Como a ciência tenta definir o limite do calor suportável
Mariana Vick
23 de agosto de 2024(atualizado 23/02/2025 às 01h15)Estudos buscam estimar a temperatura máxima tolerada pelo corpo humano. Evidências contestam número calculado em 2010, que pode ter superestimado capacidade do organismo de tolerar clima extremo
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Mulher se abana com leque durante onda de calor em Buenos Aires, na Argentina
Ondas de calor, como a que atinge partes do Centro-Oeste, Sul e Sudeste do Brasil até esta sexta-feira (23), têm sido cada vez mais comuns no contexto da mudança climática. A alta das temperaturas é uma consequência esperada das atuais emissões de gases de efeito estufa. Pesquisadores, nesse contexto, têm tentado entender qual é o limite de calor suportado pelo corpo humano.
A ciência mostra que o calor extremo traz diversos prejuízos para a saúde. Ainda não há consenso, no entanto, sobre as temperaturas máximas toleráveis para o organismo. Pesquisas recentes sobre o tema têm contestado os valores calculados no passado, sugerindo que a capacidade do corpo de se adaptar a um mundo mais quente foi superestimada.
Neste texto, o Nexo explica quais são os efeitos do calor sobre o corpo humano, o que se sabe sobre as temperaturas máximas suportadas pelo organismo e como novos estudos tentam atualizar estimativas calculadas anos atrás. Mostra também quais são as implicações dessas descobertas, quais são seus limites e como se cuidar num contexto de calor cada vez mais extremo.
As temperaturas extremas podem levar o corpo humano a uma situação chamada por médicos de “estresse por calor”. É o que acontece quando o organismo, por causa do calor externo, passa a ter dificuldades de controlar a própria temperatura. O estresse por calor se manifesta de diferentes maneiras, mas, no limite, pode evoluir para uma insolação — quando a temperatura do corpo ultrapassa 40°C e ele não consegue mais se resfriar.
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Os prejuízos causados pelo calor têm levado a ciência há anos a tentar entender qual é o limite de temperatura suportado pelas pessoas. O valor que hoje é convencionalmente aceito pela maioria dos órgãos de saúde pública vem de um estudo publicado em 2010. O trabalho considerou 35ºC da chamada temperatura de bulbo úmido como o limiar para a sobrevivência humana.
Pessoas no centro de São Paulo durante onda de calor em março de 2024
A temperatura de bulbo úmido não é a mesma que a temperatura ambiente. Trata-se da temperatura que se sente quando a pele está molhada e exposta à movimentação de ar, medida por um bulbo (a ponta de um termômetro) molhado. Pesquisadores a usam para estudar o estresse por calor porque ela leva em conta tanto os efeitos da temperatura quanto da umidade.
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é quanto uma pessoa jovem e saudável suportaria num ambiente com temperatura de bulbo úmido de 35ºC, segundo o estudo de 2010
Apesar dos efeitos já sentidos da mudança climática, ainda é difícil que a temperatura de bulbo úmido ultrapasse 31ºC em qualquer lugar do mundo. Para registrar os 35ºC estimados no estudo de 2010, a temperatura ambiente precisaria chegar a 45ºC com 50% de umidade (os valores em graus podem mudar dependendo das condições de umidade e outras variáveis). Ondas de calor recentes na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, têm registrado temperatura de bulbo úmido de 30ºC.
Os autores de estudos conduzidos recentemente criticam o valor estabelecido pela pesquisa de 2010. Os 35ºC de temperatura de bulbo úmido foram estabelecidos a partir de um modelo teórico, com pouca aplicação no mundo real, segundo eles. Fatores como suor e vestimentas, que interferem na regulação da temperatura do corpo humano, por exemplo, não foram levados em conta na época.
As pesquisas publicadas nos últimos anos têm sido feitas, por outro lado, a partir de experimentos com voluntários em “câmaras” que simulam o clima. Os espaços reproduzem as temperaturas de ondas de calor recentes e diferentes tipos de velocidade do vento, umidade e luz solar. À medida que controlam essas variáveis, os cientistas monitoram o suor, a temperatura corporal e a frequência cardíaca dos participantes.
Agricultores manejam plantação de batata danificada por onda de calor em Mosul, no Iraque
As “câmaras de calor” são construções sofisticadas, usadas geralmente para a ciência esportiva, como conta uma reportagem na revista Nature. O uso desses espaços para medir os efeitos do calor extremo começou apenas nos últimos anos. Além delas, estudos recentes têm usado modelos matemáticos e levantamentos estatísticos sobre ondas de calor das últimas décadas para rever a temperatura máxima suportada pelo corpo humano.
As conclusões publicadas por cientistas como os das universidades da Pensilvânia, nos EUA, e de Sydney, na Austrália, indicam que esse valor pode ser menor do que se pensava catorze anos atrás. O limite para a temperatura de bulbo úmido obtido pelo grupo americano foi de 31ºC, por exemplo. Valores semelhantes aparecem nos trabalhos australianos.
