Profissões

‘Considero que a minha primeira soft skill foi a curiosidade’

Suzana Souza17 de novembro de 2023(atualizado 28/12/2023 às 22h13)
Conheça Vitor Lima, designer de produtos digitais formado em sistemas de informação pela Universidade Federal do Pará, campus Castanhal
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Vitor Lima é designer de produtos digitais. Aos 25 anos, é formado em sistemas de informação pela UFPA (Universidade Federal do Pará), campus Castanhal. Trabalha em uma multinacional brasileira do ramo de bebidas e mora no Rio de Janeiro.

Apesar de Belém constar em sua certidão, Lima conta que foi para a capital só para nascer. Cresceu e viveu a adolescência em São João de Pirabas, município de 20 mil habitantes no nordeste do Pará, onde até hoje seus pais moram. Filho de um vigia e pescador e de uma dona de casa, decidiu que iria trabalhar na área de tecnologia na adolescência, quando a ideia de cursar uma universidade pública ainda parecia distante.

Ingressou na UFPA utilizando cota racial em 2017 e se beneficiou de auxílios, bolsas e várias possibilidades acadêmicas apresentadas. “É interessante observar como a própria noção de universidade e o fato de eu ter acessado esse espaço a partir da cota contribuíram muito para o meu processo de reconhecer minha negritude também”, disse.

Lima é o quinto entrevistado da cobertura especial sobre ações afirmativas que o Nexo faz em parceria com o Instituto Ibirapitanga. A iniciativa traz entrevistas com profissionais negros e negras que tenham sido cotistas em universidades ou que de alguma forma tenham sido beneficiados por ações afirmativas. O objetivo é destacar suas trajetórias e o impacto dessas políticas em suas vidas.

Quem : Vitor Lima

O quê : Designer de produtos digitais

Como foi seu percurso até a universidade? Por que escolheu a carreira que escolheu?

Vitor limaEu venho de uma família pobre, meu pai é vigia e pescador e minha mãe é dona de casa. Eu não tinha tanta perspectiva do que era fazer uma universidade, não tinha isso como algo palpável, apesar dos meus pais sempre terem dito você vai, sim, fazer universidade. E no ensino médio meus professores me incentivaram a fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio].

Sempre estudei em escola pública, na cidade em que eu morava, um município de 20 mil habitantes, só tinha escola pública. E sempre tive aptidão para exatas, sempre gostei de matemática, de cálculos… Daí eu decidi que eu ia para a área de tecnologia. Tinha isso como uma meta, como um sonho mesmo. Mas não tinha o suporte necessário. Meus pais me apoiavam, mas não tinham como pagar um cursinho pré-vestibular para mim. Quem tinha dinheiro ia para outra cidade, todos os dias, fazer os cursos preparatórios. Eu estudava em casa e participava dos cursinhos solidários que apareciam. Foi isso que me ajudou.

O meu curso especificamente, sistemas de informação, escolhi muito porque era algo dentro do que eu queria, mas que eu sentia que poderia fazer também. Porque naquela época eu queria mesmo era fazer ciência da computação, no campus de Belém, capital do estado, mas era um curso super concorrido, exigia uma nota alta. Então eu pensei em como driblar aquela concorrência e optei por escolher sistemas de informação em Castanhal, num campus descentralizado. E no ato de fazer o Enem, eu já tinha a cota de escola pública, que optei na época, então eu ganhei 10% da minha nota a mais, o que também me ajudou.

Como foi sua vida na universidade como cotista?

vitor LIMAAlém da cota de escola pública para o acréscimo da nota do Enem, na universidade em si eu entrei com cota racial. Na época eu me declarei como pardo, e é interessante observar como a própria noção de universidade e o fato de eu ter acessado esse espaço a partir da cota contribuíram muito para o meu processo de reconhecer minha negritude também. Foi na época da universidade que eu deixei meu cabelo crescer pela primeira vez, por exemplo. Tudo veio para mim como um processo muito único.

Como eu não tinha como me manter em Castanhal, cidade na qual eu fui estudar, eu já cheguei na universidade requerendo os auxílios disponíveis para cotistas. Na UFPA, e em muitas outras federais, você tem o auxílio permanência e o auxílio moradia. Eu me candidatei para os dois, consegui o auxílio permanência, e foram esses R$ 400 que me mantiveram na universidade nos primeiros anos, até eu começar a produzir pesquisa e ganhar bolsa voltada para estudante pesquisador.

Meus pais não tinham como me manter em outra cidade, pagar aluguel, passagem para UFPA, minha alimentação… Para ser bolsista do auxílio permanência, eu não podia trabalhar, nem ter outras bolsas, e precisava ter boas notas. E pensando em retrospecto, eu vejo que eu realmente não teria conseguido passar por essa fase, me manter na universidade, me focar nos estudos, se não fosse essa bolsa. E outras bolsas que vieram depois também, porque eu me dispus a participar de tudo que eu pude.

