Como a urbanização brasileira aumenta a incidência de dengue
Mariana Vick
05 de abril de 2024(atualizado 06/04/2024 às 19h56)Dados do Ministério da Saúde mostram Brasil prestes a bater recorde de mortes por doença. Adaptação do Aedes aegypti ao ambiente das cidades ajuda a explicar epidemias das últimas décadas
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Agente de saúde aplica larvicida para combater larva do Aedes aegypti em ferro velho em São Paulo
Dados do Ministério da Saúde mostram que o Brasil está a poucos casos de bater o recorde histórico de mortes por dengue. Foram confirmados até esta sexta-feira (5) 1.078 óbitos pela doença desde o início do ano. O número mais alto registrado no país em 12 meses até agora foi de 1.094 em 2023.
2.747.643
é a quantidade de casos prováveis de dengue registrados pelo Ministério da Saúde até esta quinta (4); número é o recorde anual do Brasil desde o ano 2000
A crise sanitária sem precedentes que o país atravessa pode ser explicada por diferentes motivos. Além de fatores como a mudança climática e o fenômeno El Niño, o padrão de urbanização brasileiro contribui para a alta incidência da doença. O crescimento desordenado e a ausência de políticas públicas transformam as cidades em berços de criadouros do mosquito Aedes aegypti.
Neste texto, o Nexo lembra o que é a dengue, como sua transmissão funciona e qual é o seu histórico no Brasil. Mostra também como estudos relacionam as epidemias recentes da doença à configuração das cidades e quais são as possíveis medidas para enfrentar o cenário, que não deve desaparecer nos próximos anos.
A dengue é uma doença causada por um vírus transmitido pela picada da fêmea do mosquito Aedes aegypti. Costuma causar febre, dores no corpo e erupções cutâneas. Em um número menor de casos, pode provocar hemorragias, aumentando as chances de quadros graves e morte.
Mosquitos Aedes aegypti com a bactéria Wolbachia são lançados em teste em Singapura
O vírus da dengue tem quatro sorotipos (chamados informalmente de 1, 2, 3 e 4), e cada um apresenta diferentes variações genéticas. As diferenças entre eles são pequenas, e todos têm os mesmos sintomas. Quando uma pessoa é infectada pela segunda vez, há maior probabilidade de evolução direta para quadros graves de dengue.
A transmissão da dengue aumenta nos meses mais chuvosos do ano, que no Brasil são geralmente de novembro a maio. O acúmulo de água parada contribui para a proliferação do Aedes aegypti e, consequentemente, para a maior disseminação da doença. Eliminar os criadouros do mosquito é uma das medidas mais eficazes para seu controle.
A dengue é uma doença muito presente na história recente do Brasil. Nem sempre, no entanto, foi assim. O Aedes aegypti chegou a ser erradicado do território nacional na década de 1950, depois de algumas epidemias e de anos de medidas para seu controle (não exatamente por causa da dengue, mas da febre amarela), e assim a situação ficou por anos.
O quadro mudou em 1976, quando houve uma reemergência do mosquito, que persistia nos países vizinhos e entrou no Brasil após falhas de vigilância epidemiológica. O Aedes já havia ressurgido e depois erradicado de novo em outras ocasiões. Desta vez, no entanto, ele resistiu às medidas de controle, e a primeira epidemia importante de dengue da segunda metade do século 20 ocorreu em 1982, em Roraima.
Crianças correm após fumigação de bairro em Brasília
“Na década de 80, quase todas as cidades litorâneas do Brasil apresentaram registros do mosquito Aedes aegypti que, nos anos seguintes, expandiram-se também para o interior do país”, segundo artigo publicado em 2009 na revista científica Sociedade & Natureza. O número de casos cresceu consideravelmente na década de 1990, chegando às centenas de milhares. Epidemias ainda maiores ocorreram nos anos 2000.
Infecções
Óbitos
A reemergência de epidemias de dengue pode ser atribuída a diversos fatores, que não foram totalmente compreendidos na época. Hoje se sabe, porém, que um deles foi a mudança pela qual passaram as cidades na segunda metade do século 20. Os intensos fluxos migratórios rurais-urbanos resultaram num “inchaço” das cidades, que não acolheram os novos moradores, como conta um artigo de 2001 publicado na revista Cadernos de Saúde Pública, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz).
As cidades médias e grandes do Brasil cresceram de forma acelerada e desordenada, com avanço sobre fundos de vales e rios e uma série de modificações no ambiente natural. A expansão urbana produziu bairros de periferia com altíssima densidade de pessoas e uma pequena quantidade de áreas verdes. O Aedes aegypti se adaptou a esses ambientes, por ter encontrado com facilidade alvos para alimentação (sangue humano).
