Expresso

Como o gás natural compromete a transição energética

Mariana Vick

12 de junho de 2024(atualizado 12/06/2024 às 15h04)

Longe de ser opção para economia de baixo carbono, combustível tem sabotado investimentos em fontes renováveis, segundo relatório. Setor se expandiu no Brasil nas últimas duas décadas

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FOTO: PAC/FlickrTermelétrica Candiota 3, no Rio Grande do Sul. Uma usina de energia termelétrica em funcionamento. Uma chaminé ao lado com fumaça saindo do topo

Termelétrica Candiota 3, no Rio Grande do Sul

O gás natural tem sabotado os investimentos em fontes de energia limpas e renováveis no Brasil, segundo relatório publicado nesta quarta-feira (12) pela Coalizão Energia Limpa, formada por oito organizações da sociedade civil. 

O aumento dos investimentos no combustível nas últimas décadas o tornou cada vez mais relevante na geração elétrica nacional. O produto deixou de ser um complemento acionado em momentos de crise para abocanhar fatia significativa dos recursos para o setor, segundo o texto.

Os impactos dessa decisão, que incentiva uma das fontes de energia responsáveis pela mudança climática, vão do meio ambiente à tarifa da conta de luz.

Neste texto, o Nexo apresenta os principais resultados do estudo, mostra como o gás natural tem sido explorado e explica como ele, segundo pesquisadores, atrapalha a transição energética no país. 

O que é o gás natural

O gás natural é um combustível que fica geralmente em camadas profundas do subsolo. É composto na maior parte por metano, misturado com outros hidrocarbonetos leves, como o gás etano. O produto pode ou não estar dissolvido em petróleo, mas, no Brasil, é encontrado majoritariamente associado à substância. 

O combustível é utilizado para diversas finalidades, seja na geração de energia, na indústria ou no abastecimento de veículos e navios. Os principais consumidores do produto no Brasil são as indústrias química, metalúrgica, de fertilizantes e de cerâmicas, além das usinas de energia termelétrica. O uso residencial também é comum: é esse o gás encanado que chega às casas dos brasileiros – de composição diferente da do gás de cozinha, que é vendido em botijões.

FOTO: Divulgação/Ascom MPOG / PACLinha de Transmissão – Tucuruí – Macapá – Manaus

Linha de Transmissão – Tucuruí – Macapá – Manaus

O gás natural não é a principal fonte de eletricidade no Brasil, dado o protagonismo das usinas hidrelétricas. O país, no entanto, tem investido no aumento da demanda e uso do combustível, principalmente no setor elétrico. Leis e programas de incentivo ao seu uso têm feito com que ele tome parte significativa dos investimentos na infraestrutura de geração elétrica no Brasil, segundo o relatório.

O setor de gás tem se esforçado para apresentar o combustível como uma alternativa barata e limpa a outras fontes fósseis, como o carvão e o petróleo. O argumento tornou-se atraente para governos, que passaram a tratá-lo como combustível de transição. O gás, no entanto, ainda gera emissões de gases de efeito estufa — embora menos que o carvão e o petróleo —, além de estar associado a outros problemas ambientais.

O que mudou no seu uso em 20 anos

A participação do gás natural na geração elétrica brasileira cresceu nas últimas duas décadas, segundo a publicação desta quarta (12). O quadro de desabastecimento e os riscos de “apagões” registrados depois do apagão de 2001 motivaram reformas do setor. O país era então muito mais dependente das hidrelétricas do que é hoje, e o governo buscou diversificar o setor para evitar novos problemas.

Os primeiros anos da década de 2000, no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, foram marcados pelo início do programa Luz para Todos, pela expansão do Sistema Interligado Nacional de energia e pela descoberta do pré-sal. Esses eventos fortaleceram a Petrobras e a indústria de petróleo e gás no Brasil. Novas políticas foram implementadas nos governos Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro.

FOTO: Paulo Whitaker/ReutersLogo de empresa petrolífera brasileira em instalação no estado de São Paulo

Tanque da Petrobras, em planta da empresa estatal na cidade de Cubatão

Esse novo modelo do setor elétrico previa a manutenção da geração hídrica para atender à base da curva diária de carga elétrica e a contratação de termelétricas para atender ao pico da carga ou complementar períodos de estiagem nos reservatórios das hidrelétricas. As medidas promoveram, no entanto, forte expansão do uso de gás e outros combustíveis fósseis. O país também registrou o crescimento das fontes eólica e solar, mas não da mesma forma.

O auge dos incentivos para o setor nos anos recentes ocorreu em 2021, quando houve uma crise hídrica e aumento da operação de termelétricas para minimizar o risco de racionamento de eletricidade. O país também importou gás natural e contratou novos projetos de usinas. A lei 14.182, que privatizou a Eletrobras, instituiu num “jabuti” (texto sem relação com o objetivo central da proposta) a inserção de 8 GW (gigawatts) em termelétricas a gás no Sistema Interligado Nacional (SIN) entre 2026 e 2030.

Quais são os impactos das decisões

A publicação argumenta que a expansão do gás natural na geração elétrica brasileira desviou “recursos públicos e esforços políticos da descentralização e diversificação” do setor. O quadro aumenta o preço das tarifas de luz, compromete metas climáticas e atrasa a transição para uma economia de baixo carbono. Os esforços empregados no uso do combustível, afinal, poderiam ter sido voltados para fontes não poluentes, segundo o texto.

