Expresso

Como uma cheia histórica mudou Porto Alegre há 83 anos

Mariana Vick

03 de maio de 2024(atualizado 29/05/2024 às 13h55)

Enchente em 1941 deixou cerca de um quarto dos habitantes da capital gaúcha desabrigados. Nível do lago Guaíba no desastre de agora ultrapassou recorde registrado na época

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FOTO: Reprodução/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim FelizardoImagem em preto e branco andando de barco no meio da cidade, que está alagada.

Enchente em Porto Alegre em 1941

A enchente que atinge Porto Alegre bateu um recorde. O lago Guaíba, que banha a capital e outros municípios do Rio Grande do Sul, superou 5 metros neste sábado (4). Antes disso, o maior nível já registrado na região foi de 4,76 metros, na histórica cheia de 1941. 

A inundação ocorrida 83 anos antes tinha sido a pior da capital gaúcha. Cerca de um quarto de seus habitantes ficaram desabrigados, o que motivou as autoridades a instalar um sistema de prevenção nos anos seguintes. A cidade, no entanto, não está livre dos problemas associados às chuvas, cada vez mais intensas e frequentes no contexto da mudança climática.

Neste texto, o Nexo explica o que foi a cheia de 1941, quais foram seus impactos sobre Porto Alegre e o que mudou na cidade desde então para prevenir tragédias como aquela. Mostra ainda quais são os problemas que persistem na capital gaúcha e o que é preciso fazer para evitar mais desastres no cenário atual. 

O que foi a cheia de 1941

A cheia de 1941 foi um evento que ocorreu entre os meses de abril e maio daquele ano. Chuvas concentradas por 22 dias se distribuíram na chamada bacia hidrográfica da Lagoa dos Patos e contribuíram para a elevação do nível de seus rios, incluindo o Guaíba. O pico foi registrado no dia 8 de maio, com grande impacto sobre Porto Alegre e sua região metropolitana.

4,76 metros

foi a maior marca registrada pelo lago Guaíba em 1941 

Apenas em Porto Alegre, estima-se que a cheia tenha inundado 15 mil casas e deixado 70 mil pessoas desabrigadas — cerca de um quarto da população da cidade, que na época era de 272 mil habitantes. O centro ficou debaixo d’água, e barcos se tornaram o principal meio de transporte. Outras consequências do desastre foram: 

  • a falta de água e energia elétrica
  • a suspensão de atividades de empresas
  • a destruição da ferrovia do município, a Ferrovia do Riacho
  • a proliferação de doenças (por conta da contaminação da água)
  • prejuízos calculados em US$ 50 milhões

Ficaram entre as áreas mais atingidas os bairros do Centro, Navegantes, Passo D’Areia, Menino Deus e Azenha. Pontos tradicionais da cidade, como o Mercado Público, a Prefeitura Municipal e a Rua da Praia, também foram afetados. As escolas, com as aulas suspensas, se transformaram em abrigos para as pessoas desabrigadas.

A enchente começou lenta, o que permitiu às pessoas deixarem suas casas. O então governador do Rio Grande do Sul, Cordeiro de Farias, e o então prefeito de Porto Alegre, Loureiro da Silva, criaram uma força-tarefa para atender aos afetados. A gasolina foi cortada, os preços dos alimentos foram tabelados e o contingente inteiro das Forças Armadas no Rio Grande do Sul foi acionado.

O que mudou na cidade desde então

A enchente de 1941 motivou as autoridades de Porto Alegre a construir um sistema de proteção contra cheias. O complexo é composto por 68 km de diques, 2.647 metros do chamado Muro da Mauá — que, com três metros de altura e 14 comportas de vedação, afasta o centro da cidade do lago Guaíba — e 19 casas de bombas. Fazem parte do sistema ainda a rodovia freeway e as avenidas Edvaldo Pereira Paiva, Ipiranga e Diário de Notícias.

As estruturas foram construídas ao longo do tempo. A inauguração do Muro da Mauá, por exemplo, é de 1972 — cinco anos depois de Porto Alegre também ter enfrentado outra grande enchente, em 1967. Lugares como o centro e a zona norte da cidade estão entre os mais protegidos pelo sistema, enquanto a região das ilhas, a zona sul e cidades do outro lado da costa são mais vulneráveis a cheias.

FOTO: Eduardo Leite/Mauricio Tonetto/via REUTERS

Vista aérea da região das ilhas do Guaíba

Diques são um tipo de barragem, que pode ser feita de qualquer material (concreto, terra etc.), para desviar ou conter a invasão da água do mar ou de um rio. Comportas, como as que há em alguns desses diques e no Muro da Mauá, são portas móveis também com o objetivo de conter a água. Já as casas de bomba servem em Porto Alegre para bombear as águas da chuva para o Lago Guaíba e o Rio Gravataí.

