“Tínhamos que continuar atuando, quando não tínhamos água para nós mesmos”, disse ao Nexo Marcos Calvete, químico no Dmae (Departamento Municipal de Águas e Esgoto), em Porto Alegre, sobre o trabalho nas primeiras semanas do desastre que atinge o Rio Grande do Sul. Trabalhou em locais sem energia elétrica, com a água no peito. Nunca havia feito tantas horas extras na vida — recorde que espera nunca mais quebrar.
“Beirou a dramaticidade em alguns momentos”, afirmou. Não foi incomum ver colegas de departamento passarem dias sem ver a família, segundo ele. Mesmo no tempo livre, não era possível esquecer os problemas sem precedentes no saneamento da cidade — que só se restabeleceu ainda em maio pela solidariedade de profissionais de fora.
Calvete é o quarto entrevistado da cobertura especial que o Nexo faz para dar espaço a profissionais que estão na linha de frente da tragédia no Rio Grande do Sul. A iniciativa traz entrevistas com representantes de diferentes categorias que contam quais são os desafios de trabalhar neste momento e como o desastre os afetou. Mostra também o que os motiva num cenário de tantas adversidades.
Como foi sua trajetória até o Dmae?
MARCOS CALVETE Entrei em 1991 no curso de química na faculdade. Em 1996 ou 1998, fiz um concurso para o Dmae e, em 2000, fui chamado. Ingressei como técnico em tratamento de água e esgoto. Em 2011, prestei concurso para químico — já era formado — e fui chamado em 2015. A experiência que tive como técnico em tratamento de água me ajudou muito. Trabalhava no controle de qualidade da água, no apoio à operação das estações de tratamento de água, e foi tranquilo assumir como químico dando apoio às estações de tratamento de esgoto. Toda parte, desde o licenciamento até o desempenho das estações — é basicamente para isso que dou suporte. Além de outros processos: gestão de contratos, fiscalização de contratos, essas coisas.
Quais são os desafios de estar na linha de frente neste momento, atuando na tragédia no Rio Grande do Sul?
MARCOS CALVETE Os desafios foram imensos, principalmente nos primeiros dias. Foi extremamente difícil. Tínhamos que continuar atendendo e restabelecendo o funcionamento de estruturas básicas, quando não conseguíamos água para nós mesmos. Tínhamos que restabelecer os bombeamentos, por exemplo. Eu levava uma equipe emprestada de colegas da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), mas não conseguíamos nos deslocar dentro da cidade, porque dependíamos dos bombeamentos para que a água abaixasse. Restabelecemos [a estrutura] em alguns lugares com a água no peito. Não tinha energia elétrica. Trabalhar nesses locais sem energia elétrica, com água no peito — e aí a gente precisava, às vezes, verificar o funcionamento de determinadas estruturas, mas também tinha que religar a energia para verificar o funcionamento das estruturas… Era complexo.
Colegas estavam com a casa invadida pela água, ou tinham familiares nessa situação, e tinham que continuar vindo trabalhar. Era uma situação em que a gente não podia parar. Nunca tinha feito tanta hora extra na minha vida. Foi um recorde que não espero nunca mais alcançar. Não conseguia buscar meu filho de 10 anos na escola. Não tinha com quem deixá-lo, porque ninguém da minha família queria ficar de braços cruzados. Lá pelas tantas, a gente precisava ver algum lugar para deixar meu filho. Eu chegava em casa às 22h, por exemplo, no domingo. Com quem ele iria ficar? Coisas básicas. Beirou a dramaticidade em alguns momentos.
