Em 2017, a professora da UFPR (Universidade Federal do Paraná) Megg Rayara Oliveira foi a primeira travesti negra a obter o grau de doutora em educação no Brasil. Sua conquista desafia as estatísticas da sua condição de negra e transexual no país. Estudantes transexuais representam só 0,1% do total dos alunos de universidades federais, segundo levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior. O Brasil lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans, cuja expectativa de vida é de 35 anos . A violência contra pessoas negras também é alarmante: a cada 23 minutos um jovem negro é morto no Brasil, de acordo com dados do Mapa da Violência.
Não à toa, durante as aulas remotas da pandemia, não eram poucos os familiares dos alunos de Oliveira que apareciam na tela do computador com ar de incredulidade para vê-la. Eles queriam ter certeza que existe uma travesti, negra e doutora lecionando em uma das maiores universidades do país.
Foram muitos os obstáculos que Oliveira teve que superar para conquistar seus diplomas e passar no concurso para professora em uma prestigiada universidade federal. O padrão era sempre o mesmo: Oliveira ia bem nas provas escritas, mas acabava reprovada, não raro com cenas humilhantes, nas entrevistas. Apenas no mestrado, foram quatro tentativas fracassadas antes de conseguir uma aprovação.
Hoje ela contribui para a subversão das normas de raça e de gênero na academia. Sua presença mostra que travestis negras não são apenas objetos de estudo, mas também pesquisadoras e autoras. Sua tese, “O diabo em forma de gente — (r)esistência de gays afeminados, viados e bichas pretas na educação”, escrita em primeira pessoa, já rompe com o formato tradicional acadêmico. Nela, Oliveira reúne depoimentos de professores homossexuais negros, incluindo sua própria história, que sofreram por não se encaixarem nos padrões da heteronormatividade.
Oliveira trabalha na interseção entre a LGBTfobia e o racismo. Ela aponta que o movimento LGBT não discute racismo e o movimento social de negras e negros não discute LGBTfobia. No entanto, em 2019, 82% das vítimas de assassinato por transfobia eram negras .
Não por coincidência, desde que Oliveira assumiu sua cadeira, o número de alunos trans na UFPR vem aumentando. A sua presença também possibilitou o debate e ajudou na implementação de políticas afirmativas para pessoas trans. Hoje, pessoas trans contam com vagas suplementares em quatro cursos na pós-graduação da universidade. Segundo Oliveira, não é nada confortável ser a primeira a ter que abrir tantas portas. Mas ela o faz para que outras pessoas como ela deixem as margens e ocupem o centro.
Megg Rayara Oliveira é a 17ª entrevistada da série“Gestão Pública”, uma parceria do Nexo com a república.org . O projeto traz, ao longo dos meses, entrevistas em texto na seção “Profissões” — são conversas com profissionais que atuam na administração pública e ajudam a transformar a vida dos brasileiros.
Gestão Pública
Quem: Megg Rayara Oliveira
O que: Professora e pesquisadora
Onde: Na UFPR (Universidade Federal do Paraná)
No serviço público: Luta para tornar a universidade pública um ambiente mais diverso e inclusivo
Você é a primeira travesti negra doutora em educação do Brasil. Não é um espanto que isso só tenha acontecido em 2017?
MEGG OLIVEIRA Essa situação revela o violento processo de exclusão que incide sobre a comunidade trans. A maioria das pessoas trans passa por inúmeras situações de expulsão: de casa, do sistema formal de ensino, do mercado formal de trabalho…
Nossa entrada na universidade, principalmente na década de 1990, se deu na condição de cobaia, de objeto de estudo. Embora discutir travestilidade e transexualidade seja necessário, também precisamos perguntar como essas pesquisas operam para questionar ou reiterar estereótipos, preconceitos. Muitas pessoas que pesquisam gênero e diversidade sexual não conseguem nos ver como pesquisadoras. A academia também tem responsabilidade no processo de construção de obstáculos para nos manter do lado de fora.
Você é uma exceção. Como conseguiu seguir com os estudos mesmo sendo demonizada e marginalizada na escola?