83 bombas

dentro dessas casas têm capacidade de bombear 159 mil litros de águas pluviais por segundo, segundo informações do site da prefeitura de Porto Alegre

As estruturas são consideradas as responsáveis por terem evitado ou amenizado desastres em Porto Alegre como o de 1941. O Muro da Mauá, ao mesmo tempo, foi motivo de divergências nos últimos anos. Autoridades como o prefeito Sebastião Melo (MDB) e o governador Eduardo Leite (PSDB) já defenderam sua derrubada, por esconder a visão do Guaíba.

Quais problemas surgiram desde então

Apesar das mudanças, as construções feitas desde a enchente de 1941 não eliminaram os problemas de Porto Alegre. Não é toda a cidade, afinal, que está protegida pelo sistema anticheias — a região do cais, por exemplo, está nesta sexta (3) debaixo d’água, por estar entre o Guaíba e o Muro da Mauá. As comportas também têm falhas de vedação —  que, em caso de chuvas mais fortes, como a desta semana, não consegue conter toda a água:

Além disso, outros fatores que surgiram na cidade depois de 1941 a tornam mais vulnerável às chuvas. Clarice Oliveira, professora do Propur-UFRGS (Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e copresidente do departamento gaúcho do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), disse ao Nexo que, com o crescimento da cidade, também cresceram as construções em áreas de risco:

“Algumas favelas aqui de Porto Alegre, que a gente chama de vilas, são construções em áreas de morros, que estão sob riscos de deslizamentos. Não há infraestrutura urbana nem drenagem [sistema de coleta de água que a leva para galerias pluviais até que chegue a um curso hídrico, como um rio]. As casas têm más condições, por terem sido construídas sem o devido procedimento técnico”

Clarice Oliveira

professora do Propur-UFRGS (Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e copresidente do departamento gaúcho do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), em entrevista ao Nexo

Fora dos morros, há também áreas sob risco de inundação, por estarem próximas de cursos d’água. Não há políticas públicas, segundo Oliveira, para retirar as pessoas desses locais e dar a elas moradia digna. Esse problema não é exclusivo de Porto Alegre, mas de diversas cidades do Brasil, como conta Renata Moura Sena, professora de economia na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em infraestrutura:

“Historicamente, na ocupação das grandes cidades, há famílias que se instalam em locais que são áreas de risco. O poder público acaba sendo leniente com isso — não há remoção para bairros mais adequados, e ocorre a urbanização dessas áreas. Quando acontece um evento climático extremo, temos esses desastres” 

Renata Moura Sena

professora de economia na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e especialista em infraestrutura, em entrevista ao Nexo 

Em áreas como a região das ilhas, que também não têm proteção, habitações de baixa renda coexistem com casas de veraneio de alta renda, segundo Oliveira. “O problema não está na população. Há uma discussão que diz que os problemas ambientais existem porque pessoas pobres ocupam áreas que não deveriam ser ocupadas. Esse exemplo mostra que não”, disse.

O que fazer para melhorar a situação

Oliveira afirmou que, desde sua construção, esta é a primeira vez que o sistema anticheias está sendo de fato “testado”, já que é a primeira vez que a cheia do Guaíba ultrapassa o nível histórico de 1941. Falhas como a da vedação das comportas do Muro da Mauá deixaram as avenidas próximas à construção debaixo d’água, criticou. Apesar disso, o sistema ajuda a cidade por desacelerar o avanço da enchente.

“A água está entrando no centro histórico, mas aos poucos”, disse. “Isso é importante porque dá tempo de pedir para as pessoas saírem dos lugares. Não é possível reverter danos materiais [causados por uma enchente], mas é possível salvar vidas. Embora não esteja funcionando na sua plenitude, ele está tendo efeito prático.” 

Para ela, mitigar o problema das enchentes depende de medidas locais e regionais para gestão das bacias hidrográficas do Rio Grande do Sul. Além disso, as chamadas soluções baseadas na natureza — como o reflorestamento e o aumento de pisos permeáveis, que ajudem a drenar a água das cidades — podem tornar Porto Alegre mais resiliente. Ela também defende mudanças no plano diretor, que está em processo de revisão na capital gaúcha:

“Os planos diretores precisam estar relacionados à emergência climática. Existe muita discussão na revisão do plano diretor de Porto Alegre sobre a densificação [ou seja, construção de mais prédios] de partes da cidade sem sabermos se há infraestrutura condizente. Existem projetos para edifícios sem limite de altura, por exemplo”

Clarice Oliveira

professora do Propur-UFRGS (Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e copresidente do departamento gaúcho do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil), em entrevista ao Nexo

Sena afirmou que também é preciso que o poder público mapeie áreas de risco e estime os custos de buscar alternativas mais seguras para a população. “Enquanto não é mostrado quanto se tem de prejuízo [com desastres], o investimento para mitigar esse tipo de evento sempre vai ser considerado muito alto”, disse. Medidas regulatórias — como a criação de mecanismos para que não só o governo, mas a iniciativa privada contribua com recursos para mitigar desastres — também podem ajudar, segundo ela.

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