Expresso

Como evitar o ‘ponto de não retorno’ na Amazônia

Mariana Vick

14 de fevereiro de 2024(atualizado 14/02/2024 às 16h51)

Estudo liderado por brasileiros e publicado na Nature afirma que floresta pode atingir até 2050 limiar capaz de desencadear transformações irreversíveis. Cientistas listam medidas para evitar cenário

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FOTO: Claudia Morales/Reuters - 22.nov.2023Imagem mostra silhuetas de pessoas em fila, usando chapéus. Atrás o céu está laranja por causa do fogo.

Bombeiros combatem incêndio na Amazônia boliviana, na cidade de San Buenaventura

Estudo publicado nesta quarta-feira (14) na revista científica Nature afirma que a Amazônia pode atingir até 2050 o chamado ponto de não retorno. O quadro indicaria o início do colapso do bioma, com a perda da paisagem de floresta tropical úmida. A pesquisa é liderada por pesquisadores brasileiros, com colaboradores da Europa e dos Estados Unidos.

Debatido ao menos desde os anos 1990, o ponto de não retorno é um conceito amplamente avaliado em estudos sobre a Amazônia. A pesquisa na Nature apresenta uma nova análise do tema a partir da revisão de diferentes artigos. Os autores detalham os principais fatores de estresse do bioma e sugerem medidas para reduzir os riscos. 

Neste texto, o Nexo explica o que é o ponto de não retorno, o que o estudo desta quarta (14) projeta para a Amazônia e quais podem ser os impactos de cruzar o limiar que hoje mantém a floresta tropical úmida. Mostra ainda como a pesquisa foi feita e o que fazer para evitar o cenário. 

O que é o ponto de não retorno

O ponto de não retorno é um limiar que, se ultrapassado, desencadeia a transformação de um ecossistema. É o limite crítico no qual uma pequena perturbação pode causar uma mudança abrupta na paisagem. O conceito vale para a Amazônia e para qualquer outro bioma (como o Cerrado, a Mata Atlântica, a Caatinga e até os biomas marinhos). 

Os ecossistemas atingem esse limite por causa de mudanças ambientais. Na Amazônia, que é uma floresta tropical úmida, a falta de água pode gerar esse tipo de estresse na vegetação. Quanto menos chuvas, menos capacidade o bioma tem de se sustentar, e em certo ponto ele pode assumir outra forma, como explica neste vídeo para o Nexo Políticas Públicas a pesquisadora Marina Hirota, uma das líderes do estudo desta quarta (14):

Diferentes fatores podem provocar o ponto de não retorno na Amazônia. Estão entre eles o desmatamento (que diminui a umidade local, por remover suas árvores), o aquecimento global (responsável pelo aumento da seca na região) e atividades que degradam o bioma, como incêndios. Todos têm ocorrido ao mesmo tempo e se reforçado, num ciclo que, no limite, pode tornar inviável a existência de uma floresta tropical.

A pesquisa desta quarta (14) analisa pela primeira vez esses fatores de estresse em conjunto. “Todos levam para um único ponto de não retorno”, disse ao Nexo Bernardo Flores, pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ecologia da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e um dos líderes do estudo. Até então, os artigos tratavam cada variável de forma isolada:

“A maioria dos trabalhos sobre o ponto de não retorno são modelos. Parte deles tenta entender como a Amazônia vai responder ao aquecimento global. Outra linha de trabalho tem olhado o papel do desmatamento. Esses estudos mostraram dois pontos de não retorno diferentes. Revisamos diferentes fatores que estressam a Amazônia para chegar a um único ponto”

Bernardo Flores

pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ecologia da UFSC e um dos líderes do estudo, em entrevista ao Nexo 

O que acontece depois dele

A pesquisa desta quarta (14) mostra diferentes cenários para a Amazônia caso ela cruze o ponto de não retorno. Três tipos de vegetação podem dar lugar à atual floresta tropical úmida: florestas degradadas, áreas sem floresta (com poucas árvores e gramíneas) também degradadas e savanas de areia branca nativas da Amazônia. 

A “savanização” produziria uma paisagem parecida com a do Cerrado, bioma que ocupa grande parte do Brasil, principalmente no Centro-Oeste. Flores, no entanto, explicou que a nova vegetação não seria exatamente como a savana brasileira. O Cerrado não é degradado como a Amazônia seria após o ponto de não retorno, segundo ele.

FOTO: Ueslei Marcelino/REUTERS - 22.AGO.2019Vista aéra de trecho de terra batida da BR-319. Ao lado, floresta com alguns pontos de desmatamento.

Trecho de terra batida da BR-319

Essas transformações provavelmente não ocorreriam da mesma forma em toda a vegetação. A Amazônia é um bioma heterogêneo, e há nela áreas mais vulneráveis ao “colapso” — como as bordas leste e sul, onde há mais desmatamento — do que outras, que são mais resilientes. “A Amazônia é um sistema complexo. Há vários tipos de floresta”, disse o pesquisador.

