O que o novo zoneamento de SP diz sobre o modelo de cidades
Mariana Vick
21 de dezembro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h17)Vereadores aprovam revisão de lei que deve definir crescimento da capital paulista. Texto apreciado em segundo turno foi apresentado dois dias antes de votação. O ‘Nexo’ conversou com duas urbanistas sobre os impactos da medida
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Construção de prédio residencial em São Paulo
A Câmara Municipal de São Paulo aprovou em segundo turno nesta quinta-feira (21) a revisão de sua lei de zoneamento. Foram 46 votos a favor e 9 contra a proposta, que vai ajudar a definir o crescimento da cidade nos próximos anos. O texto segue para sanção do prefeito Ricardo Nunes (MDB).
A votação foi marcada por controvérsias. Urbanistas criticam o conteúdo da proposta, que flexibiliza as regras para construção nos chamados miolos da cidade, e a forma como foi apresentada. O texto votado em segundo turno é diferente do aprovado na primeira votação e foi disponibilizado apenas dois dias antes da apreciação final, o que limitou o tempo para sua discussão em audiências públicas.
Neste texto, o Nexo explica o que é a lei de zoneamento, o que muda com o projeto aprovado e o que ele diz sobre o modelo de cidade adotado em São Paulo, segundo urbanistas. Mostra também como a tendência seguida na capital paulista se repete em outras cidades do Brasil e quais as críticas à falta de participação na votação do texto.
O zoneamento é o conjunto de regras que define as atividades que podem acontecer em uma cidade (como comércio, indústria, residências etc.). Determina também como as edificações devem ser construídas. Tanto a criação dessas regras quanto sua aplicação estão definidas na lei de zoneamento, que divide o território em zonas.
Também chamada por um nome mais longo — Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo —, a lei de zoneamento orienta, na prática, como a cidade cresce. É ela quem faz a aplicação do Plano Diretor , cuja revisão foi aprovada em São Paulo em junho. O texto tem a obrigação de seguir as diretrizes da principal lei de planejamento da cidade.
Ciclista passa por escritório de vendas de prédio residencial em construção em São Paulo
Está entre as atribuições da lei de zoneamento definir o uso de terrenos municipais (comerciais ou residenciais, por exemplo), o tipo de edificação permitida em determinadas áreas e a altura de edifícios (chamada de gabarito). Junto com isso, o texto estabelece as chamadas zonas. São Paulo, que tem uma ampla extensão territorial, tem várias delas, como:
A lei de zoneamento é importante para os moradores de uma cidade porque define “a cara” do ambiente urbano. As instruções do texto sobre o uso, a ocupação e o parcelamento do solo desenham os bairros e suas características, além de determinar seu número de habitantes. De forma indireta, o texto também influencia o preço dos imóveis e as condições ambientais locais — da resiliência de uma área a enchentes até a sombra dos prédios projetada sobre as ruas.
A lei atual de zoneamento de São Paulo foi aprovada em 2016, na gestão do então prefeito Fernando Haddad (PT). Desde 2017, no governo de João Doria (PSDB), a prefeitura desenvolve ajustes à lei, alguns contestados nos últimos anos. Depois da aprovação da revisão do Plano Diretor, no primeiro semestre de 2023, as propostas avançaram.
A prefeitura apresentou à sociedade a primeira versão final da revisão da lei de zoneamento em maio. O projeto foi enviado à Câmara Municipal em outubro, após consulta pública e alterações. A relatoria do texto ficou com o vereador Rodrigo Goulart (PSD), que também elaborou o relatório do atual Plano Diretor.
Movimento na rua 25 de Março, na área central de São Paulo
A votação da lei ocorre em dois turnos. A primeira apreciação ocorreu no dia 12 de dezembro, com 46 votos favoráveis e 8 contrários ao relatório de Goulart. O vereador apresentou na terça-feira (19), no entanto, uma nova versão do texto, nunca antes discutida, que continuou a ser alterada poucas horas antes da votação nesta quinta (21).