Sinto que a universidade foi um momento de virada de chave na minha vida. Na UFPA eu fui monitor, desenvolvi dois anos de pesquisa no Pibic [Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica], participei do centro estudantil, organizei eventos… Naquela época eu ia para a universidade às 9h e voltava às 22h. E meu curso não era integral, eu ficava ali porque estava envolvido nas atividades mesmo, estava estudando. Eu me formei com média geral de 9,7 e, até agora, é a maior média da história do curso. E apesar de ser só um número, ele me diz muito sobre como eu vivi bem essa época, como eu aproveitei esse momento da minha vida. É gratificante olhar para trás.

Sua formação está presente no trabalho que você faz hoje? Como?

vitor LIMAO curso de sistemas de informação basicamente foca em como a gente desenvolve softwares observando as pessoas da sociedade. Essa é a definição que eu uso. Ao mesmo tempo que eu sou muito de exatas, estudo cálculo, desenvolvimento, códigos… Tem um lado muito de humanas do curso também, de estudar filosofia, sociologia, psicologia. Isso está presente na minha atividade hoje. Meu trabalho é muito focado em olhar para quem usa as ferramentas que eu desenvolvo e me perguntar se está funcionando ou não, se o usuário está satisfeito ou não, se ele se sente respeitado ou não.

E sistemas de informação na UFPA não foi só o meu curso, foi também minha formação pessoal enquanto indivíduo. Eu considero que a minha primeira soft skill [habilidade comportamental ligada ao mercado de trabalho] foi a curiosidade. Eu fui pesquisador na universidade e me considero pesquisador até hoje, já que eu faço pesquisas de mercado e de público. O curso me ensinou a entender um problema e aplicá-lo numa pesquisa, ainda que não acadêmica. E durante muito tempo eu pensei que seguiria a carreira acadêmica, emendando no mestrado e no doutorado. Mas teve uma mudança nessas expectativas quando eu participei do Summer Job do CESAR, no Recife. É um intercâmbio internacional, que leva estudantes de todo o Brasil e de outros países para viver uma experiência completa, com tudo pago, ganhando salário e desenvolvendo um projeto para uma grande marca.

Essa experiência me mostrou que eu também posso ser pesquisador e olhar para tudo que está acontecendo à minha volta na sociedade contribuindo de dentro do mercado também. Com esse entendimento eu fui me direcionando para o lugar que eu trabalho hoje, que me sinto muito confortável e que me dá uma satisfação profissional e pessoal muito grande. E sinto que o curso, a experiência de aprender a pesquisar, também me ensinou a nunca ter minha curiosidade 100% satisfeita, que é algo que me move muito.

O que mudou entre sua expectativa na universidade e a realidade no mercado de trabalho?

VITOR LIMAAcho que a minha principal diferença de visão do mercado daquela época é que primeiro eu queria ser um pesquisador pleno dentro da universidade, percorrer todo o caminho acadêmico. E hoje eu estou em campo, desenvolvendo software na mão, falando com pessoas e contribuindo para uma grande companhia. Acho que mudei muito os rumos do que eu queria antes para onde eu estou agora.

Tem também algo sobre o fato de que quando eu estava na universidade, a gente vivia um momento melhor do mercado de tecnologia, não existiam tantos layoffs nas empresas. Por mais que hoje ainda tenha bastante vaga, na época eu tinha mais esperança também. Sabe aquela coisa de entrar no mercado de trabalho e estar no Google seis meses depois? [Risos]

Mas uma coisa que hoje eu vejo com mais autoridade é como a gente também aprende muito observando quem faz com excelência. Hoje eu trabalho numa grande companhia e eu convivo com pessoas que são muito, muito boas no que fazem. Às vezes sinto que isso me ensina mais do que 12 horas de aula. E só o mercado poderia me dar esse aprendizado ali, mão na massa. Eu vejo hoje pessoas que me inspiram absurdamente no trabalho, e o meu trabalho é melhor por causa dessas pessoas. Eu sinto que a universidade é como se fosse uma pessoa muito experiente te ensinando, mas o mercado de trabalho é você vendo, do lado da pessoa, ela fazendo esse trabalho de excelência na prática.

Qual a maior dificuldade da profissão que você escolheu? E o melhor aspecto?

vitor LIMAEu diria que [a maior dificuldade] é lidar com as pessoas. Interessante, né? Porque a minha profissão basicamente é lidar com pessoas, e a maior dificuldade é lidar com pessoas. Mas é porque eu venho de uma formação que, querendo ou não, é de exatas. É uma lógica binária, ou é sim, ou não, ou funciona, ou não funciona. Quando eu estou desenvolvendo um software, codando, fazendo cálculos, isso é fácil.

