Expresso

É hora de declarar a meta de 1,5ºC do clima como perdida? 

Mariana Vick

10 de fevereiro de 2024(atualizado 10/02/2024 às 19h27)

Estudo sugere que mundo aqueceu 1,7ºC desde era pré-industrial. Pesquisadores criticam conclusões. Discussão sobre objetivo do Acordo de Paris mobiliza cientistas

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FOTO: Mariana Nedelcu/Reuters - 07.fev.2024Mulher de meia-idade e regata vermelha se abana com leque.

Mulher se abana com leque durante onda de calor em Buenos Aires, na Argentina

Estudo publicado na segunda-feira (5) na revista científica Nature Climate Change sugeriu uma realidade dura: a de que o aquecimento global na Terra já teria ultrapassado 1,5ºC em relação aos níveis pré-industriais. A conclusão daria como perdida a principal meta do Acordo de Paris, maior tratado global sobre o clima. Pesquisadores viram problemas na publicação.

Acordada por mais de 195 países em 2015, a meta de limitar o aumento das temperaturas globais a 1,5ºC é mais segura do ponto de vista científico e perseguida em acordos internacionais desde então. Diferentes evidências mostram, no entanto, que há riscos de o mundo ultrapassar esse limiar. A discussão divide o mundo científico. 

Neste texto, o Nexo explica o que diz o estudo, quais são as críticas a ele e de onde vem a meta de 1,5ºC. Mostra também qual é o estado do objetivo estabelecido no Acordo de Paris, como cientistas veem o cenário e quais seriam os próximos passos caso o aquecimento ultrapassasse esse limiar. 

O que diz o estudo

A pesquisa, conduzida por cientistas da Austrália, dos Estados Unidos e de Porto Rico, sugere que a Terra estaria 1,7ºC mais quente em 2022 do que estava nos níveis pré-industriais. O aquecimento também estaria acelerando, com potencial de ultrapassar 2ºC no fim desta década, segundo o estudo. O ano de 2023 não aparece na análise. 

A conclusão contraria o consenso científico. Dados do sexto relatório de avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU) de 2021 mostram que a Terra aqueceu 1,2ºC — não 1,7ºC — desde a revolução industrial. Os pesquisadores de agora sugerem, no entanto, que o painel errou a conta por 0,5ºC. 

FOTO: Adnan Abidi/Reuters - 02.mai.2022Homem está curvado sobre muro baixo, colocando tijolos. Atrás dele, no canteiro de obras, há mulheres e outros homens.

Pessoas trabalham em canteiro de obras em Nova Déli, na Índia

O estudo se baseia na análise de um objeto inusitado: esqueletos de esponjas calcárias do mar do Caribe. Esses animais podem viver séculos, e sua estrutura pode ser usada em investigações sobre as condições ambientais dos oceanos ao longo do seu tempo de vida. Os pesquisadores analisaram a variação da proporção de átomos de estrôncio e cálcio depositados nas carapaças dos invertebrados para verificar como a temperatura da água mudou desde 1700.

A conclusão foi que entre 1770 — ano da invenção da máquina a vapor — e as primeiras medições diretas da temperatura global, em 1850, o mundo já havia sofrido um aquecimento importante. Os dados desse período, no entanto, não estão inclusos na chamada “temperatura pré-industrial” definida pelo IPCC, justamente porque não havia termômetros na época. Para os pesquisadores, esse parâmetro deveria mudar:

1850-1900

é o intervalo de tempo definido hoje como era pré-industrial 

1700-1860 

é o intervalo que deveria ser adotado, na avaliação dos pesquisadores;  mudança levaria a novas conclusões sobre aquecimento em relação à era pré-industrial, segundo eles

O que veio depois da publicação

A pesquisa recebeu críticas após a publicação. Parte da comunidade científica viu problemas na sua fonte de dados — as esponjas calcárias — por elas serem um único indicador. O estudo diz que o “termômetro interno” dos animais é compatível com diversas bases de dados sobre a temperatura dos oceanos em anos recentes, mas outros pesquisadores afirmam que são necessárias mais informações:

“As alegações de que os registros de uma única fonte podem definir com segurança o aquecimento médio global são provavelmente exageradas”

Gavin Schmidt

cientista climático da Nasa, a agência espacial americana, em comunicado sobre o estudo reproduzida pela emissora CNN

Outros cientistas desaprovaram a comunicação do estudo. Friederike Otto, do Imperial College de Londres, e Richard Betts, do Met Office britânico, afirmaram ao site The Carbon Brief que a maneira como os dados foram apresentados é “enganosa” e causa “confusão desnecessária”. Para eles, se o IPCC define como “pré-industrial” o período a partir de 1850, pouco é relevante para a meta de 1,5ºC se houve aquecimento antes disso.