MEGG OLIVEIRA Nasci e cresci no interior do Paraná, numa cidade chamada Cianorte. Uma cidade, à época, com forte tradição católica e extremamente conservadora. Desde muito cedo, as pessoas controlavam meu gestual, meu jeito de falar, de andar. Era alvo constante de comentários racistas e homofóbicos. Cresci ouvindo xingamentos do tipo moleque do capeta, bicha do capeta, moleque atentado, viado, pudim de piche, suco de pneu…
Tive que desenvolver inúmeras estratégias para continuar estudando, ainda que tivesse tomado consciência muito cedo de que o sistema educacional não me queria. Foi uma luta solitária, pois não tinha apoio nem em casa. Para minha família, trabalhar era mais importante que estudar. A partir dos 14 anos eu mesma fazia minha matrícula e tinha que me virar para comprar meus materiais escolares. Cresci ouvindo que estudo não enchia barriga de ninguém. Quando estava no último ano do ensino médio tive que parar de estudar para trabalhar numa destilaria de álcool. Foi no ensino médio que eu soube o que era uma universidade. Até então eu acreditava que, concluindo o ensino médio, eu estaria apta para exercer qualquer atividade. O vestibular apareceu na minha vida como mais um obstáculo e que provavelmente eu não daria conta de transpor. Mas uma professora de química me convenceu a tentar. Ao longo de toda a minha trajetória escolar na educação básica, ela foi a única a me tratar com respeito. Foi a única a me ver como gente.
Por que você escolheu ser professora?
MEGG OLIVEIRA Quando comecei o curso de Licenciatura em Desenho na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, em Curitiba, não tinha certeza que seria professora. Tinha muito medo de como seria recebida. A escola era um lugar que me trazia lembranças horrorosas. Foi na escola que aprendi o que era racismo, classismo e LGBTfobia. Os ataques vinham de todos os lados, inclusive de professoras e professores.
Cada vez que conversávamos a respeito do estágio obrigatório eu entrava em pânico, mas no fundo eu sabia que tinha um acerto de contas a fazer. Quando fui fazer meu estágio, ainda sendo vista como um gay afeminado, pois não tinha transicionado, fui muito bem recebida pelas crianças. Foi uma sensação de acolhimento muito grande. Durante o estágio, tive certeza do que queria fazer. Voltar para a escola como professora era a oportunidade que eu tanto buscava para proteger e estimular crianças e adolescentes parecidos comigo.
E por que escolheu o serviço público?
MEGG OLIVEIRA É na escola pública onde estão a maioria das pessoas negras e LGBT. É nesse espaço que eu poderia encampar uma luta contra o racismo e contra a LGBTfobia de forma mais intensa. Também percebo a escola pública como um espaço onde o docente tem maior liberdade para trabalhar.
Minha formação profissional também foi em instituições públicas e eu me sentia na obrigação de dar uma resposta positiva para a sociedade. Nunca me arrependi das minhas escolhas. Por sete anos trabalhei em escolas públicas estaduais e por 15 anos dei aula de desenho e pintura em tela na Fundação Cultural de Curitiba, em um bairro periférico. Trabalhava com crianças a partir dos 6 anos até a terceira idade.
Você sempre foi bem em provas escritas, mas, tanto no mestrado quanto no doutorado e no concurso público para professora, foi barrada nas entrevistas. Como foram essas experiências para você?
MEGG OLIVEIRA Era muito humilhante. Sou uma profissional muito dedicada e sei da minha qualidade como pesquisadora e como profissional. Foram quatro tentativas para ingressar no mestrado da UFPR. A primeira tentativa foi a mais traumática. Passei na prova escrita, meu projeto de pesquisa estava bem-feito e também foi bem avaliado. No entanto, a banca de entrevista foi um show de horrores. A professora que conduziu a entrevista foi muito agressiva. Não discutiu meu projeto. Ela preferiu me atacar. As afirmações eram direcionadas a mim e não ao projeto ou à pesquisa que eu pretendia fazer. Em nenhum momento ela disfarçou o desconforto com minha presença.