Essas mudanças poderiam causar impactos ambientais, sociais, culturais e econômicos — e não apenas sobre as populações locais. A Amazônia tem papel na regulação do clima e da umidade no Brasil e na América do Sul, e sem a floresta haveria menos chuvas. Setores como o de agricultura e energia no Centro-Oeste e Sudeste brasileiros provavelmente perderiam produtividade sob outras condições climáticas.

“Quando muda o ecossistema, muda toda a biodiversidade. As espécies são substituídas por outras. O tipo de solo muda, os rios se modificam, modifica tudo. […] A Amazônia contribui para o balanço energético da atmosfera. Haveria menor fluxo de umidade para outras partes do mundo, sem falar que a emissão de gases de efeito estufa estocados na floresta aceleraria”

Bernardo Flores

pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ecologia da UFSC e um dos líderes do estudo, em entrevista ao Nexo 

O que fazer para evitar o cenário

Apesar das projeções de que o ponto de não retorno pode ser cruzado até 2050, Flores afirmou que ainda há tempo de evitá-lo. Adotar medidas que aumentem a resiliência da Amazônia é importante para manter a floresta da forma como está, segundo ele. A pesquisa define como “resiliência ecológica” a capacidade de um ecossistema de “persistir com estrutura, funcionamento e interações semelhantes” às originais, “apesar de perturbações que o empurram para um estado alternativo”.

Frear o desmatamento e a degradação florestal (que ocorre por meio de queimadas, por exemplo) são duas das principais ações para promover a resiliência da Amazônia, de acordo com o estudo. Em paralelo, é preciso expandir as iniciativas de restauração. “Precisamos aumentar a floresta, recuperar as perdas e ter mais produção de chuva”, afirmou o pesquisador.

FOTO: Divulgação/MPFVista aérea de dois barcos com dragas fazendo garimpo ilegal em rio no meio da Amazônia

Dragas fazem garimpo ilegal no rio Jandiatuba, em São Paulo de Olivença (AM)

Essas iniciativas devem partir tanto dos países amazônicos como da comunidade internacional — que, apesar de não ocupar a floresta, pode apoiar medidas para redução do desmatamento. “As atividades que precisam se encerrar [desmatamento e queimadas] são as que afetam a floresta em larga escala”, disse Flores. “Não considero atividades locais de povos indígenas, como manejo de florestas.”

Outra medida que deve ser adotada por um amplo conjunto de países é a redução das emissões de gases de efeito estufa. “Mesmo sem desmatamento, o aquecimento global é responsável por um clima que a Amazônia nunca viveu em milhares de anos. Há uma combinação de seca e calor que nunca houve antes, com distúrbios em larga escala”, afirmou o pesquisador.

Como o estudo foi feito

A pesquisa revisou estudos sobre modelos estatísticos, dados de observação da vegetação da Amazônia e a chamada paleoecologia (área do conhecimento que mostra como os ecossistemas mudam ao longo da história da Terra). Além de Flores, a pesquisadora Marina Hirota, também da UFSC, foi uma das líderes do trabalho. O apoio foi do Instituto Serrapilheira.

A iniciativa foi inspirada no chamado Painel Científico para a Amazônia. O grupo — composto por mais de 200 pesquisadores de oito países amazônicos, além da Guiana Francesa e outros parceiros — se reuniu em 2021 para debater, analisar e reunir o conhecimento acumulado sobre a região. Mais de 20 pesquisadores assinam o artigo desta quarta (14).

FOTO: Fernando Augusto/Ibama/Wikimedia CommonsQuatro pessoas com uniformes verdes do Ibama estão em pé, de costas para a câmera. Ao redor delas, há toras de madeira. Ao fundo, está uma floresta verde e densa.

Fiscais do Ibama em operação contra desmatamento ilegal em Espigão do Oeste (RO)

Flores afirmou que ainda há muitas incertezas sobre o tema, mesmo no meio acadêmico. “Não sabemos exatamente quando [o ponto de não retorno pode vir], mas não queremos pagar para ver”, disse o pesquisador. Essas incertezas se devem aos diversos fatores que podem influenciar a chegada a esse limiar — se o desmatamento acelerar, por exemplo, é provável que ele seja cruzado antes; se não, pode ser que seja possível evitá-lo ou adiá-lo.

Parte da comunidade científica questiona as projeções em relação ao ponto de não retorno. Para esses pesquisadores, estudos que preveem a “savanização” da floresta podem estar subestimando sua capacidade de se adaptar à perda de umidade e ao aumento das temperaturas. Apesar disso, especialistas defendem que esse risco deveria bastar para a adoção de medidas que possam evitar o pior cenário.

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