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Heródoto, no seu livro “História”, narra um episódio que teria ocorrido durante a guerra travada entre argivos e lacedemônios. O motivo: um rico território – Tirea – que opôs os dois povos antes irmanados. Mais interessante do que entender os meandros do contencioso, é explorar as decorrências. O historiador grego explica que os argivos decidiram, então, cortar seus cabelos, que até então eram usados obrigatoriamente longos, bem como promulgaram uma nova lei: a partir daquele dia, nenhum deles deixaria crescer os cabelos; isso enquanto não reconquistassem a terra perdida. Já os lacedemônios editaram uma norma em tudo oposta: daquele momento em diante, eles, que até então não usavam cabelos longos, teriam que mantê-los compridos.
Os narradores gregos não gostavam muito “de moral da história”, e quem sou eu para achar uma. Quero apenar tirar proveito dela, para pensar como humanos são loucos por identidade. Basta selecionar uma para que nossos inimigos, todos aqueles que se consideram “outros”, passem a fazer justamente o contrário. É por isso que identidades são sempre construções sociais, relativas – só se definem em relação a alguém ou algo –; dicotômicas, pois usam uma lógica sempre binária, do tipo, ou isso ou aquilo; e alterativas, uma vez que se constroem por contraste (real ou criado). O fato é que costumamos reificar o que é da ordem da cultura e do arbítrio, transformando certos elementos circunstanciais em milagrosamente naturais.
Interessante pensar nesse nosso Brasil. Até bem pouco tempo éramos todos otimistas, e tínhamos uma saída guardada no bolso para responder a qualquer crise. Tal perfil, que foi ficando mais definido desde o final do século, tornou-se ainda mais límpido quando, no começo dos anos 2000, viramos, como que por passe de mágica, “brics”. Aí sim demos para acreditar que tínhamos mesmo nascido para algo diferente, e que Deus, afinal, era brasileiro.
O costume nacional também poderia ser chamado de bovarysmo, em uma homenagem singela à Madame Bovary, a famosa personagem de Flaubert. Isso porque gostamos muito de passar “por outro”, e preferimos olhar uma imagem criada, de longe, do que nos apalpar, de perto. Quantos artistas acadêmicos pintaram indígenas usando modelos europeus de imaginação? Quantos poetas descreveram escravos informados pelo Oriente e por uma literatura estrangeira. À época, como hoje em dia, parecia melhor imaginar do que enfrentar de frente – se me permitem a redundância. Muito pouco havia sido feito, ou tem sido realizado, no sentido de melhorar nossos problemas de infraestrutura — na educação, nos transportes públicos, na saúde e na segurança —, mas a maquiagem social sempre falou mais forte. E esse é o passe da identidade: ela corporifica representações, e passamos a acreditar que somos o que projetamos.
Por isso inventamos, com frequência, uma boa identidade pra acreditar. Nesse movimento convivem duas noções de cultura e, dessa maneira, de identidade. A primeira, entende identidade e cultura como “coisas”. Identidade parece com essência, mônada, e vira sinônimo de idêntica. Ela se assemelha, nesse sentido, a um conjunto imutável de valores, regras, condutas, e o passado vira destino certo. Pensados nesses termos, brasileiros seriam assim: positivos, inventivos, tropicais. Opostos, por sua vez, a europeus: taciturnos, melancólicos, deprimidos, temperados.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
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