Coluna

Januária Cristina Alves

O senhor aparecido e o que ele tem a ver conosco

07 de dezembro de 2023

Temas

Compartilhe

Em busca de nos tornarmos mais vistos, amados, clicados, nos embrenhamos no exercício quase ininterrupto de postar a nossa imagem em busca de outros cliques

“Era uma vez um homem muito expressivo. Bastava apenas uma olhada para ele e seurosto logo ficava gravado na memória. (…) o senhor aparecido gostava muito de si mesmo, talvez fosse até um pouco narciso. Ele adorava sua aparência, seus traços tão expressivos e se olhava no espelho com muita satisfação. Não é de estranhar, portanto, que depois de ter comprado um supercelular com uma câmera do modelo mais recente, ele tenha passado a tirar selfies com imenso prazer”.

Assim começa a saga do senhor aparecido, personagem principal do livro da polonesa Olga Tokarczuk, prêmio Nobel de Literatura de 2018, recém-lançado aqui no Brasil pelo novo selo da Editora Todavia, o Baião Livros. Classificado como um livro infantojuvenil para efeito de mercado, “Um senhor notável”, na verdade, é um livro “para as infâncias”, ou seja, foi escrito para as mais diversas infâncias que habitam o ser humano, inclusive a etária. E isso o torna mais interessante ainda. Fábula contemporânea, narrativa distópica, retrato bem-acabado da nossa relação com as mídias digitais. Todas estas definições cabem para esta obra, que impressiona pelo belíssimo projeto gráfico e pelas ilustrações impactantes da ceramista e ilustradora Johanna Concejo, também polonesa. Um livro para se ler de diversas maneiras: só pelas imagens, apenas pelo texto, pelos dois, sozinho, acompanhado (de preferência por alguém com quem se goste de conversar), em grupo. É uma publicação que chega em boa hora para nos ajudar a refletir e a falar sobre o que nos acontece quando estamos online.

Esse senhor aparecido notável é um retrato bastante vívido de cada um de nós,habitantes desse mundo surreal, onde a nossa imagem vale mais do que as mil palavras – porque imagem a gente retoca e reforma, e palavras, bem… nem tanto. “O culto à imagem e à eterna juventude, a inflação do eu e a obsessão de parecer sempre bem aos olhos dos outros são itens indispensáveis ao ideal de felicidade dos dias de hoje. É possível que tudo termine bem?”, pergunta a Todavia, no texto de apresentação do livro em seu site. Sem querer dar spoiler, é possível prever, se formos observadores atentos da nossa realidade, que o senhor notável, aos poucos, tornar-se-á menos expressivo e, a cada clique, “menos notável”. Aos poucos, sem a mesma nitidez de outrora, seu rosto esmaece e, na tentativa de continuar existir, desesperadamente esse senhor “compra” um novo rosto para si. Somente para descobrir, desolado, que muitos outros compraram um igual, e, nesse sentido, tudo o que lhe resta, ao final, é ouvir o vaticínio de uma garota em quem acabou de esbarrar: “você se acostuma”. Pois é. De tanto querer ser notável, o senhor aparecido desapareceu.

Se algumas das funções da literatura são nos ajudar a entender o mundo em quevivemos e a compartilhar nossas emoções, ideias e pensamentos, sem dúvida podemos dizer que o senhor aparecido é um desses personagens literários que vieram para ficar, pelo simples fato de que hoje em dia somos todos um pouco (d)ele. Em busca de nos tornarmos mais vistos, amados, clicados, nos embrenhamos no exercício quase ininterrupto de postar a nossa imagem em busca de outros cliques. Assim, os retratos passam a nos representar e nos apagamos em busca do que queremos mostrar. Vale tudo para caber nos padrões estabelecidos pela indústria do imaginário, em que a representação tem mais valor do que a concretude física. De tanto buscarmos nos diferenciar para sermos vistos, nos tornamos monotonamente iguais.

Se o desafio para nos tornarmos únicos sempre esteve presente no percurso do serhumano em busca do amadurecimento, com as mídias sociais ele se tornou mais complexo. Não somos apenas nós e o espelho, ou, quando muito, nós e a nossa família, amigos, vizinhos. Somos nós e o mundo inteiro, dragados pela velocidade das redes e das escolhas algorítmicas. Sistemas que não entendemos como funcionam e, portanto, não dominamos. Como tudo nesse universo online é infinito e está disponível, ao mesmo tempo, nada nos pertence. Procuramos e, num piscar de olhos, encontramos, mas, com tanta informação ao nosso alcance, nos confundimos a ponto de já não saber o que queremos. A singularidade, força motriz da construção da nossa identidade, vira um story que será apagado no dia seguinte. Não por acaso temos assistido crianças e jovens cada vez mais deprimidos, cansados, com medo e sem razão para existir. Crescer tem se tornado, a cada dia, mais custoso.

Aos jovens de hoje cabe o exercício de pensar primeiro sobre o que não se é, oque não se quer, o que não se faz. Porque o contrário disso é o que “todo mundo” é, quer, faz, pensa

Em outra obra de referência, “Escrever é muito perigoso”, a mesma Olga Tokarczuk nosbrinda com essa reflexão a respeito do que significa crescer em tempos digitais: “a nossa geração, como as anteriores, foi ensinada a dizer ao mundo: SIM, SIM, SIM. Repetíamos: vou experimentar isso e mais aquilo, vou lá e ali, vou viver uma coisa e outra também. (…) Agora, surge uma nova geração que entende que a escolha mais humana e mais ética nesse novo cenário á aprender a dizer: NÃO, NÃO, NÃO. Vou parar de usar isso e aquilo. (…) Não preciso. Não quero. Abro mão…”. Num mundo de excessos, é preciso, mais do que nunca, saber fazer escolhas, delimitar, fazer uma curadoria, para usar a palavra-chave da sociedade da (des)informação.

Aos jovens de hoje, cabe o exercício de pensar primeiro sobre o que não se é, o quenão se quer, o que não se faz. Porque o contrário disso é o que “todo mundo” é, quer, faz, pensa. Nas redes todas as selfies são iguais porque devem caber no mesmo formato, todas as histórias devem ter “x” minutos para serem digeridas (e não sentidas), e só temos duas opções: curtir ou não curtir. Fora disso, somos diferentes, divergentes, destoando dos iguais. Nesse sentido, como bem diz Tokarczuk, é preciso imaginar outros mundos, e a literatura é ainda a ferramenta mais poderosa para inspirar essa prática. “A cada vez que abrimos um livro, entre o olho e superfície do papel acontece um milagre, algo de fato incrível”, ela descreve em “Escrever é muito perigoso”. “Não se trata apenas do fato de informações concretas serem decodificadas a partir de signos simples, porque até um computador saberia fazer isso. Antes, é uma questão de paisagens, aromas e sons que esses signos são capazes de emanar”, completa.

Penso que, para tornar esse mundo mais nítido e expressivo, tal como era o senhoraparecido no início dessa história, precisamos ler, ouvir, escrever e contar histórias. São elas que fazem com que consigamos imaginar um outro mundo possível. Tal como a singularidade, a diversidade precisa de espaço para existir, e nada é tão único e diverso quanto um livro. Quando a gente vira uma página, “transvê” outras realidades. E esse é o milagre que precisamos para encontrar um sentido em estar aqui e agora.

Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas