Profissões

‘Fotografar uma tragédia é mais do que ver. É preciso sentir’ 

Mariana Vick12 de junho de 2024(atualizado 13/06/2024 às 15h54)
Foto: Arquivo pessoal

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Daniel Marenco, fotógrafo, fala ao ‘Nexo’ sobre as mudanças no trabalho e no cotidiano durante o desastre no Rio Grande do Sul 
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Capturar as cenas de uma tragédia como a do Rio Grande do Sul exige mais do que ver, segundo Daniel Marenco, fotógrafo que já atuou em desastres como o terremoto no Nepal e o rompimento das barragens de Mariana (MG) e Brumadinho (MG). “É preciso sentir para se tentar dar conta de ser o mais fidedigno àquilo. E isso tem seu preço.” 

Marenco — que entrou na fotografia por acaso depois da formação em jornalismo — afirmou ao Nexo que, ao retratar o desastre em cidades gaúchas como Porto Alegre e São Leopoldo, onde vive sua família, sentiu “como se tudo houvesse se aglutinado numa exponencial assustadora de destruição”. Ele teve que conciliar o trabalho com a ajuda a parentes. Entre uma atividade e outra, tem compartilhado suas impressões nas redes sociais.

Marenco é o quinto entrevistado da cobertura especial que o Nexo faz para dar espaço a profissionais que estão na linha de frente da tragédia no Rio Grande do Sul. A iniciativa promove conversas com representantes de diferentes categorias que contam quais são os desafios de trabalhar neste momento e como o desastre os afetou. Mostra também o que os motiva num cenário de tantas adversidades.

O que te motivou a ser fotógrafo?

DANIEL MARENCO É um pouco uma surpresa responder a essa pergunta, fazendo o que faço hoje, porque percebo que a fotografia entrou pelo acaso na minha vida. Trabalhava em uma assessoria de imprensa de um sindicato com outros dois jornalistas, e um deles, o que fotografava, talvez por estar um pouco saturado de registrar reuniões e assembleias, me ensinou a operar uma antiga Yashica FXD. O que poderia talvez ser algo tedioso a ele virou um mundo de descobertas para mim. 

A realidade é essa, não houve tanta magia, não. Aprendida a operação básica, o que eu fiz foi, na medida em que conseguia ter dinheiro, fazer o máximo de cursos que podia relacionados à fotografia, de fotografia de natureza a incursões sobre determinado assunto. Houve um em especial que me despertou a vontade do caminho que queria tomar. Era uma oficina em Porto Alegre com o fotógrafo, documentarista e hoje meu amigo João Wainer. João nos mostrou alguns trabalhos dele à época, como o Marginálias e o ensaio sobre o Carandiru, e ali tive a certeza de que gostaria de ser um fotojornalista. Isso faz já algum tempinho (risos). 

Quais são os desafios de estar na linha de frente neste momento, cobrindo a tragédia no Rio Grande do Sul?

DANIEL MARENCO Acho que o desafio maior sempre é lidar com o emocional. Há muita carga envolvida, muito drama, muita dor, muita tristeza de quem foi vítima. É impossível não se deixar tocar. Ao menos para mim. Claro que há a dificuldade de locomoção, os perigos de uma terra arrasada, de materiais contaminados, mas sempre costumo ficar mais atento ao emocional. Acho que os outros perigos, com os anos de profissão, com tantas tragédias já pisadas — é como se houvesse ali um treinamento não oficial. Mas o emocional, não. Ele sempre afeta, e diria mais: com o passar do tempo, da idade, é como se estivesse cada vez mais à flor da pele. 

Além disso, nessa [tragédia] em específico, também tive dificuldade de conciliar tempos, porque a tragédia também afetou meus familiares e porque hoje trabalho na comunicação do clube pelo qual torço [o Internacional], com carga de trabalho de 8h/dia. Era, então, preciso conciliar a agenda do trabalho formal e da ajuda aos meus e, nas folgas disso, me inteirar sobre o que estava quente naquele dia para tentar contar a história da melhor maneira possível. 

Como o desastre afetou seu cotidiano? Tem sido possível separar trabalho e vida pessoal num momento como este? 

