Expresso

‘Pequenas coisas como estas’: a história dos asilos de Madalena

Ludmilla Rios

21 de março de 2025(atualizado 23/03/2025 às 00h45)

Filme com Cillian Murphy é baseado em livro de Claire Keegan. Obra retrata instituição da Igreja Católica irlandesa que feriu direitos humanos de meninas e mulheres durante o século 20

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FOTO: Divulgação

Banner de “Pequenas coisas como estas”

Estreou em 13 de março no Brasil o filme “Pequenas coisas como estas”, do diretor Tim Mielants. No longa, ambientado em 1985, o ator Cillian Murphy interpreta Bill Furlong, um vendedor de carvão que vive em uma pequena cidade irlandesa dominada pela Igreja Católica. 

Baseada em livro homônimo da escritora Claire Keegan, a trama gira em torno de uma descoberta chocante pelo protagonista: no convento local, meninas e mulheres são mantidas em regime análogo à escravidão, com jornadas extenuantes de trabalho e sem poder sair.

A história não é completamente ficção. A organização religiosa retratada no filme é baseada nos chamados asilos de Madalena, uma marca traumática de violação dos direitos humanos na história recente da Irlanda. 

Neste texto, o Nexo conta o que foram e quais as acusações contra os asilos de Madalena. Além disso, fala sobre o novo filme que retrata a instituição.

Confinamento e penitência

Controlados em sua maioria pela Igreja Católica, os asilos de Madalena surgiram no século 18, e funcionaram em várias localidades por toda a Europa, América do Norte e Austrália. Especificamente na Irlanda, tiveram uma presença profunda e longeva, funcionando até o final do século 20.

1996

foi o ano em que o último asilo de Madalena irlandês, em Dublin, foi fechado

Eles eram parte de um grupo de instituições — como as casas de mães e bebês, escolas industriais, reformatórios, asilos para doentes mentais e agências de adoção — voltadas a retirar do convívio social e confinar indivíduos considerados anômalos para os padrões da moral cristã que regia a sociedade na época.

Os asilos de Madalena eram destinados a “mulheres perdidas”, que poderiam encontrar na disciplina religiosa do local “redenção para seus pecados”. O nome é inspirado na história bíblica de Maria Madalena, uma mulher que passa por um milagre e se arrepende da vida que levava, se tornando uma seguidora de Jesus.

Nas origens da instituição, parte significativa das internas era de ex-trabalhadoras do sexo. No entanto, já no início do século 20 elas quase não eram admitidas, e o perfil de penitentes englobava mães ou grávidas solteiras, órfãs, vítimas de abusos familiares, deficientes físicas e mentais, idosas, mulheres que cometeram alguma infração criminal ou que tinham um comportamento considerado inadequado por suas famílias, ou ainda mulheres em situação de rua, que não tinham alternativa para onde ir.

FOTO: Domínio Público/Wikimedia Commons

Asilo de Madalena na Irlanda, no começo do século 20

Suas situações feriam os ideais morais acerca do papel da mulher na sociedade irlandesa, intrincadamente religiosa, e elas eram mandadas para lá por diversos agentes, como familiares, padres, assistentes sociais, juízes, policiais, hospitais e institutos psiquiátricos.

Há relatos de inúmeros casos de abuso físico e moral cometidos contra as residentes desses locais, que não tinham liberdade para decidir deixar a instituição e quase nenhum contato com o mundo exterior. Elas eram submetidas a rotinas exaustivas de trabalho, sem qualquer remuneração, regimes de silêncio e oração, fome e penitências por comportamentos inadequados ou pouca produtividade.

Os asilos eram também chamados de lavanderias de Madalena, isso porque muitos deles tinham acoplados em suas estruturas lavanderias onde as internas trabalhavam prestando serviços de lavagem de roupas e tecidos para as comunidades locais e outros estabelecimentos. 

