A entrada das mulheres na Polícia Militar deu-se junto com o começo do processo de redemocratização do país. No Rio de Janeiro, as mulheres passaram a ser aceitas no quadro da PM em 1982. Hoje, no Brasil, apenas 12% do efetivo das polícias militares é formado por mulheres. São 357.501 pessoas do sexo masculino e 46.180 do sexo feminino entre praças e oficiais, segundo dados da Pesquisa Perfil das Instituições de Segurança Pública.
Acapitã Tatiana Lima é uma delas. Desde 2008, quando passou no concurso para a Academia de Polícia Militar do Rio de Janeiro, Lima vem desafiando estatísticas. Enquanto a maioria das mulheres ocupa apenas cargos administrativos e não operacionais na carreira, ela foi subcomandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) da Mangueira e Cidade de Deus e comandante na UPP Santa Marta. Lima acaba de concluir mais um curso. No fim de março, tornou-se uma das únicas mulheres do país aptas a ser motociclista da polícia. Os obstáculos à igualdade de gênero presentes no cotidiano policial não impediram que Lima percorresse seu caminho. Segundo a capitã, sua estratégia é investir em treinos físicos. Apesar de as provas de capacidade física exigirem índices mais baixos para mulheres do que para homens, ela sempre treina para alcançar — e alcança — as metas masculinas. Assim, diz que consegue respeito sem precisar brutalizar-se ou abrir mão de suas características femininas. E trabalha sempre com sorriso no rosto, alegria herdada de seus pais circenses.
Tatiana Lima é a última entrevistada da série“Gestão Pública”, uma parceria do Nexo com a república.org . O projeto traz, ao longo dos meses, entrevistas em texto na seção “Profissões” — são conversas com profissionais que atuam na administração pública e ajudam a transformar a vida dos brasileiros.
Gestão Pública
Quem: Tatiana Lima
O que: Capitã da Polícia Militar
Onde: No Batalhão de Choque do Rio de Janeiro
No serviço público: É chefe da seção de recursos humanos e treina para atuar como motociclista de escolta e segurança
Por que você escolheu o serviço público?
Tatiana Lima Quando eu era pequena meus pais me levavam, com minhas duas irmãs, para os desfiles cívicos do 7 de setembro, no centro do Rio de Janeiro. E eu olhava aquilo admirada. E foi nessa época que comecei a dizer que queria ser militar. Conforme fui crescendo, fui me interessando pelas diferenças dentro das próprias forças militares. E foi na Polícia Militar que percebi que poderia ter um contato maior na ponta com a sociedade, ajudar de maneira bem concreta no primeiro momento de necessidade. Qualquer pessoa que precise de ajuda na rua o primeiro número que vem à cabeça é o 190. E poder servir diretamente à sociedade me atraiu e atrai muito, isso acabou definindo minha escolha de fazer concurso para PM.
Amigos e familiares apoiaram a sua decisão?
Tatiana Lima Lógico que sentiram um pouco de medo, mas sempre apoiaram minhas decisões. E sentem muito orgulho.
Você é de família circense. Que tipos de marcas isso deixou na sua personalidade?
Tatiana Lima Meu pai era palhaço de circo e minha mãe fazia o número da mulher barbada com ele. Eles se conheceram no circo e tiveram três filhas. Essa alegria do circo e poder levar alegria para os outros me marcou muito. O mundo está tão difícil, tão marcado pela violência que pequenos atos, como tratar as pessoas com simpatia, já tornam o ambiente mais agradável. O sorriso que eu sempre carrego no rosto é uma herança do circo. E quebra muito mau-humor. Gentileza gera gentileza.
Como é sua rotina de trabalho atual?