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audiências públicas ocorreram entre a apresentação do novo texto, na terça (19), e sua votação, na quinta (21); outras 33, realizadas antes, discutiram o projeto descartado na apreciação em segundo turno
A principal mudança no texto se refere aos chamados miolos dos bairros. As regras aprovadas permitem a construção de edifícios mais altos em áreas de São Paulo longe dos chamados eixos de mobilidade urbana (que têm estações de metrô, trem e corredores de ônibus), onde até então estavam concentrados os estímulos para novas edificações. medida tem potencial de alterar de forma significativa o planejamento da cidade.
Prédios mais altos
Segundo o texto aprovado, as chamadas ZCs (Zonas de Centralidade) e ZMs (Zonas Mistas), que compreendem os “centrinhos” e miolos dos bairros, terão permissão para a construção de prédios mais altos. Nos centrinhos, onde se concentram atividades empresariais, a altura máxima dos edifícios vai subir de 40 para 60 metros, desde que os prédios destinem parte da área ampliada para habitação social. Já nos miolos, que conciliam uso residencial e empresarial, o aumento será de 28 para 42 metros.
Gabaritos
Também há uma mudança na definição urbanística de gabarito. A atual lei entende o conceito como a altura máxima dos edifícios da cidade. O texto aprovado cria exceções para esse cálculo, propondo, em vez da altura total, que ele se torne “a diferença entre o pavimento térreo e o nível da cobertura” (excluindo casas de máquina, caixas d’água e sótãos), o que permitiria às construtoras ultrapassar os atuais limites de altura.
Eixos de mobilidade
Outro trecho da proposta aprovada na Câmara limita a expansão das chamadas Zeus, onde ficam os eixos de mobilidade urbana. Essas são as zonas onde há mais incentivos para novas construções desde a aprovação do Plano Diretor de 2014 e sua revisão em 2023. Atendendo a pedidos de associações de moradores, que reclamam da expansão urbana nessas áreas, o texto determina que haverá travas contra a construção de edifícios sem limite de altura se nas quadras existirem barreiras urbanas (como ferrovias) e ladeiras que dificultem o trajeto a pé.
Meio ambiente
A proposta ainda autoriza a construção de empreendimentos de habitação de interesse social nas chamadas Zepams (Zonas Especiais de Proteção Ambiental), onde hoje eles são proibidos. Quase todas as zonas da cidade aumentaram as permissões para edificações desse tipo. As exceções são áreas formadas por casas, com limite de altura baixo, como as as Zer (Zonas Exclusivamente Residenciais) e as ZPR (Zonas Predominantemente Residenciais).
Megatemplos e shoppings
Outro trecho do substitutivo libera a construção de shoppings e templos religiosos de megaporte. Segundo o texto, esses empreendimentos passarão a integrar a lista de exceções que não precisam obedecer ao tamanho máximo de terreno na área urbana de São Paulo, de 20 mil m², e de fachada, de 150 m². A proposta havia sido apresentada pela gestão Doria em 2017, quando foi criticada por associações que acusaram a prefeitura de querer criar “ilhas urbanas”, dificultando a circulação a pé.
O texto também propõe que a Câmara Municipal tenha poder de decisão sobre propostas de tombamento que alterem parâmetros urbanísticos ligados ao Código de Edificações ou ao zoneamento. Segundo o texto, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental) deve formular propostas do tipo e encaminhá-las à prefeitura, que então terá que enviar um projeto de lei para análise dos vereadores. Hoje essa decisão cabe ao Conpresp.
A aprovação das novas regras para o zoneamento em São Paulo tem potencial de dispersar a verticalização (ou seja, a construção de prédios altos) em São Paulo. Esse fenômeno muda o paradigma adotado desde a aprovação do Plano Diretor de 2014. Se, antes, os incentivos para edificações se concentravam em áreas próximas da infraestrutura de mobilidade, como corredores de ônibus e estações de metrô e trem, agora eles se ampliam para o restante do território.