Fazer deslocamentos pelas estradas. Tive que ir a Novo Hamburgo [cidade da região metropolitana de Porto Alegre] e vi a situação das pessoas morando nas estradas — porque as estradas geralmente são o local mais elevado, e as pessoas, no desespero, montam tendas. Havia carros estacionados por quilômetros nas estradas. Fiz em nove horas um trecho que geralmente faria em 40 minutos. Precisava deslocar motores para secar, e a única empresa que fazia aquele tipo de serviço e não estava debaixo d’água ficava em Novo Hamburgo. Só que os acessos para Novo Hamburgo de caminhão — se eu fosse de carro, não chegava —, indo na boleia do caminhão, passamos em alguns lugares com água no meio da roda. Nunca mais vou esquecer tudo que a gente viveu nesses 30 dias.
Não foi possível, então, separar trabalho e vida pessoal neste momento.
MARCOS CALVETE Não foi possível. Sacrifiquei minha vida pessoal. E não só eu, mas muitos colegas. Foi um período bem conturbado. Tive colegas que ficaram vários dias sem ver a família. Não cheguei a esse ponto, mas vários, sim. Pessoas isoladas. Colegas buscando familiares de barco e depois vindo trabalhar.
Deixei de dar apoio para familiares que tiveram que sair de casa, porque a casa havia alagado, mas eu não tinha o que fazer, porque não tinha como ir lá ajudar. Não tinha. A família da minha esposa mora em São Leopoldo, a cerca de 40 km daqui de Porto Alegre. Era impossível chegar lá. Nós nos falávamos pelo telefone. Saber que eles estavam bem e o prejuízo era só material era o único conforto possível.
Também não conseguia me desligar dos problemas no tempo livre. Às vezes eu batia o ponto e ia para casa, mas continuava no telefone, porque as pessoas tinham angústia para saber quando a água iria voltar. Como sabia o que estava acontecendo, me senti no dever de comunicar — porque, até engrenar aquela situação, a gente tinha que tentar acalmar todo mundo. Aconteceu de eu ter que gravar áudios para desfazer fake news, coisas absurdas. É difícil dissociar tudo. Estava tudo mesclado.
O que mais te surpreendeu nas últimas semanas? Há algo que o sr. nunca havia visto nos seus anos de trabalho?
MARCOS CALVETE Não me surpreendeu, mas acho que foi a solidariedade. Vi muita solidariedade. Esse suporte que a gente recebeu das outras companhias de saneamento foi marcante. Talvez só agora a gente estivesse conseguindo restabelecer a distribuição de água em Porto Alegre, se essas pessoas não tivessem vindo para cá. Estávamos com um efetivo bem reduzido no Dmae. Se essas pessoas não tivessem vindo, a gente teria tido uma dificuldade incrível. Tenho até medo de citar as companhias, porque posso esquecer alguma, mas trabalhei diretamente com a Sabesp, com a Copasa (Companhia de Saneamento de Minas Gerais) e com técnicos da Sanepar (Companhia de Saneamento do Paraná). Sei que também vieram pessoas da Casan (Companhia Catarinense de Águas e Saneamento) e da Iguá. Recebemos o suporte de várias companhias, que mandaram equipes completas — ou o que tinham para nos dar apoio —, e isso foi muito importante. Foi marcante ver quanto eles se entregaram para a superação de tudo que a gente tinha que resolver.
O que tem te motivado agora? Qual é a importância dos profissionais de saneamento neste momento?
MARCOS CALVETE Quem trabalha no saneamento sabe o quanto ele é essencial. Só quem trabalha sabe. Infelizmente, os gestores políticos, muitas vezes, não entendem como as coisas funcionam e tomam decisões equivocadas. Espero que Porto Alegre escolha o caminho do saneamento público. É uma luta muito grande que se vive aqui, que se tem todos os dias, e saber que isso está ameaçado, mesmo com toda essa luta… Espero que a cidade faça as escolhas certas e trilhe um caminho que permita que o saneamento continue público. [Existem] serviços que são monopólios naturais — por exemplo, a distribuição de energia elétrica —, e alguns deles foram adquirindo péssima qualidade. Apavora projetar que o saneamento possa chegar ao mesmo ponto. Vamos torcer para que a cidade faça as escolhas certas.