Tatiana Lima Atualmente, trabalho no Batalhão de Polícia de Choque. Assim que eu me formei na academia de oficiais, trabalhei sete anos nas Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro. Depois que saí da UPP fiquei um ano e meio na Secretaria de Segurança e agora estou no choque há dois anos. A minha rotina aqui é mais administrativa. Continuo indo a operações, mas bem raramente. Aqui é um batalhão especial e para ir às ruas você precisa do brevê do batalhão. Eu treinei bastante e hoje estou fazendo o curso de motociclista de escolta e segurança. É um curso bem puxado, quase nenhuma mulher tem. Eu me esforcei muito para conseguir. Agora vou poder ir mais para a rua e trabalhar com motocicleta nas operações nas favelas, na escolta de dignitários e valores. E comandar a tropa no terreno.
Como foi sua experiência nas UPPs?
Tatiana Lima Em sete anos nas UPPs, fui subcomandante da UPP Mangueira e da UPP Cidade de Deus. Fui chefe da ouvidoria das UPPs e fui comandante da UPP Santa Marta. Foi uma experiência de vida incrível. Comecei muito nova, era tenente, depois fui promovida a capitã. E bem nova tive a oportunidade de gerir 400 homens, cuidar das instalações, sempre me preocupando em reduzir a violência e a mancha criminal daquela comunidade que foi dada aos meus cuidados. Por isso, considero a UPP uma escola de humanidade. Você vê tanta falta de assistência para essas comunidades, falta tudo. O único poder que está ali é o policial. E você como policial acaba tentando resolver problemas urbanos, sociais, fora do seu escopo. Então a gente acaba se envolvendo muito com esses problemas.
Pode se dizer que as UPPs fracassaram?
Tatiana Lima Não sei se a gente pode dizer que as UPPs fracassaram. Elas ainda existem. O que aconteceu é que inauguramos muitas unidades uma atrás da outra, chegamos a ter 38. Hoje temos umas 20. Mas o fato de terem sido inauguradas muitas em pouco espaço de tempo acabou prejudicando a consolidação delas. É um projeto de longo prazo, que demanda tempo. A PM pode até entrar e ficar naquela comunidade, mas ela não vai resolver sozinha. O projeto em si da UPP é muito bom, mas os outros órgãos do governo também precisam se envolver. A polícia sozinha não resolve. E erramos quando fomos inaugurando um monte de UPP sem a participação efetiva dos outros atores. Era melhor ter começado aos poucos, com algumas unidades-piloto, antes de partir para as próximas.
Como você acha que estão, hoje em dia, as comunidades em que você trabalhou?
Tatiana Lima Eu acho que as UPPs tiveram um declínio, o efetivo era maior, tinha mais investimento e isso foi se perdendo. E a gente observou que o tráfico foi se adaptando. Ele viu e se aproveitou das falhas das UPPs. E como disse antes, a polícia nas comunidades não resolve nada sozinha. Os outros órgãos também eram necessários.
Qual é o papel da PM na redução da violência?
Tatiana Lima O cerne da nossa missão é estabelecer a ordem e reduzir a violência, mas a polícia militar sozinha não garante a segurança pública. O próprio artigo 144 da Constituição diz que é dever do Estado e responsabilidade de todos zelar pela ordem pública.
Você é a favor da unificação das polícias civil e militar?
Tatiana Lima Poucos países no mundo têm suas polícias divididas como aqui no Brasil. O ideal realmente seria apenas uma força policial para fazer a parte ostensiva e a parte investigativa. No entanto, não consigo vislumbrar essa mudança ocorrendo por aqui.
A PM é muitas vezes vista como violenta e corrupta. O que você acha desse estigma?
Tatiana Lima Acho que boa parte da violência que existe hoje ainda é resquício do período da ditadura. A nossa imagem é maculada desde essa época. E a corrupção é um reflexo da nossa sociedade. Ela está na polícia, mas também em todos os outros órgãos públicos e privados. Dentro de hospital, estamos vendo esquemas de corrupção até com as vacinas. Tem desvio de dinheiro de merenda escolar. A nossa sociedade é muito corrupta e a PM faz parte dela.