A medida pode ter diversos impactos no cotidiano da cidade. Aumentar a oferta de empreendimentos nos miolos dos bairros pode sobrecarregar o trânsito em áreas que não têm à disposição tantos meios de transporte coletivos, por exemplo. As construções também podem atingir locais que não têm capacidade de suportar grandes adensamentos (como os que alagam) e afetar o patrimônio cultural, principalmente em bairros onde ele não é oficialmente reconhecido.
Trabalhadores em construção de edifício residencial em São Paulo
“O plano [diretor] de 2014 focava no desenvolvimento orientado ao transporte, o que se traduziu em áreas de grande incentivo à promoção imobiliária. Em vez de fazermos uma avaliação crítica [do que foi feito antes], alinhada às preocupações do urbanismo contemporâneo, houve apenas a ampliação dessas áreas”, disse ao Nexo Camila Maleronka, arquiteta e urbanista e professora do Insper. Paula Santoro, professora na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), acrescentou:
“Havia uma luta para que o plano [diretor] e o zoneamento olhassem para a cidade real, mas eles seguem não olhando. Viraram uma peça que apenas regula o mercado imobiliário e agora permitem que ele faça tudo”
Essa tendência não se limita a São Paulo, que triplicou sua produção imobiliária desde 2008. Outras cidades brasileiras têm apostado na expansão desse mercado. “[O mercado imobiliário] cresceu em importância no PIB [Produto Interno Bruto], gera empregos de forma rápida, ainda que precários, e não parou na pandemia. Ele vem como salvação em momentos de crise. A taxa de juros está alta, então vale a pena investir em imóveis. Há uma série de fatores que determinam esse modelo de cidade no país”, afirmou Santoro.
A proposta aprovada reproduz parte dos problemas vistos na votação em junho da revisão do Plano Diretor de São Paulo. Maleronka disse que tanto o atual plano quanto o zoneamento tiram a credibilidade do modelo de cidade que vinha sendo discutido na capital paulista em anos anteriores. Ambos também foram marcados pela restrição da participação:
“Esses são jabutis bem paulistanos. Como você muda trechos importantes [da proposta de revisão do zoneamento] da primeira para a segunda votação na Câmara? Em outras cidades não é assim. Pode-se emendar o texto, mas aqui tivemos uma mudança de mapa [das áreas afetadas pela construção de prédios mais altos]”
Maleronka faz críticas ao atual modelo de audiências públicas feito na Câmara. “As demandas [dos participantes das audiências] são muito pontuais. É raro ter um coletivo. Isso tem a ver com a proposta de cidade na pauta de São Paulo, que parece ser uma proposta de mediação de interesses individuais”, afirmou. Apesar disso, seria importante que o texto aprovado tivesse tido mais tempo para discussão nesses espaços — o que não ocorreu —, segundo ela.
Prédio da ocupação Prestes Maia, no centro de São Paulo
Outro aspecto da atual votação que repete problemas apontados durante a revisão do plano diretor é o impacto das novas construções para moradia. O texto aprovado do zoneamento diz que os empreendimentos devem fornecer habitação de interesse social, mas há possibilidades para que as unidades sejam ofertadas à classe média. “Quando falam em verticalização, é verticalização para quem? Com o adensamento construtivo dos últimos anos, não diminuímos o deficit de moradia em São Paulo — pelo contrário, ele cresceu — e os gastos com aluguel aumentaram”, disse Santoro.
Relator da revisão do zoneamento, Rodrigo Goulart rebateu as críticas. “A verdade é que a alteração permite mais habitação de interesse social nas demais áreas e não só nos eixos de transporte”, afirmou na terça (19), segundo o jornal Folha de S.Paulo. Nesta quinta (21), ele disse que a Câmara recebeu mais de 1.400 contribuições da sociedade, e “foram [feitos] os mais diversos esforços para atendermos tudo isso”.
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