Jorge Gauthier é jornalista. Formado na UFBA (Universidade Federal da Bahia) na primeira turma de estudantes que ingressaram na Faculdade de Comunicação via cotas raciais, antes da criação da Lei de Cotas nacional. Trabalha como editor de mídia e estratégia digital no jornal Correio, em Salvador. Antes, atuou em outras áreas, da produção à chefia de reportagens.
Escolheu o jornalismo por ver nele uma ferramenta de transformação social. “A informação é a melhor forma de combater preconceitos”, disse. Especializado em formatos digitais, distingue o jornalismo profissional de outros tipos de comunicação nas mídias sociais, que não seguem os mesmos padrões de apuração, verdade e responsabilidade.
Gauthier é o terceiro entrevistado da cobertura especial sobre ações afirmativas que o Nexo faz em parceria com o Instituto Ibirapitanga. A iniciativa traz entrevistas com profissionais negros e negras que tenham sido cotistas em universidades ou que de alguma forma tenham sido beneficiados por ações afirmativas. O objetivo é destacar suas trajetórias e o impacto dessas políticas em suas vidas.
Ações afirmativas
Quem : Jorge Gauthier
O quê : Jornalista
Como você foi seu percurso até a universidade? Por que escolheu a carreira que escolheu?
JORGE GAUTHIER Sou do interior da Bahia. Nasci numa cidade chamada Paripiranga, que fica na divisa com Sergipe. Estudei até a sexta série em colégios públicos do interior. Vim para Salvador nessa época, quando cursei o colégio público da capital. A chegada a Salvador, vindo do interior, é bem difícil. De uma cidade de pouco mais de 20 mil habitantes, cheguei a uma metrópole de 2 milhões. É outro fluxo, outra percepção de realidade social e racial.
Minha mãe é professora, hoje aposentada, e meu pai, motorista, hoje falecido. Fui a primeira pessoa — e até hoje sou a única — da minha família por parte de mãe a cursar uma universidade pública. Praticamente todo o restante da família por parte de mãe não fez ensino superior, por dificuldade de acesso.
E escolhi o jornalismo… Na verdade, não ia escolher. (Risos.) Ia escolher engenharia, porque sempre fui muito bom na parte de exatas. Mas eu tinha o que se chama de vocação, inspiração para a comunicação, desde muito cedo. Aquele clássico: “você fala muito bem”, “você vai para o Jornal Nacional”, coisas do gênero. Sempre fui muito curioso e sempre acreditei que a comunicação é uma forma de transformação social. Acho que o principal motivo da minha escolha — e o que me faz até hoje seguir dentro da comunicação — é que entendo que a comunicação é um mecanismo de transformação social, e a informação é a melhor maneira de combater os preconceitos na sociedade. Esses pilares foram os que me levaram para essa carreira.
Até chegar à universidade, foi a vida toda estudando em colégios públicos. Fiz apenas três meses de cursinho pré-vestibular. Consegui uma bolsa para fazer uma revisão antes da segunda fase da UFBA, que foi a universidade para a qual passei em 2004.
Como foi sua vida na universidade como cotista?
JORGE GAUTHIER Entrei na Faculdade de Comunicação da UFBA na primeira grande leva de alunos cotistas. Aquele sempre foi um espaço muito elitista, com pouquíssima representatividade de pessoas negras, tanto no corpo de alunos quanto no de professores. Havia pessoas negras apenas na parte de funcionários, basicamente.
No primeiro momento, a universidade não estava preparada para nosso acesso. Na primeira semana de aula, por exemplo, uma professora branca falou que, para sermos bons alunos no ensino superior, a gente deveria ter um computador com acesso à internet e uma impressora. E estamos falando de 2005, né? Passei no vestibular de 2004, mas a UFBA teve uma greve, então só entrei de fato em agosto de 2005. Naquela época não tinha internet de qualidade, celulares, essas coisas todas. Levantei a mão, naquele momento de aula, e perguntei: “professora, não tenho computador, não tenho acesso à internet”.Trabalhava no telemarketing para custear meu acesso e transporte para a faculdade. “A senhora quer dizer que não posso fazer a universidade?”