Mas quando eu falo de desenvolver experiência para as pessoas, quando eu falo de usabilidade, tudo é relativo. O ser humano é muito complexo, as pessoas por trás das telas são muito complexas. É muito complicado você exercitar a empatia, e trago esse termo porque ele é muito usado dentro do design de experiência. É o exercício de se perguntar se o que eu sinto ao navegar em determinado contexto é o mesmo que a outra pessoa está sentindo, e vice-versa.

Mas vejo que essa prática de time é desafiadora, mas ao mesmo tempo incrível. E uma coisa boa do meu trabalho hoje é estar sempre exposto a contextos muito diversos. Você nunca sabe o que esperar exatamente. Eu já tive experiências incríveis e chatas. E acho que essa é a graça. Recentemente eu mudei de área na empresa. Saí de uma parte de vendas, cheguei para logística, e o trabalho mudou 100%, porque é uma empresa muito grande. Mudou tudo: todo mundo com quem eu falo diariamente, com quem eu lido. E eu amei isso. Acho que tem a ver com a curiosidade mesmo.

O que te motiva hoje? Quais são os seus planos para o futuro?

VITOR LIMA Como eu já disse, o meu trabalho me mantém muito motivado, mas recentemente tenho sentido vontade de ir além e me especializar em alguma coisa, ser líder, fazer projetos de impacto. Como sempre, minhas opções são muito abertas. Eu penso também em fazer um trabalho de grande porte ou maior. E, considerando que eu já trabalho numa das maiores empresas do país, isso é engraçado. Mas eu sonho também em trabalhar com pesquisa, tenho olhado bastante para a reflexão da ciência que eu pratico. Quero fazer o mestrado e também passar um período fora do Brasil.

O que você diria para alguém que está pensando em trabalhar como designer de produtos digitais?

VITOR LIMAO mercado atual pode não parecer um dos mais agradáveis, mas se você é uma pessoa curiosa, se você gosta de falar com pessoas, de se comunicar, eu diria “vai nessa”.

Mesmo a gente passando por esse momento de instabilidade no mercado da tecnologia, eu não mudaria [minha escolha de profissão]. Eu acho que ser um designer de produto hoje em dia é se sentir um pouco dono da experiência das pessoas. E tomar as dores também: se meu usuário não consegue fazer a atividade que ele queria no produto que a gente desenvolve, é porque fracassamos.

Mas ao mesmo tempo, às vezes eu recebo feedbacks de movimentos que eu faço dentro da empresa e as pessoas falam nossa, eu nem sabia que eu conseguia fazer isso, e é o melhor de tudo. É você conseguir desempenhar seu trabalho de uma forma que é tão natural que as pessoas se sentem autônomas por elas mesmas. É muito rico, não só profissionalmente, mas também no lado humano e pessoal.

A Lei de Cotas completa 10 anos em 2023. Como você a avalia?

VITOR LIMAAcredito que a Lei de Cotas performa bem, mas eu diria que, pela minha experiência, ela poderia melhorar em dois pontos principais. O primeiro é um suporte melhor para os estudantes. E aqui eu estou falando de suporte financeiro mesmo. Porque o dinheiro que eu tinha em 2017 com o auxílio, que me manteve na universidade até eu começar a pesquisar e depois estagiar, eu diria que é impossível para bancar um custo de vida hoje. Nenhum estudante consegue viver com R$ 400 em 2023, pagando aluguel, transporte…

E o segundo ponto é que a universidade também tem que se preparar melhor para receber os cotistas. Aqui já é sobre o ambiente acadêmico em si. Eu tive disciplina de cálculo, por exemplo, em que eu descobri que eu não sabia matemática direito, várias coisas que meus colegas de escola particular estavam ali entendendo, raciocinando junto, e eu e meus colegas cotistas não sabíamos porque não tivemos essa vivência no ensino médio, em uma escola pública. E quando você, cotista, entra na universidade não tem nada que te ajude a, vamos dizer assim, igualar esse conhecimento. O que ajuda é o movimento dos alunos da universidade mesmo, se ajudando, estudando junto.

E tem também algo mais particular da região do Amazonas que é, por exemplo, as comunidades tradicionais. No Pará a gente tem bolsas de suporte para populações indígenas, ribeirinhos. Já é um benefício importante, de suporte, mas ainda assim existe uma trava enorme, porque só a cota e o auxílio não dão o preparo emocional e educacional para enfrentar o ambiente acadêmico. Essas pessoas não se veem plenamente ali, dentro daquele universo. Não se reconhecem socialmente e não se reconhecem intelectualmente. Deveria existir um suporte que olhasse para isso também. A lei de cotas funciona, performa bem, traz bons resultados, mas esses pontos são de extrema importância para que a gente de fato tenha uma universidade mais inclusiva.

Exemplo de alinhamento

Este conteúdo faz parte da série “Políticas afirmativas e trajetória profissional”, realizada em parceria com o Instituto Ibirapitanga, organização dedicada à defesa de liberdades e ao aprofundamento da democracia no Brasil, com foco em iniciativas pela equidade racial e sistemas alimentares.

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