“A lavanderia tinha boa reputação: restaurantes e pensões, a casa de repouso e o hospital e todos os padres e famílias abastadas mandavam sua roupa para lá. Os relatos eram de que tudo o que era enviado, fosse uma montanha de roupas de cama ou apenas uma dezena de lenços, voltava como novo”

trecho do livro “Pequenas coisas como estas”, de Claire Keegan

A estimativa é que, entre 1922 e 1996, ao menos 10 mil mulheres passaram pelos asilos de Madalena irlandeses.

Busca por reparação

A história dos asilos de Madalena na Irlanda começou a repercutir na mídia em 1993 como um potencial escândalo de violação de direitos humanos da Igreja Católica. 

Naquele ano um convento chamado High Park, no norte de Dublin, vendeu parte de suas terras a um incorporador imobiliário. Ao escavar o solo, a empreiteira responsável por construir no local encontrou uma vala comum com corpos de 133 mulheres não identificadas.

A partir de então, o país passou por um longo processo de rememoração das histórias que se passaram nessas instituições religiosas, liderado por organizações sociais como o Magdalene Memorial Committee (Comitê Memorial das Madalenas) e o Justice for Magdelenes (Justiça para as Madalenas), que fizeram pesquisas relacionadas à organização e colheram relatos de sobreviventes daquele período.

Em 2011, o Comitê contra Tortura das Nações Unidas pressionou o governo da Irlanda a instaurar um inquérito para investigar o funcionamento dos asilos e os maus tratos cometidos dentro de seus sistemas da fundação do Estado Livre Irlandês, em 1922, até o fechamento do último asilo. 

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Na esteira das investigações, em 2013 um relatório do senador irlandês Martin McAleese atestou que o Estado teve participação significativa no funcionamento dessas lavanderias, o que ia na direção contrária do discurso oficial sustentado por anos de que as instituições eram inteiramente de responsabilidade privada.

Entre os principais achados do relatório há considerações como:

  • Mais de um quarto das mulheres mantidas nas lavanderias de Madalena foram enviadas para lá diretamente pelo Estado irlandês
  • O Estado mantinha contratos lucrativos com essas instituições, sem que houvesse delas obrigação de comprovar pagamento de salários justos ou condições de trabalho adequadas
  • A guarda nacional irlandesa perseguiu, capturou e levou de volta a essas instituições garotas e mulheres que haviam escapado

No mesmo ano, o governo irlandês reconheceu a responsabilidade estatal nos casos e pediu desculpas públicas às vítimas, além de iniciar um programa de indenização por danos. Mas as quatro ordens religiosas católicas que administravam as lavanderias se recusaram a fazer parte do processo de reparação.

A adaptação às telas

Em entrevista ao site Omelete, o ator Cillian Murphy afirmou que a obra cinematográfica retrata “um período muito sombrio na história irlandesa, algo que estamos lidando coletivamente como uma nação”. Para ele, “é importante que a arte olhe para esses períodos difíceis e faça perguntas sobre eles”. 

Bill Furlong, protagonista de “Pequenas coisas como estas”, começa a ter contato com essa realidade depois de fazer a entrega de uma carga de carvão no convento, na véspera do Natal. A cena com que se depara o deixa profundamente angustiado. 

O livro que foi base para a adaptação foi finalista em 2022 do Book Prize Award, importante premiação do Reino Unido. A autora, Claire Keegan, é conhecida por sua linguagem cortante e direta, e, nesse livro, mergulha na interioridade aflita de um personagem que tem seus próprios problemas e pode se complicar ao enfrentar o que as influências de poder da sua cidade querem deixar escondidas, mas não pode deixar de fazer alguma coisa. 

Os asilos de Madalena já foram retratados no cinema antes, no filme “Em nome de Deus”, do cineasta escocês Peter Mullan, lançado em 2002. O longa ficcional retrata os abusos sofridos por três jovens que são encarceradas em um dos conventos-lavanderias, e foi um material importante para que as denúncias e a história das instituições repercutissem no debate público.

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