Daquele momento para frente — e anos depois ela se desculpou pelo comentário —, a universidade teve que, junto com a gente, passar por processos de transformação. Não tinha programas de permanência de forma efetiva. Os professores tinham, em sua maioria, especialmente nos primeiros semestres, uma visão de que os cotistas eram menos preparados do que os outros alunos. Isso começou a ser modificado no fim do primeiro semestre, a bem da verdade, porque, na época, a UFBA tinha um sistema de score por nota. Para se matricular no semestre seguinte, quem tinha o score maior tinha prioridade na escolha de matérias. Do segundo ao último semestre, eu e outro colega, chamado Nilmar Rosário, estávamos na frente nos scores de praticamente todos os alunos da nossa turma. Era eu ou Nilmar.
Houve muita dificuldade, inclusive de alguns professores, para entender que nossa turma — minha turma era de 90 pessoas, entre jornalismo e produção cultural — precisava ter o conhecimento direcionado. Em algumas disciplinas, como as de fotografia — hoje a gente está falando de fotografia digital, mas peguei a última rebarba de fotografia impressa —, os equipamentos eram caríssimos. Tive colegas que desistiram da faculdade nesse semestre porque não tinham condições de comprar insumos para a aula.
Com relação aos alunos, foi evidente o choque, especialmente para as pessoas que já estavam na universidade, de ver tantas pessoas negras chegando ao mesmo tempo. Isso foi inédito dentro da Faculdade de Comunicação. Houve, obviamente, muitas questões, muitos momentos de embates sociais, econômicos e políticos.
Para mim, o desenvolvimento acadêmico foi enriquecedor. Foi algo construído, obviamente. Nossa formação vai se adaptando ao passo dos dias. E, honestamente, não vejo que fique aquém de pessoas que não entraram pelo sistema de cotas. Todos os meus colegas que se formaram junto comigo, especialmente os cotistas, que são meus amigos de muitos anos, estão em altas posições no mercado de trabalho.
Sua formação está presente no trabalho que você faz hoje? Como?
JORGE GAUTHIER Sim. Estou hoje como editor de mídias e estratégia digital do jornal Correio, aqui da Bahia. Minha formação, então, está presente no trabalho que executo hoje. E mais do que isso. Hoje estou numa empresa que tem como referência as questões de inclusão e diversidade, as questões de letramento racial. Todas as questões estão dentro do escopo da empresa neste período que estou aqui, desde 2009, quando entrei como estagiário.
O que mudou entre sua expectativa na universidade e a realidade no mercado de trabalho?
JORGE GAUTHIER Em parte, [a situação de agora] atende às minhas expectativas, mas também porque a gente vai mudando aquilo que quer. Mudei muito minhas percepções dentro do jornalismo. Eu trabalhava muito com reportagem, gostava muito de ser repórter. Era minha vocação primária, digamos assim. Mas, nos últimos anos, ampliei esse portfólio de atuação, porque fui para um caminho mais gerencial, de pensar as estratégias de comunicação. Fiz três cursos de pós-graduação e MBA: em jornalismo científico e tecnológico pela UFBA, em marketing estratégico pela Unifacs [Universidade Salvador] e em marketing pela USP [Universidade de São Paulo]. Para trazer a guinada digital do meu trabalho — hoje cuido basicamente dos aspectos digitais do jornal —, tive que me adaptar e buscar conhecimento nessas áreas. Não foi [uma mudança de expectativa] com relação à universidade em si, mas em relação ao mercado de trabalho, de buscar essa transformação e acompanhar este momento de transição digital.
Qual a maior dificuldade da profissão que você escolheu? E o melhor aspecto?
JORGE GAUTHIER O jornalismo é uma profissão com uma dificuldade clássica de acessos. Nosso mercado é muito limitado. Em 2009, quando concluí a graduação, a quantidade de empresas de comunicação em Salvador era muito pequena. Só existem três jornais de grande porte. Hoje a gente sabe que modificou um pouco. Temos mais empresas de comunicação. Mas, ainda assim, há uma dificuldade com relação à quantidade de vagas e à valorização salarial. Se você vai para o recorte racial, pessoas negras, como eu, não ganham os mesmos salários que pessoas brancas exercendo funções semelhantes. Essa é uma lógica do mercado em várias praças. Tenho colegas que não estão mais na Bahia e passam por isso de forma gritante no mercado de trabalho.
Com relação ao melhor aspecto, acho que é um pouco do que falei na primeira pergunta. A comunicação é um elemento de transformação social. Mudar talvez não o mundo todo, mas pelo menos aquele mundo com o qual você convive é o mais importante.