FOTO: Louiza Vradi/Reuters - 1º.jul.2021Mulher com roupas pretas, segurando uma sacola, segura com a outra mão um pano azul em torno da cabeça. O dia está ensolarado.

Mulher protege rosto durante onda de calor em Atenas, na Grécia

Também há críticas às conclusões da pesquisa. Yadvinder Malhi, professor no Instituto de Mudanças Ambientais da Universidade de Oxford, afirmou que os dados das emissões de gases de efeito estufa produzidas até 1900 sugerem que elas não seriam suficientes para gerar 0,5ºC de aquecimento no século 19, como diz o estudo. Para ele, é mais provável que o aumento de temperaturas registrado de 1770 a 1850 tenha origem natural.

Além disso, há o temor de que os resultados do estudo desmobilizem o público no combate à mudança climática. Afinal, se a meta de 1,5ºC foi ultrapassada, qual o sentido do Acordo de Paris? Atingir 1,7ºC de aquecimento significa que tudo está perdido? Quais são as implicações de esse limite ter sido cruzado, caso os dados se confirmem?

De onde vem a meta de 1,5ºC

A meta de 1,5ºC não existia até o Acordo de Paris, assinado na COP-21 (Conferência das Partes da ONU) em 2015. Antes do tratado, as negociações climáticas perseguiam o limite de aquecimento de 2ºC. A ideia de que ultrapassar esse limiar traria impactos profundos para o clima vem da década de 1970 e foi incorporada à diplomacia nos anos 1990.

FOTO: Khalid Al-Mousily/Reuters - 15.jul.2023Quatro pessoas trabalham no campo. A imagem mostra apenas suas silhuetas. No alto, há o sol brilhante.

Agricultores manejam plantação de batata danificada por onda de calor em Mosul, no Iraque

O quadro mudou quando, anos depois, estudos começaram a mostrar que o aquecimento global geraria graves consequências para o planeta mesmo limitado a 2ºC. Países insulares, considerados os mais vulneráveis à mudança do clima por causa do aumento do nível do mar, passaram a pedir metas mais ambiciosas nas reuniões climáticas. As pressões resultaram em 2015 no texto de Paris, que estabeleceu um duplo objetivo:

“Manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e envidar esforços para limitar esse aumento da temperatura a 1,5°C em relação aos níveis pré-industriais, reconhecendo que isso reduziria significativamente os riscos e os impactos da mudança do clima”

Acordo de Paris

tratado global assinado por 195 países em 2015, na COP-21 

A meta de 1,5ºC pode ser considerada, nesse sentido, uma meta política. Estudos publicados com o passar dos anos, no entanto, mostraram que ela também faz mais sentido do ponto de vista científico. Relatório especial do IPCC de 2018 mostrou que permitir que as temperaturas globais subam 2ºC acima dos níveis pré-industriais pode trazer efeitos severos para a biodiversidade, os habitats naturais e o aumento do nível do mar.

Países industrializados e emergentes — como a China, maior emissor de gases de efeito estufa do mundo — protestaram contra a meta de 1,5ºC nos primeiros anos do tratado de Paris. Nações insulares e em desenvolvimento, no entanto, continuaram a reivindicá-la nas conferências do clima seguintes. Acordos assinados depois de 2015 ainda a usam como referência.

O que se sabe sobre a meta de 1,5ºC

Apesar da importância da meta de 1,5ºC, diferentes evidências mostram que limitar o aquecimento global a esse patamar é difícil. Mesmo depois da assinatura do Acordo de Paris, as emissões de gases de efeito estufa apenas cresceram. Projeções do IPCC mostram que há pelo menos 50% de chances de as temperaturas globais aumentarem acima da meta na próxima década.

28% a 42%

é quanto as emissões atuais terão que diminuir até 2030 para manter o aquecimento abaixo de 2ºC, e idealmente a 1,5ºC, segundo o relatório Emisson Gap Report, publicado em 2023 pela ONU

Dados divulgados na quinta (8) pelo Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus, da União Europeia, mostram um cenário ainda mais preocupante. Segundo as medições, o aumento da temperatura global de fato ultrapassou 1,5ºC entre fevereiro de 2023 e janeiro de 2024, período marcado pela influência do fenômeno El Niño. A alta não significa, no entanto, que o limite foi superado de forma permanente — é provável que o aquecimento diminua quando a anomalia passar.

FOTO: Amanda Perobelli/Reuters - 18.set.2023Pessoas caminham na rua. Há diversos prédios corporativos, com vidros espelhados. Numa área aberta, há uma instalação artística na forma de um ovo gigante derretido.