Agente de saúde usa inseticida para matar Aedes aegypti durante epidemia de dengue em Ceilândia, Brasília
A ausência de duas políticas públicas, habitação e saneamento básico, contribuíram para o cenário. Sem abastecimento de água e coleta de lixo, bairros recém-criados das áreas urbanas ficaram vulneráveis ao surgimento de criadouros do Aedes aegypti. O mosquito, afinal, se reproduz no entulho e em pontos de água suja e parada (onde as fêmeas também botam seus ovos).
Somado a isso, o artigo da revista Cadernos de Saúde Pública cita o impacto da indústria. Segundo o texto, o sistema produtivo industrial moderno “produz uma grande quantidade de recipientes descartáveis, entre plásticos, latas e outros materiais, cujo destino inadequado, abandonados em quintais, ao longo das vias públicas, nas praias e em terrenos baldios” cria possíveis criadouros de mosquitos.
O quadro em que a dengue voltou a emergir no Brasil não é tão diferente do atual. Dados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) estimam que há 17,9 milhões de moradores em comunidades, áreas onde costumam se concentrar os problemas associados à doença. A falta de acesso a saneamento também atinge milhões:
100 milhões
de pessoas não têm rede de esgoto no país, segundo dados divulgados em 2023 pelo Instituto Trata Brasil
35 milhões
de pessoas não têm acesso a água potável, segundo os mesmos dados
Gerson Salvador, médico infectologista e autor de um blog sobre saúde no jornal Folha de S.Paulo, escreveu em março no X (antigo Twitter) sobre os desafios de enfrentar a doença. Atuando no combate à dengue em 2013 em São Paulo, disse ter encontrado diversas pessoas numa comunidade acumulando tonéis de água. Quando um colega alertou do risco de dengue, soube que aquela era a única água disponível ali:
Todos os líderes comunitários reforçaram que não tinha água regular nas suas comunidades. 20 milhões de pessoas vivem em favelas no Brasil, muita gente em região de manancial, ocupação sem acesso a esgoto e água. Inclusive nessa metrópole a mais rica do Brasil.
— Gerson Salvador (@gersonsalvador) March 14, 2024
“Naquele dia eu entendi em definitivo que a dengue não é apenas uma doença das pessoas, é uma doença também das cidades, muito desiguais”, escreveu o médico. “Precisamos sim cuidar de vasos, de pneus, da água parada, fumacê etc, tudo reduz danos. Mas para vencer a dengue precisamos ter uma agenda de inclusão: água limpa e esgoto tratado para todos”, disse.
Em tese de doutorado defendida em 2013 na Fiocruz, o pesquisador Marco Aurélio Pereira Horta avaliou dados sobre a dengue de 14 anos numa cidade de Minas Gerais. O estudo concluiu que as características socioeconômicas das áreas de transmissão podem influenciar a incidência da doença. O texto ponderou, ao mesmo tempo, que “muito dessas relações possuem o efeito imensurável da realidade local, que muitas vezes não pode ser repetido ou incluído em modelos […] em outras regiões geográficas”.
Essas informações mostram que combater a dengue depende de ações individuais e coletivas. Grande parte das campanhas de comunicação sobre prevenção da dengue se dirigem aos indivíduos (afinal, é nas casas que se encontra a maior parte dos criadouros, segundo pesquisadores). Também é possível, porém, cobrar do poder público políticas públicas que tornem a sociedade menos vulnerável à doença.
O combate à dengue depende de ações do governo federal, dos estados e dos municípios. A responsabilidade pelas políticas da área é compartilhada. Melhorar as condições de vida nas cidades, embora seja uma tarefa mais identificada com as prefeituras, também pode contar com contribuições dos dois outros entes (capazes de investir em setores caros como habitação e saneamento, por exemplo).
Agente de saúde verifica caixa d’água em casa em São Paulo à procura de mosquito da dengue
Junto com isso, é importante que as pessoas mantenham as medidas de prevenção para atenuar a incidência de dengue. Para reduzir a infestação de mosquitos, o ministério da saúde recomenda eliminar criadouros e manter cobertos os reservatórios e locais com acúmulo de água. Outras ações eficazes são o uso de repelentes e a instalação de telas e mosquiteiros em casa.
O SUS (Sistema Único de Saúde) aplica a vacina contra a dengue desde fevereiro na rede pública. A campanha de imunização é exclusiva para crianças e adolescentes de 10 anos completos a 14 anos de idade. Mais de 670 municípios já receberam ou ainda receberão doses neste ano para aplicar em suas populações.
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