DANIEL MARENCO Acho que todos aqui no Rio Grande do Sul de alguma forma foram afetados. Alguns diretamente, outros de forma indireta. Não tive a casa alagada, por exemplo, mas meus familiares em São Leopoldo perderam tudo: casa, carro, saúde emocional. Aliás, essa última perda acho que é consenso para quem tem o mínimo de empatia com os que sofreram. Ainda ando processando muito dos sentimentos, mas alguns deles consegui expressar na rede social que mais uso, o Instagram (@danielmarenco). No início, não conseguia falar sobre o que estava sentindo até mesmo com amigos que me procuravam, preocupados. Era muita coisa para fazer e lidar ao mesmo tempo. Tinha as coisas práticas das ajudas, de pôr as coisas estragadas do meu dindo na rua, da limpeza da casa dele, da ajuda em um abrigo que abriu na esquina de onde moro, do trabalho na comunicação do Inter e dos freelas que estava aceitando e dando conta de fazer para os veículos com os quais de alguma forma já havia tido contato. Então, era muito trabalho misturado com muita carga emocional. Porque, diferentemente das outras tragédias, por mais que ficasse tocado, sofrido, essa estava acontecendo aqui, com os meus. Escrever na rede social foi como uma saída. Era eu e meu celular, em algum momento só do dia, só com meus pensamentos, as dores que tinha acumulado, podendo, naquele gesto, despejar um pouco do que tinha visto e ouvido. Fotografar uma tragédia dessas é muito mais que ver. É preciso sentir para se tentar dar conta de ser o mais fidedigno àquilo. E isso tem seu preço. 

O que mais te surpreendeu nas últimas semanas? Há algo que o sr. nunca havia visto nos seus anos de trabalho?

DANIEL MARENCO Teve um post que li logo no início da tragédia, nos primeiros dias. Não vou conseguir ser literal, mas era algo como alguém explicando para outras pessoas o que estava realmente acontecendo. O post falava algo como: “corredor humanitário sendo construído às pressas, milhares de pessoas desabrigadas e/ou em abrigos improvisados construídos às pressas, comida jogada de paraquedas — sabe guerra? Quando dizemos que vocês não têm noção, não é porque estamos querendo ofender ou qualquer coisa do tipo. É porque nem a gente mesmo ainda tem”. Era algo assim. Talvez mais bem escrito do que lembro agora. Mas esse foi o maior desafio — e digo mais, continua sendo. A dificuldade em conseguir dar a dimensão exata de tamanha catástrofe. Eu já tinha fotografado muitas tragédias neste país e até algumas fora dele: Alagoas, Teresópolis, Mariana, Brumadinho, terremoto no Nepal e mais algumas que não estou lembrando agora. E aqui é como se houvesse tudo se aglutinado num exponencial assustador de destruição. Foi — e está sendo — muita desgraceira. 

O que tem te motivado agora? Qual é a importância dos profissionais de fotografia neste momento?

DANIEL MARENCO Agora ando com um desafio enorme, que é a montagem de um documentário. Estou nesse processo. Me encontro entre uma captação e outra e já em paralelo iniciando a montagem. Isso é uma trabalheira que só. E o prazo que tenho também está muitíssimo apertado. Tenho dado um tempo na cobertura direta da catástrofe, até porque me falta tempo para finalizar esse documentário. Ele também trata do que aconteceu, mas sob outra ótica. 

Talvez, logo ali na frente, consiga encontrar brechas na minha rotina, como fiz, para voltar a contar o que está acontecendo aqui. Acredito que esse drama vai, infelizmente, se estender ainda por um longo período, com as pessoas atingidas tentando lutar para superar tudo. Não esquecê-las, continuar contando suas histórias, para que de alguma forma isso as ajude, acho que se fará necessário. É o que eu gostaria de fazer, e o que gostaria que outras pessoas — jornalistas, comunicadores e também fotógrafos — fizessem. Um drama abandonado é muito mais difícil de ser superado. Que o futuro de tantos gaúchos não seja o do esquecimento em tamanha dor. 

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