Eu estava com os cabelos presos, sem esmalte e maquiagem e não fiz uso do nome social. Ainda assim, meu corpo estava em desacordo com aquele espaço. Desistir não estava nos meus planos e na quarta tentativa eu entrei. Agarrei essa oportunidade como a mais importante até então. Foram inúmeras as situações de racismo e transfobia que enfrentei nesse processo, mas me mantive firme. Focada.
Depois de defender meu doutorado, minha experiência como candidata a professora universitária também é marcada por inúmeras situações de transfobia. Em Salvador, enquanto esperava a abertura dos portões para fazer a prova, um sujeito apareceu para me perguntar o valor do programa. As professoras que estavam perto de mim, riram alto revelando o que pensavam a meu respeito.
Passei na prova escrita e fui para a prova de desempenho didático. Uma das integrantes da banca não me olhava. Ela ficou o tempo todo mexendo no cabelo e na echarpe. Olhava para os lados, para o chão, para o teto… não me dirigiu o olhar uma única vez. Quando estava terminando minha aula, ela levantou-se e falou em voz alta, “vou ver se chegou alguém!”
Essa e outras situações revelam a transfobia estrutural no serviço público que impede que pessoas trans sejam tratadas como profissionais, independentemente da formação.
Existe alguma forma de tornar esses processos seletivos com entrevistas mais justos?
MEGG OLIVEIRA O movimento social precisa ser ouvido e consultado inclusive para contribuir no processo de elaboração de editais. É fundamental que se evite a presença de pessoas preconceituosas nessas bancas.
A banca do concurso em que fui aprovada aqui na UFPR era bastante diversificada. Havia uma professora negra, um professor gay, uma professora feminista. Essa diversidade contribui para que pessoas que não se enquadram num padrão de existência cis heterossexual branco magro etc. se sintam mais seguras em disputar esses concursos. Enquanto as bancas forem formadas apenas por pessoas padronizadas, tratadas como modelo universal de humanidade, as exclusões continuarão acontecendo.
Qual a maior contribuição que você acha que traz à Universidade Federal do Paraná?
MEGG OLIVEIRA Sou uma pesquisadora ativista. Não esqueço de onde vim e todas as dificuldades que enfrentei. Consegui em pouco tempo o reconhecimento como intelectual e isso faz com que eu seja ouvida. Denuncio de forma recorrente as exclusões que continuam em operação nessa instituição.
Hoje temos vagas suplementares para pessoas trans em quatro programas de pós-graduação. Ainda é pouco, mas é um começo. Oriento dois meninos trans e uma menina trans no mestrado. É um fato único no Brasil, isso em 2021. Não é nada confortável ser a primeira. O caminho precisa ser aberto e nem sempre a escolha me conduz para lugares seguros.
O ponto positivo é que muitas pessoas brancas cisgêneras têm pensado a respeito de seus privilégios e se colocado como aliadas. Avaliando a situação em outras universidades, posso concluir que a UFPR tem feito um trabalho bastante importante ao discutir e implementar políticas afirmativas para pessoas trans.
Seus alunos se inspiram em você?
MEGG OLIVEIRA Ouço sempre que muitas discussões que eu proponho eram inéditas para eles. Muitos estudantes passam a ver o mundo de outra maneira a partir das discussões que eu proponho e também a partir de tomarem contato com minha história. Em tempos de pandemia, com aulas remotas, muitos familiares aparecem na tela do computador para me ver. Para ter certeza de que existe uma travesti negra doutora e professora em uma das maiores universidades do país.
Pessoas negras e principalmente LGBTs me tomam como exemplo de militante e de profissional. O número de estudantes trans na UFPR vem aumentando e muitos falam da importância da minha presença e do meu trabalho. É muito estimulante ouvir isso. Em 2018, quando era professora substituta aqui na UFPR, tive uma turma com 96 estudantes. Levei um susto quando cheguei no auditório para dar aula e estava praticamente tomado.
A maioria eram pessoas brancas cisgêneras. Eles me escolheram como professora e isso me deixou muito emocionada. Até hoje alguns me procuram pedindo material de pesquisa. A partir deles conheci professoras de outros departamentos e acabamos fazendo trabalhos juntas. Estamos avançando. Devagarinho, mas estamos.
