direito das crianças previsto no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), legislação brasileira considerada um exemplo mundial na proteção à infância.
Neste texto, o Nexo detalha estudos sobre benefícios das brincadeiras na infância e aponta quais políticas públicas são necessárias para a promoção deste direito.
A relação entre uma infância vivida de forma plena – o que inclui brincadeiras – com o desenvolvimento de potencialidades não é algo novo. O entendimento já fora tratado por nomes como Lev Vygotsky (1896-1934), psicólogo que direcionou parte dos seus estudos para investigar a infância.
Menina brinca na Praça São Sebastião, em São Paulo
Segundo Vygotsky, é por meio do brincar que a criança ressignifica os seus papéis sociais e a sua existência.
“É pela brincadeira com outras crianças, pais ou responsáveis que elas constroem suas estruturas cognitivas, de pensamento e linguagem”, disse ao Nexo a pedagoga Francine de Paulo Martins Lima, professora e pesquisadora da UFLA (Universidade Federal de Lavras), em Minas Gerais.
Lima conduz na UFLA a pesquisa “Formação Docente Comprometida com os Brincares” que investiga o lúdico na formação de docentes, sobretudo os que trabalham com a primeira infância (período de zero a seis anos), quando ocorre um crescimento incremental e rápido.
“Mais adiante, na fase da alfabetização, quando a criança faz o movimento de pinça para pegar a caneta e escrever, ela sabe fazer o movimento porque já arremessou bola, brincou de bolinha de gude.Quando brinca de corpo inteiro, tem as bases para o desenvolvimento motor fino, que permite a escrita”, disse a pesquisadora ao Nexo .
Brincar com os colegas na fase pré-escolar protege a saúde mental das crianças à medida que elas crescem, segundo estudo da Universidade de Cambridge feito com 1.700 crianças aos três e aos sete anos de idade.
De acordo com os pesquisadores, as que tinham uma capacidade melhor de brincar aos três anos apresentaram menos problemas de saúde mental, como hiperatividade, aos sete anos.
O padrão se manteve inclusive entre subgrupos investigados no estudo, com crianças com alguma vulnerabilidade, como dificuldades econômicas ou filhos de mulheres que passaram por algum sofrimento psicológico grave durante ou imediatamente após a gravidez.
Proporcionar uma condição favorável ao ato de brincar nas escolas, mesmo após o período da fase pré-escolar, é uma das medidas para se conseguir esses benefícios. E é por isso que a atividade deve ser incluída nas propostas pedagógicas, afirmou ao Nexo Ana Claudia Medeiros, líder dos programas de educação infantil da Fundação Abrinq.
Medeiros desenvolve um projeto em parceria com cinco escolas do Campo Limpo e Capão Redondo, em São Paulo, regiões com carência de outros espaços de brincadeira além da escola.
De acordo com Medeiros, no geral a educação infantil nas escolas brasileiras contempla um trabalho mais ativo de brincadeiras, pois é algo previsto na BNCC (Base Nacional Comum Curricular), conjunto de regras que norteia a elaboração dos currículos de escolas públicas e privadas em todo o país.
Maria Felipa, primeira escola afro-brasileira no país
“Quando essa criança migra para as séries iniciais, dos seis aos dez anos, o que se percebe é uma ruptura. A proposta pedagógica é pautada na escrita e leitura, e o brincar fica restrito ao recreio. A curto prazo, isso impacta na socialização da criança, e até em questões cognitivas e motoras. Por isso, é interessante proporcionar mais momentos brincantes na escola. Quanto mais a criança interage com as brincadeiras, mais ela consegue criar habilidades que ela vai precisar para o resto da vida”, disse Medeiros ao Nexo .
Os benefícios de brincar com os filhos na primeira infância e de comportamentos parentais positivos foram associados a melhores resultados de desenvolvimento infantil integral, segundo o artigo “Comportamentos parentais positivos e desenvolvimento infantil no Ceará, Brasil: um estudo de base populacional”, publicado na revista Children, referência em estudos de pediatria.
Parceria entre a UFC (Universidade Federal do Ceará) e a Universidade de Harvard, o estudo com base no Ceará analisou 3.566 crianças em todo o estado, de zero a cinco anos.
Criança brincando com peças de Lego
Segundo os autores , a pesquisa é uma das poucas realizadas na América Latina a associar comportamentos parentais positivos ao desenvolvimento motor e infantil – a maioria de estudos desse tipo são realizados nos Estados Unidos e na Europa.
Por meio de um questionário, foram avaliados cinco domínios do desenvolvimento infantil: comunicação, coordenação motora ampla, coordenação motora fina, resolução de problemas e habilidade pessoal social. O ato de brincar com os filhos, utilizar objetos que rolam e emitem sons, cantar e contar histórias são algumas das práticas positivas detectadas no estudo e relacionadas ao desenvolvimento sadio.
A garantia de locais públicos como praças, brinquedotecas e espaços ao ar livre é uma das ações e promoções que constam no Plano Nacional pela Primeira Infância . O documento político e técnico, elaborado em 2010 e revisado em 2020 por organizações da sociedade civil, governo federal e do setor privado, orienta decisões, investimentos e ações de promoção dos direitos das crianças na fase de zero a seis anos.
Criança brinca em cama elástica na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro
“Brincar tem que ser levado muito a sério como política pública, com espaços públicos que garantam o direito à desconexão das telas e contato com a natureza. Quando olhamos para o modelo de planejamento urbano das cidades, muito disso foi suprimido ou concentrado nas áreas nobres”, afirmou ao Nexo JP Amaral, gerente de meio ambiente e clima do Instituto Alana, organização não-governamental que se dedica à infância.
60%
foi o aumento no uso de dispositivos eletrônicos por crianças durante o período agudo de isolamento social na pandemia de covid-19, segundo pesquisa do Instituto Alana.
Praças e parques que de fato atendam às crianças ainda são raros nas cidades, embora existam iniciativas pontuais. São Paulo inaugurou em julho a Praça São Sebastião, no bairro Ipiranga, projetada e com mobiliários e equipamentos voltados à primeira infância, como piso monolítico. Também há projetos em andamento em Recife.
A Praça São Sebastião no bairro Ipiranga, em São Paulo, construída para crianças na primeira infância
Na América Latina, Buenos Aires é uma referência positiva na promoção de espaços públicos lúdicos e seguros. Na capital argentina, a maioria desses ambientes, que lembram parques de diversão privados, são projetados pela empresa Cruci Juegos. Há pisos nivelados, parquinhos cercados, balanços apropriados para bebês e espaços adequados também para os cuidadores.
Após uma viagem de férias para Buenos Aires, a funcionária pública Dâmaris Thomazini notou o quanto a cidade onde mora, Curitiba, ainda carece de locais apropriados para crianças pequenas e seus cuidadores.
Depois de brincar nas praças portenhas com a filha Aurora, hoje com um ano e três meses, Thomazini criou o perfil @parquinhosdemerda no Instagram para avaliar os espaços públicos de Curitiba voltados à infância.
Por causa da repercussão do perfil, Thomazini foi contatada por vereadores, vereadoras e deputados estaduais, que cobraram providências da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, que trata de parques e praças.
Equipamentos que antes das denúncias do perfil estavam estragados ou inadequados foram consertados. Mas a realidade das praças no Brasil ainda é muito distante de Buenos Aires, avalia Thomazini.
“Meu olhar para a cidade mudou depois de eu ser mãe, infelizmente eu não teria esse olhar antes. E aí eu preferi expor isso no Instagram a mandar um e-mail que provavelmente seria engavetado. Mudar isso é uma questão de vontade política e de orçamento. Curitiba gastou R$ 3,8 milhões em estruturas temporárias [uma roda gigante e um carrossel instalados em comemoração ao aniversário da cidade, em março de 2023]. Existem centenas de estruturas permanentes que carecem de manutenção”, afirmou Thomazini ao Nexo .
Em postagem no Instagram, o cineasta Raphael Erichsen também exaltou as praças de Buenos Aires. De acordo com ele, os equipamentos lúdicos estão nas áreas nobres e também nas periferias. “São espaços seguros, cercados para as crianças não ‘fugirem’ e também com pais atentos que se ajudam. Um baita exercício de cidadania e convivência em larga escala. Só conseguia pensar, como podemos aprender com eles? Por que não temos nada parecido aqui [no Brasil]?”, escreveu Erichsen.
Praça para crianças em Buenos Aires
A pedagoga Francine de Paulo Martins Lima, da UFLA, frisa que, além de políticas públicas que fomentem espaços lúdicos nos grandes centros, é necessário um olhar para as crianças com deficiência. Segundo a Unicef, órgão da ONU para a infância, no mundo, há 240 milhões de crianças com deficiência.
Lima, que coordena a brinquedoteca da UFLA, projeto que atende cerca de 1.000 crianças por semestre, conta que a universidade vai instalar em breve um balanço para cadeirantes e gangorra para crianças portadoras de deficiência visual. “São crianças que, assim como as demais, têm o direito de brincar em espaços públicos, com equipamentos adaptados para elas. Mas não brincam, ou brincam menos do que poderiam, pela ausência desses equipamentos”, afirmou Lima ao Nexo .
ESTAVA ERRADO :Uma versão anterior deste texto dizia queLev Vygotsky (1896-1934) era psicanalista, mas ele era psicólogo. O texto foi corrigido às 17h32 de 13 de outubro de 2023.
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