Estimativas citadas na publicação indicam que, entre 2018 e 2022, foram oferecidos cinco vezes mais subsídios aos combustíveis fósseis do que às fontes de energia renovável, por exemplo. Já em 2023, o Programa Plurianual enviado pelo governo ao Congresso Nacional considerou ao Programa Transição Energética apenas 0,2% dos valores alocados para o Programa Petróleo, Gás, Derivados e Biocombustíveis. Os investimentos ainda são desproporcionais.

FOTO: FOTO: Bruno Kelly/Reuters - 23.ago.2021paineis solares enfileirados

Painéis solares em Manaus

Mais de 70 novas térmicas estão em fase de estudo e planejamento no Brasil, de acordo com o banco de Sistema de Informações de Geração da Aneel em consulta feita em fevereiro de 2024. O país também sinaliza que deve ampliar a importação de gás natural dos Estados Unidos. Há 21 projetos de novos terminais de gás natural e 12 projetos de terminais de regaseificação no país, além dos cinco já existentes.

Essas iniciativas não ocorrem sem reação da sociedade civil. O relatório destaca campanhas feitas nos últimos anos que contribuíram para a divulgação de dados sobre o tema e resultaram em menor quantidade de blocos de óleo e gás vendidos em leilões. Essas iniciativas, no entanto, não frearam os investimentos nos combustíveis, que se mantêm no atual governo, apesar das promessas de combate à mudança climática.

Quais são os danos ambientais

A geração termelétrica movida a combustíveis fósseis, como o gás, acarreta impactos ambientais, sociais e econômicos “que envolvem toda a cadeia produtiva da energia, da extração e transporte de insumos à construção e operação de usinas, com reflexos no preço da tarifa ao consumidor final”, segundo o relatório desta quarta (12). 

Dados de um estudo do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente) divulgados em 2023 mostram que as 72 usinas termelétricas movidas a combustíveis fósseis conectadas ao Sistema Interligado Nacional de energia elétrica emitiram 19,5 milhões de toneladas de CO2 (dióxido de carbono) equivalente em 2022. O gás natural teve participação em 58% dessas emissões, como mostra o gráfico abaixo. O restante está associado a usinas movidas a carvão, óleo diesel e óleo combustível.

Gráfico de barras mostra participação de combustíveis nas emissões de termelétricas em 2022. Gás natural tem 58%, à frente de carvão (39%), óleo diesel (1%) e óleo combustível (2%).

Além dos gases responsáveis pela mudança climática, as usinas que queimam gás natural geram outros poluentes, como óxidos de nitrogênio, óxidos de enxofre, material particulado e compostos orgânicos. Esses gases prejudicam tanto o meio ambiente — ajudando a formar chuva ácida, por exemplo — quanto a economia e a saúde humana. Dados de diferentes estudos mostram que: 

1.591

mortes prematuras foram causadas pelo atual uso de gases

US$ 2,6 bilhões

em prejuízos foram contabilizados em 2020 (pelos custos combinados de saúde, valor de vidas perdidas e dias de afastamento do trabalho)

48.190

mortes prematuras podem ocorrer a mais no Brasil até 2050 por conta da poluição do ar por gás fóssil

Outros impactos incluem a contaminação da água, do solo e do ar decorrentes de possíveis vazamentos de plataformas de extração de gás natural. Há ainda impactos para comunidades tradicionais, por conta da supressão de vegetação nativa em áreas de preservação para a instalação de estruturas de operação das usinas. Além de danos ambientais, esse tipo de medida pode provocar problemas sociais.

Quais são as recomendações do texto

A publicação desta quarta (12) afirma que o Brasil deve rever seus planos de expansão do uso do gás natural, “de forma a se alinhar aos objetivos globais de descarbonização e reduzir os impactos socioambientais e econômicos” do combustível. Em vez dele, o país deve adotar outras prioridades, segundo o relatório. Estão entre elas: 

  • expandir as fontes renováveis de energia, como solar e eólica
  • elaborar um novo marco regulatório do setor elétrico
  • apresentar um plano de transição com metas e cronograma para descarbonização
  • rever a lei da privatização da Eletrobras, revogando o “jabuti” do gás natural
  • rever projetos no Congresso, como o que pretende mudar regras para o licenciamento ambiental

O texto também diz que, “para merecer o rótulo de limpa”, a transição energética deve considerar “não apenas a fonte (fóssil ou renovável), mas toda a cadeia de produção de energia”. Não se pode admitir, por exemplo, que novos parques eólicos causem os danos socioambientais que têm causado para comunidades tradicionais no Nordeste. “Pensar em política energética de transição vai além de questões técnicas”, segundo a publicação.

Para uma transição energética com justiça social e climática, o relatório recomenda “democratizar o acesso [às decisões], reduzir a desigualdade social, gerar emprego e renda e combater o racismo estrutural, além de minimizar as emissões de gases estufa e os impactos à saúde e ao meio ambiente e garantir o respeito aos direitos territoriais”. 

Outra sugestão do relatório é, junto com a transição, promover a adaptação climática (isto é, a adaptação das sociedades para os efeitos da mudança do clima, como eventos climáticos extremos de chuvas e secas). Recursos obtidos com a oneração de fontes poluentes poderiam ser revertidos para fundos de prevenção de desastres, por exemplo. Também é preciso considerar a instabilidade climática no planejamento de empreendimentos de energia renovável.

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