A academia é um espaço reconhecidamente tradicional. Você mencionou que na sua primeira aula estava nervosa, não se sentia parte daquele espaço. Ainda se sente assim?
MEGG OLIVEIRA Adentrar o espaço acadêmico como professora realmente me deixou bastante nervosa. Não tinha ideia de como seria recebida e por isso fiquei muito angustiada. No entanto, depois de alguns minutos em sala, estava bem tranquila. A turma me recebeu muito bem, sem nenhuma resistência. Hoje as pessoas da universidade me conhecem e quando optam em fazer aula comigo é porque confiam no meu trabalho. Sou muito segura do que faço e venho construindo alianças importantes na academia.
O serviço público está preparado para acolher os travestis, trans e negros no seu quadro?
MEGG OLIVEIRA É importante não tratar as opressões transfóbicas e racistas como iguais. A presença de pessoas negras é bem maior no serviço público, desde que estejam alinhadas com a cisgeneridade hegemônica.
Percebo que ainda existe uma certa desconfiança com nossa presença, principalmente da parte de pessoas mais velhas, cisgêneras heterossexuais brancas que nunca trocaram palavra com pessoas negras e/ou trans. Quando conseguimos transpor os inúmeros obstáculos que nos deixam do lado de fora é muito recorrente o uso de discursos meritocráticos para justificar a nossa presença nesses espaços. Destacam a importância de as pessoas se esforçarem e procuram nos convencer que as oportunidades são as mesmas para todas as pessoas.
É visível também discursos que tentam mascarar posturas racistas e LGBTfóbicas, mas quando essas pessoas se distraem, abaixam as armas, elas se mostram por inteiro e o racismo e a LGBTfobia aparecem. A função que exercemos envolve o contato direto com o público, há uma vigilância muito grande por parte de nossas chefias imediatas.
A UFPR implementou políticas afirmativas para pessoas trans na pós-graduação em educação. Você teve participação nisso?
MEGG OLIVEIRA Sim. Minha presença na UFPR possibilitou esse debate e ajudou muito a aprovar essa política.
Você critica que o movimento LGBT não discute racismo e o movimento social de negras e negros não discute LGBTfobia. Sua pesquisa inova ao pensar a questão de forma interseccional?
MEGG OLIVEIRA Faço essas provocações com a intenção de ampliar o debate, mas reconheço a importância de ambos os movimentos. Minha pesquisa é inovadora ao colocar essas questões de forma interseccional e venho ampliando esse debate procurando estabelecer uma aproximação com áreas variadas do conhecimento. De modo geral minhas provocações estão sendo recebidas de forma bastante positiva e o conceito interseccional vem ganhando bastante potência.
As universidades públicas estão atrasadas no rompimento do racismo estrutural ou da LGBTfobia?
MEGG OLIVEIRA Com certeza. É muito recorrente o discurso meritocrático para justificar as ausências de determinados grupos sociais no espaço acadêmico e também para evitar o debate sobre os privilégios da branquitude cisgênera heterossexual.
Existe diálogo entre academia e movimentos sociais?
MEGG OLIVEIRA Aqui na Superintendência de Inclusão, Políticas Afirmativas e Diversidade e Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFPR mantemos o diálogo de forma recorrente, mas não é uma realidade em toda a instituição. Analisando as pesquisas acadêmicas ainda é um processo em curso em algumas áreas, em outras não há nenhuma indicação de que esse diálogo vá ocorrer.
Muitas pessoas docentes e pesquisadoras nas universidades ainda adotam posições muito conservadoras em relação aos movimentos sociais e acabam reiterando a ideia de que o espaço acadêmico é o único espaço autorizado a produzir conhecimento. Na área de ciências humanas, o diálogo acontece com mais frequência, mas não é regra. Tem muitos PHDeuses nas universidades ainda.
“Gestão Pública” é uma série do Nexo em parceria com a república.org ,um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo. Em quase quatro anos de atividade, já apoiou mais de 100 projetos. Este projeto conta com a consultoria de Daniela Pinheiro e com edição de Marcelo Coppola.