No Brasil, apenas 12% do efetivo da Polícia Militar é formado por mulheres. Quais os benefícios que a diversidade de gênero traz para uma corporação como a PM?
Tatiana Lima A Polícia Militar só passou a aceitar mulheres no seu quadro recentemente, a partir de 1982. Ainda era governo militar. A lógica foi trazer mulheres para que elas pudessem ajudar a amenizar a imagem negativa da polícia. Queriam botar as mulheres para trabalhar nas ruas e no trânsito. Isso trouxe muitos benefícios porque as mulheres têm características mais humanas. E isso dentro da polícia militar é essencial porque a gente trabalha diretamente com a sociedade, no trato com as pessoas.
Desde que você entrou para a PM houve avanços na adaptação da instituição para acolher suas servidoras mulheres?
Tatiana Lima Eu entrei em 2008, fiz a academia, me formei em 2010 e fui trabalhar nas ruas. Eu peguei um momento em que a entrada das mulheres nas UPPs foi muito valorizada, usada como uma estratégia dentro da corporação. Nas próprias UPPs a imagem das policiais femininas ajudou muito na pacificação. A gente precisava do diálogo com a comunidade e as mulheres por serem mais humanas e acolhedoras conseguiram abrir esse espaço. Então, externamente foi bom. Internamente, principalmente nas missões operacionais, o preconceito continuou. A mulher continua sendo vista como mais fraca. Em uma operação com emprego de armas longas utilizadas em massa, sempre duvidam da performance da mulher. Hoje as mulheres estão começando a mostrar de forma positiva que também querem ocupar esse espaço. Eu, por exemplo, estou fazendo um curso onde quase não tem mulher. Vou ser praticamente a primeira a fazer esse curso operacional de motociclista. Então também tem o lado de a mulher querer fazer. E a PM acolheu esse meu desejo de atuar nesse ramo. O número de mulheres que querem estar no front está aumentando aos poucos. Aí basta ela treinar e tentar se igualar fisicamente aos homens, apesar de eles terem uma genética mais favorável. Tudo é treino.
Como a pandemia afetou o seu trabalho?
Tatiana Lima Afetou não só o trabalho como a vida pessoal de todo mundo também. Senti as limitações de não poder fazer determinadas coisas, mas a PM não para. Mesmo com o vírus, a gente tem que se cuidar, redobrar a higiene, mas tem que sair para trabalhar porque não pode ficar em casa.
Quais suas maiores contribuições para a PM? Como você busca aprimorar a corporação?
Tatiana Lima Minha maior contribuição é todo dia quando saio de casa para trabalhar. Diariamente coloco minha vida em risco, me exponho, a PM é um sacerdócio. Para ser PM, você precisa ter vocação e ter o sacerdócio. Você sai de casa sem saber se vai voltar. Ser PM é estar todos os dias pronto para servir à sociedade no momento em que ela precisar. E eu sempre busco me capacitar, me qualificar para melhor defender a população.
Governos importam?
Tatiana Lima A meu ver, um governante motivado e comprometido com a sua missão e função pode fazer toda a diferença. A gente precisa de pessoas com espírito público e disposição para estar ali. Importa demais para quem está fora do poder e precisa do serviço prestado pelo Estado. O governo importa muito, mas é preciso pessoas motivadas, empolgadas, comprometidas, que deem realmente valor ao que estão fazendo e saibam da importância que aquilo representa para aqueles que recebem aquele serviço.
“Gestão Pública” é uma série do Nexo em parceria com a república.org ,um instituto apartidário e não-corporativo, dedicado a melhorar a gestão de pessoas no serviço público, em todas as esferas de governo. Em quase quatro anos de atividade, já apoiou mais de 100 projetos. Este projeto conta com a consultoria de Daniela Pinheiro e com edição de Marcelo Coppola.