A atenção às mães e crianças nas Olimpíadas de Paris
Isadora Rupp
31 de julho de 2024(atualizado 01/08/2024 às 14h36)Vila Olímpica na capital francesa conta com berçário, em iniciativa inédita na história dos Jogos. Espaço só foi criado após mobilização de atletas por lugar adequado para amamentação e convívio com filhos
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Allyson Felix corre com a filha, Camryn Ferguson, antes de correr na sua última competição profissional, em 2022, na Califórnia
Pela primeira vez na história das Olimpíadas, mães e pais atletas que estão na difícil empreitada de equilibrar esporte e família têm à disposição em Paris um berçário para que suas crianças sejam assistidas enquanto competem.
O espaço na Vila Olímpica, fornecido pelo COI (Comitê Olímpico Internacional) e pelo Comitê Organizador das Olimpíadas de Paris 2024, é direcionado para bebês que estão em fase de amamentação ou ainda fazem uso de fraldas – mas há críticas em relação ao seu funcionamento.
Neste texto, o Nexo explica a iniciativa, como foi a articulação para que o direito fosse concedido às mães, pais e crianças, e os impactos da maternidade nas carreiras esportivas.
O espaço, de 12 metros quadrados, foi projetado na Praça da Vila Olímpica e Paralímpica de Paris. Há local privado para amamentação, troca de fraldas, berços, geladeira, micro-ondas e um espaço recreativo, com brinquedos, livros e desenhos lúdicos. As mães, pais e cuidadores têm à disposição fraldas e lenços umedecidos, fornecidos pela patrocinadora do local, a Pampers, uma das líderes mundiais neste mercado. A creche fica aberta diariamente, das 9h às 21 horas.
Não há monitores ou educadores para realizar atividades ou tomar conta das crianças, somente pessoas responsáveis por deixar o local limpo e pelo agendamento de horários. São as mães e pais atletas que, antes de viajar, arrumam um cuidador (geralmente um integrante da família) que se disponibilizou a viajar aos Jogos.
Os atletas interessados realizaram um cadastro e solicitaram um passe para o bebê e para um cuidador dedicado à criança, que fica com ela a maior parte do tempo – a permissão é que a atleta ou o atleta passe cerca de uma hora por dia com o bebê. O jornal português Público visitou o espaço, e conta que o local recebe duas famílias por dia. Na prática, de acordo com o jornal, a mãe ou o pai mantém um contato pequeno.
O presidente do COI, Thomas Bach, visita o berçário das Olimpíadas de Paris 2024
O contato, mesmo curto, permite que a mãe não interrompa ou encerre precocemente o período de aleitamento materno, recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como a forma de alimentação exclusiva até os seis meses de vida do bebê, e de forma complementar até a criança completar dois anos de idade.
Segundo a presidente do COI, Emma Terho, a ideia foi proporcionar um espaço adequado para que as atletas tivessem um tempo de qualidade com seus filhos pequenos e, ao mesmo tempo, pudessem se concentrar na competição e não precisassem se locomover para fora da Vila Olímpica.
“Muitos atletas estão equilibrando suas carreiras esportivas e família. Gravidez e maternidade são um caminho natural na vida, e não precisam significar o fim da carreira para atletas mulheres”, afirmou Terho ao site das Olimpíadas de Paris. Ela mesma disse ter sentido isso na pele em 2014, quando competiu nos jogos da Rússia como atleta de hóquei no gelo pela Finlândia.
A iniciativa de disponibilizar uma creche na Vila Olímpica não foi uma ideia original dos comitês olímpicos ou da organização dos Jogos de Paris, mas sim fruto de uma mobilização que envolveu mães atletas que passaram maus bocados nas Olimpíadas de Tóquio, em 2021.
Uma delas foi a atleta paralímpica Katerina Polychronidis Patroni, que representou a Grécia na bocha junto com o marido, Greg Polychronidis. O casal teve o primeiro filho em maio de 2021 e, pouco tempo depois, recebeu a autorização de viajar para os Jogos de Tóquio, que ocorreram entre o final de julho e começo de agosto.
Em entrevista para o site da CNN, Patroni disse que o casal não teria competido sem que pudesse levar o bebê, mas a infraestrutura à época deixou a desejar: havia só uma sala próxima da Vila Olímpica com poltronas para que as mães pudessem amamentar. O local era escuro e sem janelas, afirmou também à CNN a atleta paralímpica Edina Müller, que representa a Alemanha na paracanoagem.
Por conta das restrições da pandemia de covid-19, nem as crianças nem os cuidadores responsáveis pelos bebês acessaram a Vila, e havia um cronograma rigoroso para as visitas e a amamentação, o que dificultou o convívio das mães com as crianças. As regras obrigaram atletas como a nadadora sincronizada espanhola Ona Carbonell a deixar o seu bebê de colo em casa para poder competir.
Os perrengues das atletas fizeram a Comissão de Atletas do COI se articular para ter um berçário na Vila Olímpica de Paris. A voz mais forte do projeto foi da ex-velocista Allyson Felix, dos Estados Unidos, que foi medalhista 11 vezes e é uma ativista pela saúde materna de mulheres negras e pela valorização das mães atletas. Atualmente, ela está aposentada das pistas, mas se uniu à comissão de atletas para ajudar o projeto a prosperar.
Ao site NBC Olympics, Felix disse que competir sendo mãe “foi difícil de formas que eu não esperava”, como ficar em hotéis, alimentar o bebê nos estádios e pensar em quem vai cuidar da criança nas competições. “Foi desafiador, mas eu aprendi muito sobre como as coisas podem melhorar”. Em novembro de 2018, meses após dar à luz em uma cesárea de emergência, a atleta superou o número de medalhas de Usain Bolt.
Diagnosticada com pré-eclâmpsia com 32 semanas de gestação, a ex-velocista teve de se submeter a uma cesárea de emergência, e sua primeira filha nasceu prematura. A série de dificuldades que enfrentou ao conciliar maternidade e carreira levou a atleta a se dedicar a projetos como um fundo de assistência infantil para apoiar mães atletas.
Em declaração à CNN, Felix afirmou que a creche na Vila Olímpica em Paris significa o início de uma nova realidade para uma nova geração de atletas que querem se dedicar à carreira esportiva, mas também à maternidade e à paternidade.
“O ambiente dos Jogos Olímpicos é complexo e com muitas pressões. O espaço é uma maneira de oferecer alívio e tornar mais fácil aos atletas passarem tempos com seus bebês sem sair da Vila Olímpica”, disse. Ao jornal português Público, a ex-velocista reconheceu as limitações do espaço e do tempo que é permitido passar com a criança. “Gostaria de ver dentro da aldeia de atletas uma unidade que fosse para a família, onde o filho pudesse realmente viver dentro da aldeia, talvez com um parceiro ou outra pessoa”, afirmou.
Em entrevista para o jornal inglês The Guardian, Allyson Felix afirmou que a regra que observou durante a sua carreira era ver os patrocínios de grandes marcas cortados quando uma atleta tornava-se mãe. Por um tempo, acreditou que, “se tivesse conquistas o suficiente”, esse não seria o seu destino, mas ela acabou na mesma luta.
Em 2017, enquanto renegociava o seu contrato de uma década com a Nike, ela teve de encarar uma oferta de redução de 70% em seu salário. A atleta pediu que a patrocinadora garantisse que ela não seria penalizada financeiramente caso não alcançasse o seu melhor desempenho durante e após uma gestação. A empresa recusou. Ela continuou na Nike e teve a sua primeira filha em 2018.
Frustrada com a postura da empresa, Felix tornou o seu protesto público em um artigo de opinião para o jornal The New York Times, em maio de 2019. Outras atletas da Nike, como as corredoras Alysia Montaño e Kara Goucher, dos Estados Unidos, relataram situações semelhantes.
A atleta Alysia Montano, em competição na China
A repercussão do caso foi tamanha que a empresa foi alvo de um inquérito do Congresso americano, e o clamor público levou a Nike a anunciar uma nova política de maternidade, que inclui a atleta não ter nenhuma redução em seus rendimentos financeiros pelo período de um ano e meio após o parto.
A atleta paralímpica alemã Edina Müller, que engravidou em 2018, recebeu uma carta do centro de treinamento de paracanoagem alemão quando a entidade soube da gestação: a mensagem a parabenizava pela aposentadoria. “Eu nunca disse que iria me aposentar”, declarou à CNN.
Na gravidez, a atleta não competiu e perdeu financiamento. Conseguiu retomar a carreira após o nascimento do filho, conciliando treinos com os cuidados com o bebê. Ela competiu em Olimpíadas pela última vez em Tóquio, quando ganhou medalha de ouro no caiaque individual feminino.
A atleta paralímpica de canoagem, Edina Mueller, na Copa Mundial de Paracanoagem, na Hungria
Em 2024, a brasileira Flávia Maria de Lima, atleta de alto rendimento do atletismo, teme que o ex-marido use a sua viagem a Paris para conseguir a guarda definitiva de sua filha Vitória, de 6 anos.
O pai da menina usou viagens pontuais realizadas por Lima para competir e garantir a vaga nos Jogos Olímpicos da França como prova de abandono materno – a atitude do genitor levou a atleta a ter pânico de competir. Mas ela resolveu “não deixar ele ganhar”, disse em relato ao site UOL. Os dois seguem na briga jurídica, mas a atleta decidiu ir à Paris, mesmo sob o assédio judicial do ex.
“Não é errado ou crime o que estou fazendo. Estou sendo mãe e uma pessoa normal, que tem um emprego e profissão. Essa profissão é privilegiada em alguns momentos, principalmente nesta fase que estou, em Jogos Olímpicos. Vocês, mulheres que estão passando pelo mesmo processo e sendo oprimidas pelo sistema machista: ergam suas cabeças e lutem. Não tenham medo, vivam seus sonhos”, disse Lima em um vídeo feito de Paris, onde disputa as Olimpíadas.
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