O que te motiva hoje? Quais são os seus planos para o futuro?
JORGE GAUTHIER Como disse, tenho buscado qualificação no aspecto digital. Também sou responsável por uma equipe que, digamos assim, está em idade de formação. Essas pessoas me motivam a trabalhar todos os dias e a transferir para elas um pouco desse pensamento de que a comunicação pode ser transformadora. Minha principal motivação é esta: trazer para meu time — que, na verdade, é 50/50, com 50% de pessoas com menos de 25 anos e 50% com mais de 50 anos — a filosofia de que a comunicação é importante — e tão importante quanto ela é ter qualidade de vida.
Tenho um mantra diário com minha equipe que é o “respire a paz”. Buscamos qualidade de vida por meio da prática esportiva, da terapia, do senso de coletividade para que as pessoas tenham um ambiente de trabalho mais construtivo e digno, trazendo o respeito como principal pilar.
Acho um pouco desnecessário prever planos para o futuro, porque a gente vai fazendo o futuro no presente. O que tenho buscado hoje são essas qualificações para melhorar enquanto profissional do mundo digital. E o futuro está no futuro. (Risos.)
O que você diria para alguém que está pensando em trabalhar como jornalista?
JORGE GAUTHIER Uma coisa que digo sempre para os estagiários, em palestras de faculdade e afins, é que jornalismo é trabalhar com a verdade, dentro de critérios de apuração. Vivemos hoje uma expressão grande de gente achando que é jornalista porque tem acesso a mídias digitais, a um celular, [pensando] que “qualquer pessoa” pode ser jornalista. O jornalismo profissional é diferente. Para se entender enquanto jornalista profissional, você precisa entender o papel do jornalismo, a responsabilidade social e, mais do que tudo, o comprometimento com seu leitor.
Esses pilares fazem a diferença para você se manter no mercado de trabalho, mostrar sua diferença e, mais do que isso, preservar o seu nome — que é outra coisa que sempre digo: você tem um nome a zelar. Se você vai buscar trabalho em determinados veículos de comunicação, use seu nome e sobrenome como as coisas mais importantes que você tem para defender. Não assine uma matéria sobre algo que esteja errado. Não faça uma reportagem que vai de encontro aos seus princípios. O principal é isso. Como reforço, tem que gostar do que faz, porque em qualquer profissão — é meio clichê falar isso —, se a pessoa não gostar do que ela faz, não vai adiantar de nada.
A Lei de Cotas completa 10 anos em 2023. Como você a avalia?
JORGE GAUTHIER A realidade em que estou inserido, da minha formação, é um pouco anterior a esse período de 10 anos da Lei de Cotas nacional. A UFBA instituiu em 2002 — começou a pensar em 2002, na verdade — um programa chamado Universidade Nova, que tinha o objetivo de facilitar o acesso e a inclusão de pessoas negras na universidade. Houve um período de estudo, e o vestibular de 2004, que foi o que fiz, foi o primeiro com política de cotas para alunos pretos e pardos que estudaram em escola pública.
Eu estava nessa primeira leva de alunos cotistas, como falei. Vi essa transformação ao longo dos anos e tenho percebido a maior presença no mercado de trabalho de pessoas negras que entraram nas universidades pelo sistema de cotas. E não só no jornalismo, mas em diversas profissões e carreiras. Muito do que se discute hoje de segmentos da sociedade que são contra políticas afirmativas é justamente porque eles passaram a ver pessoas pretas e pardas em lugares onde antes a gente não era bem-vindo.
Acho que o principal benefício da Lei de Cotas é trazer essa reflexão — mais do que o acesso. O acesso obviamente é importante, porque ele traz possibilidades, subsistência, oportunidades para as pessoas, mas também há essa discussão para a sociedade. A sociedade precisa discutir, entender, perceber, respeitar a existência de pessoas pretas e pardas e dar oportunidades a elas.
Ao contrário do que muita gente pensa, as pessoas pretas e pardas não estão tirando o lugar de brancos. Na verdade, elas estão tendo acessos permitidos por uma questão legal, mas que atendem a uma reparação histórica e social. Além disso, no mercado de trabalho, ninguém vai perguntar se você é cotista ou não. Os fluxos de trabalho se sobrepõem a essa questão do acesso à universidade, quase 20 anos atrás, no meu caso.