Coluna

Lilia Schwarcz

Os 50 anos do AI-5. Lembrar para não esquecer

24 de setembro de 2018

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Em dezembro de 2018 completam-se cinco décadas do início do período mais assustador da ditadura militar. Recordar, hoje, esse momento é uma espécie de antídoto contra quem questiona valores básicos da democracia

Para quem anda acreditando que a saída para o Brasil “tomar jeito, ordem e prumo” é uma nova ditadura militar, nada como lembrar a nossa história. O período dos governos militares não trouxe qualquer calma ou paz. Ao contrário, entre 1964 e 1985, e segundo o III Programa de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicado em 2010, estima-se que 20 mil brasileiros e brasileiras tenham sido submetidos à tortura. Nesse mesmo período, em torno de 434 cidadãos foram mortos ou dados como desaparecidos, 7.000 acabaram exilados e 800 foram julgados como presos políticos. A consequência foi a produção de uma sociedade amedrontada, impedida de atuar como oposição ou de manifestar-se politicamente.

Como a memória nacional tem sido curta e breve, penso que valha a pena, nesse momento de tanto acirramento de ódios e paixões, voltar ao dia 14 de dezembro de 1968, quando o Jornal do Brasil foi às bancas com uma edição tomada por notícias (no mínimo) estranhas. Dentre elas, constava uma nota que avisava: “Ontem foi o dia dos cegos”. Também na primeira página, a meteorologia anunciou: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”. O que mais chamou atenção, porém, foi que, ao contrário da previsão do tempo, o dia amanhecera muito azul e sem nuvens. Mas, à sua maneira, o jornal tinha toda razão: com essas matérias exóticas, ele procurava avisar ao leitor, e de forma discreta, da presença de censores na redação do periódico e na vida dos brasileiros.

E não era para menos. Às 22 horas da noite anterior, dia 13 de dezembro de 1968, o ministro da Justiça, Gama e Silva, fez uma rápida introdução de cinco minutos e passou a palavra a Adir José Alberto Curi, um conhecido locutor brasileiro. No bate pronto, e num tom monótono, ele anunciou, em cadeia nacional de rádio e TV, o texto do Ato Institucional nº 5. O documento era composto por 12 artigos e vinha acompanhado de um Ato Complementar no 38, que fechava o Congresso Nacional por tempo indeterminado. Esse não era o primeiro ato institucional que os militares tinham imposto desde 1964, mas era, sem dúvida, o mais forte deles. O AI-5 suspendia a concessão de habeas corpus e as franquias constitucionais de liberdade de expressão e reunião, permitia cassações de mandatos e de direitos de cidadania, autorizava demissões sumárias, e ainda estabelecia que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem direito a recurso.

O AI-5 colocava um ponto final num período que vinha se desenvolvendo na direção oposta. Por onde quer que se olhasse, não faltavam sinais de inquietação política e de muita movimentação por parte da oposição: greves operárias, novas lideranças políticas, manifestações estudantis e o início das ações armadas por grupos da esquerda revolucionária. Mesmo assim, os militares encontraram um bom pretexto para justificar o decreto: a recusa do Congresso Nacional em autorizar o processo judicial contra o deputado Márcio Moreira Alves, acusado de ser autor de dois “discursos ofensivos às Forças Armadas”, proferidos no plenário da Câmara no mês de setembro. Moreira Alves já tinha denunciado dezenas de casos de tortura, durante o governo de Castello Branco, e, na ocasião, fez um discurso duro, mas em horário ingrato: com plenário vazio e sem grande repercussão. Era o que os militares queriam, e foi a gota d’água, aquela que entorna o copo, para o AI-5. 

O  decreto de 13 de dezembro de 1968 não tinha prazo de vigência, poderia ser empregado contra qualquer forma de oposição e, na prática, funcionava como uma ferramenta de intimidação pelo medo. A medida fazia parte de um conjunto de normas discricionárias, mas agora dotadas de valor legal, com os militares fazendo enorme esforço para enquadrar seus atos num suposto arcabouço jurídico. Era uma legalidade de exceção; uma “legalidade” capaz de impor graves travas à autonomia dos demais poderes da União, punir qualquer forma de dissidência, desmobilizar a sociedade e restringir radicalmente a participação política. Ela significava o complemento ideal para uma série de medidas que já vinham sendo implementadas, todas na base do golpe supostamente legal.

Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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