O que dizem alguns estudos
Universidade da Pensilvânia
O artigo que relata o estudo de pesquisadores da Universidade da Pensilvânia foi publicado na revista científica Journal of Applied Physiology em 2022. O texto afirma que o limite de calor suportado pelo corpo humano, de cerca de 31ºC de temperatura de bulbo úmido, equivale a um ambiente com a temperatura de 38ºC e 60% de umidade relativa do ar. Os dados se baseiam num experimento com “adultos jovens e saudáveis que executam tarefas em taxas metabólicas modestas, imitando atividades básicas da vida diária”, numa câmara úmida com temperaturas do ar entre 36ºC e 40ºC. Os participantes engoliram uma pequena pílula de telemetria, capaz de monitorar sua temperatura corporal interna.
Universidade de Sydney
Outro artigo, publicado em 2023 por pesquisadores da Universidade de Sydney, na Austrália, apresentou um modelo matemático de como o corpo lida com o calor extremo, incorporando também elementos da fisiologia (como o suor). O trabalho estimou que os limites de temperatura de bulbo úmido suportáveis variam entre 26ºC e 34ºC para pessoas jovens e 21ºC a 34ºC para pessoas mais velhas. Depois da publicação, eles começaram a testar o modelo com pessoas em uma câmara de calor — o estudo está em andamento.
4 m² a 5 m²
é o tamanho das câmaras usadas na Austrália, onde as temperaturas do ar podem variar de 5ºC a 55ºC; participantes podem comer, dormir e se exercitar dentro da estrutura, enquanto sensores conectados a eles enviam informações para uma sala de controle, que os monitora
Universidade do Havaí em Mānoa
Além deles, há um artigo publicado em 2017 na revista Nature Climate Change por pesquisadores da Universidade do Havaí em Mānoa. Os pesquisadores analisaram centenas de episódios de calor extremo descritos em artigos publicados entre 1980 e 2014 para entender o risco global de mortalidade ligada ao calor. Depois de encontrarem 783 casos de excesso de óbitos associados às temperaturas em 36 países, eles concluíram que 30% da população mundial está exposta a condições climáticas que excedem os limites fatais por pelo menos 20 dias por ano.
As pesquisas recentes sugerem que a capacidade de adaptação do corpo humano ao calor extremo pode estar sendo superestimada pelas autoridades de saúde. O limite de temperatura de bulbo úmido de 31ºC, por exemplo, está próximo dos valores registrados em ondas de calor recentes em países do Hemisfério Norte. Apesar disso, o valor de 35ºC de excesso de óbitos associados às temperaturas em 36 países, eles concluíram que 30% da população mundial está exposta a condições climáticas que excedem os limites fatais por pelo menos 20 dias por ano.
Os dados disponibilizados até agora, no entanto, ainda devem ser confirmados em outras pesquisas — com mais pessoas—, e quem os lê deve considerar suas nuances, segundo os pesquisadores. Os limites de temperatura de bulbo úmido suportável, por exemplo, variam conforme as condições de temperatura do ar, umidade, luz solar e ventos. Não há apenas um número possível.
Uma mulher se refresca na Fontana della Barcaccia durante uma onda de calor na Itália
“Todo mundo quer um número para poder basear todas as decisões, mas tanto a variabilidade climática como a fisiológica não permitem que seja assim tão simples, algo que tanto cientistas como tomadores de decisão políticos precisam entender e comunicar bem”, disse Daniel J. Vecellio, da Universidade da Pensilvânia, ao site português Público em 2023.
A temperatura de bulbo úmida suportável muda também conforme o grupo populacional, como mostram os estudos. Pessoas de idades, condições de saúde e países diferentes têm resistências diferentes ao calor. Idosos são mais sensíveis à alta das temperaturas, por exemplo, assim como crianças.
Além de investigar o limite de temperatura suportável para o corpo humano, pesquisadores tentam encontrar soluções para sobreviver a ambientes cada vez mais quentes. Autoridades de saúde, como a OMS (Organização Mundial da Saúde) e o Ministério da Saúde, já têm orientações para quem passa por ondas de calor neste momento. Elas incluem:
Também é recomendado atentar-se a sintomas de estresse por calor ou insolação. Estão entre eles cãibras durante exercícios físicos, cansaço sem motivo aparente, falta de urina, rubor na pele e volume baixo de suor. Outro sintoma possível é a tontura ou cabeça leve — nesses casos, vale encontrar um ambiente mais fresco, sentar e se hidratar.
Episódios de confusão podem ser um sinal da gravidade da situação. Médicos entrevistados pelo Nexo em 2023 sugeriram que, nesses casos, é recomendado procurar ajuda de profissionais de saúde. No limite, é possível haver desmaios — situação que exige chamar ajuda profissional de forma emergente, eventualmente com primeiros socorros.
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