Coluna

Reinaldo Moraes

Na cratera

07 de abril de 2016

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Vale a pena vencer os 35 kms que separam o centro de São Paulo de Vargem Grande pra conhecer a famosa ‘Cratera de Colônia’

Uns dizem que foi há 5,2 milhões de anos. Outros juram de pé junto que foi bem antes: há 25 ou ainda há 36,4 milhões de anos. Em todo caso, o fato, sucedido entre o Pleistoceno e o Oligoceno, se não mesmo no Mioceno, e comprovado por estudos geomorfológicos preliminares, é que, no sul do que é hoje o município de São Paulo, no distrito de Parelheiros, caiu um bagulhão do céu que abriu no terreno uma cratera de quase 4 quilômetros de diâmetro e 400 metros de profundidade, hoje preenchida por colunas de sedimentos e turfa. O impacto do meteorito, de estimados 200 metros de diâmetro, liberou uma energia equivalente a de muitas bombas de Hiroshima — uma dezena, três dezenas ou ou 5 mil bombas atômicas, segundo as várias estimativas disponíveis. A cratera está lá em Parelheiros, visibilíssima a olho nu, circundada por um anel de até 125 metros acima da sua planície central.

Nenhuma forma de vida animal teria sobrevivido a um cataclismo dessa magnitude num raio de de 100 a 200 quilômetros em volta, sempre de acordo com o grau de catastrofismo de quem dá o chute supostamente científico. Hoje, lá em Parelheiros, por conta de outro impacto, este de ordem sócio-política, o risco de um homem com idade entre 15 e 24 anos morrer assassinado é 21 vezes maior do que em Pinheiros, bairro nobre na Zona Oeste, pelo que nos informa a Fundação Seade. Na época da queda do meteorito, não havia ainda seres humanos pra serem assassinados. Hoje 40 mil almas habitam semi-clandestinamente a área circular de 10 km² da cratera, formando um típico bairro de periferia da zona sul paulistana, batizado de Vargem Grande, subdistrito de Parelheiros com abundância de mata atlântica em volta e um monte de problemas sociais dentro dele, um deles sendo justamente a violência urbana.

Mesmo assim, vale a pena vencer os 35 kms que separam o centro de São Paulo de Vargem Grande pra conhecer a famosa “Cratera de Colônia”. como ficou conhecida a estrutura geológica resultante do impacto do meteorito. O termo Colônia faz referência a uma comunidade de imigrantes alemães que se fixou perto dali, em 1829. Além do bairro em si e de seus habitantes, eles também imigrantes, só que de outras regiões pobres do nosso país, você pode visitar ali uma extensa área de proteção ambiental, com mata nativa, trilhas, cachoeiras, aldeias de índios guaranis e até um CDP (Centro de Detenção Provisória), dominado pelo PCC, agremiação criminosa responsável pela recente e relativa pacificação do bairro, que já viveu dias tristes de intenso bangue-bangue urbano, por conta de guerras de traficantes. Pelo menos é o que afirma um líder comunitário ali do pedaço com quem conversei. “Por aqui, tá tudo dominado”, ele assegura.

Tentando acreditar que um meteorito não cai duas vezes no mesmo lugar, fui na semana passada fazer uma visita à cratera de Vargem Grande pra bater um papo com o escritor Luiz Ruffato, autor do celebrado “Eles eram muitos cavalos,” um romance curioso, por associar um formato experimental, de corte modernista, a um forte “conteúdo social,” como se diz de uma obra de arte na qual desfilam personagens pobres e desassisitidos que comem o pão que o diabo capitalista amassou. Foi, aliás, movida por esse conteúdo social do livro do Ruffato que a Lia Kulakauskas, diretora de um teledocumentário sobre literatura ora em produção, me escalou pra conversar com o autor dentro dessa locação periférica, muito embora nem eu, nem nem ela moremos em nenhuma perifa. O próprio Ruffato reside num acolhedor apartamento em Perdizes, bairro nobre de São Paulo, em cima de uma doceria chique, onde é possível, por exemplo, tomar um expresso e chafurdar num delicioso mil-folhas recheado de chantili, pagando o equivalente ao que um habitante da cratera de Vargem Grande ganha, em média, por um dia de trabalho, se não estou exagerando um pouco — pra mais ou pra menos, não saberia dizer agora.

O papo entre mim e o Ruffato, sob a direção da Lia, foi filmado pela câmera do Chico Orlandi, gravado por André Bomfim e produzido pela Bia Almeida com o auxílio de um agitador cultural da cratera, o Fernando Bike, dono de uma bicicletaria no bairro. Nosso dia começou no boteco e micromercadinho da Juliana, que fica na parte alta da planície da cratera. Dizem os geólogos que essa elevação se formou devido ao ângulo de 45° com que o meteorito atingiu a superfície do planeta, abrindo um buracão, ao mesmo tempo em que empurrava um tanto de terra pro lado e pra cima. O papo em si, editado pelo talentoso Alexandre Wahrhaftig, o Leco, você poderá assistir qualquer dia do futuro próximo, quando o documentário gerado pela Mira Filmes sobre romancistas brasileiros contemporâneos for ao ar num canal a cabo, isto na sempre otimista hipótese de que nenhum meteorito ou satélite desgarrado resolva cair na nossa cabeça, abrindo crateras e devastando toda a vida inteligente em volta, aí incluídos, supostamente, film makers e literatos.

Reinaldo Moraesestreou na literatura em 1981 com o romance Tanto Faz (ed. Brasiliense) Em 1985 publicou o romance Abacaxi (ed. L&PM). Depois de 17 anos sem publicar nada, voltou em 2003 com o romance de aventuras Órbita dos caracóis (Companhia das Letras). Seguiram-se: Estrangeiros em casa (narrativa de viagem pela cidade de São Paulo, National Geographic Abril, 2004, com fotos de Roberto Linsker); Umidade (contos , Companhia das Letras, 2005), Barata! (novela infantil , Companhia das Letras, 2007) , Pornopopéia (romance , Objetiva, 2009) e O Cheirinho do amor (crônicas, Alfaguara, 2014). É também tradutor e roteirista de cinema e TV.

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