Pessoas caminham durante onda de calor em São Paulo

O quadro divide cientistas e ativistas pelo clima. Parte deles acredita que talvez seja a hora de declarar o objetivo de 1,5ºC como perdido, enquanto outros defendem que ainda é possível perseguir a meta. Essas discussões se intensificam à medida que saem novos dados sobre o aquecimento global. 

Quais são os argumentos

Falsas esperanças

Parte dos cientistas acredita que manter a meta de 1,5ºC no atual cenário dá ao público “falsas esperanças”. Também pode atrasar a implementação de medidas de combate à mudança climática. Em 2022, mais de 500 pesquisadores assinaram uma carta pedindo que a comunidade científica declarasse publicamente que ultrapassar 1,5ºC é inevitável.

“Falsas esperanças e narrativas permitem que as pessoas se alienem da realidade e não se tornem ativistas climáticos. Precisamos encontrar uma maneira de mobilizar essas pessoas inteligentes que, como todos nós, estão se sentindo sobrecarregadas e procurando desculpas para sentir que [a mudança climática] talvez não seja tão ruim quanto pessoas como eu dizem”

Peter Kalmus

cientista climático da Nasa que assinou a carta em 2022, em entrevista à revista Scientific American 

Falta de dados

Outros cientistas afirmam que é preciso haver mais dados para declarar que ultrapassamos 1,5ºC. Não basta que isso tenha ocorrido apenas em 2023, por exemplo. Tecnicamente, segundo eles, ainda é possível manter o aquecimento global nesse patamar — mesmo que parte das evidências mostrem que isso seja improvável. 

“Penso que é simplesmente uma desconexão entre o que é tecnicamente possível, mas não é politicamente possível. Poderíamos alcançar 1,5ºC se quiséssemos. A questão é que são as condições políticas que tornam isso impossível”

Marta Rivera-Ferre

cientista do Ingenio, instituto de investigação conjunto do Conselho Nacional de Investigação espanhol e da Universidade Politécnica de Valência, em entrevista à revista Scientific American

Desmobilização

Também há o temor da desmobilização. Para alguns pesquisadores, declarar como perdida a meta de 1,5ºC antes que haja dados mais robustos pode inibir a ação climática global, incentivando as pessoas a desistir de cobrar por ações contra a mudança climática. Também pode haver uma confusão sobre qual meta seguir a partir de então.

Resistência

Parte dos cientistas teme ainda que declarações que descartem a meta de 1,5ºC sejam recebidas com “resistência bastante agressiva” de cientistas e ativistas esforçados em segui-la. Ninguém quer ser acusado de cometer um “erro moral”. “De certa forma, você acaba se sentindo cético, ou como se estivesse desistindo de pequenos Estados insulares em desenvolvimento”, disse o pesquisador Glen Peters, do Centre for International Climate and Environmental Research, na Noruega, ao site E&E News.

O que viria depois de 1,5ºC

James Hansen, climatologista e ex-cientista da Nasa, disse ao jornal britânico The Guardian que “não estamos caminhando para um mundo de 1,5ºC, mas passando brevemente por ele em 2024”. O pesquisador é um dos céticos em relação ao objetivo do Acordo de Paris. A pergunta que fica, no entanto, é: o que fazer caso a meta realmente seja dada como perdida? Para onde ir depois disso?

Mesmo pesquisadores que defendem descartar a esperança em 1,5ºC afirmam que isso não significa desistir do combate à mudança climática. Para eles, é importante entender que uma meta não cumprida exige mais urgência — não menos — dos governos, empresas e indivíduos. Cada aquecimento adicional pode fazer a diferença. 

FOTO: Pilar Olivares/Reuters - 18.nov.2023Mulher negra, de cabelos cacheados e regata na cor preta, se refresca com água que cai de um regador azul pendurado num varal de roupas, durante o dia.

Relatório do IPCC de 2022 mostra, por exemplo, que com um aquecimento de 1,5ºC cerca de 350 milhões de pessoas serão expostas a escassez de água por conta de secas severas. Caso o valor suba para 2ºC, o número vai para 420 milhões — assim como 420 milhões de pessoas a mais vão estar expostas a ondas de calor extremas. 

Outros números mostram que, se em um cenário de aquecimento de 1,5ºC as chuvas torrenciais e furacões podem aumentar cerca de 7%, com 0,5ºC a mais o percentual vai para 15%. Em uma situação mais extrema, de 3ºC a 4ºC, Itália, Espanha e Grécia passariam a ter clima desértico. Com 5ºC a 6ºC, os furacões cresceriam em 37%, e o gelo reduziria em 75%.

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