Coluna

Giovana Xavier

Que tal falar do que não sei?

06 de março de 2018

Compartilhe

Desejo que as histórias de bastidores a seguir contribuam para refletirmos que combater desigualdades raciais e de gênero tem a ver com a construção de projetos de democracia que dizem respeito a toda sociedade brasileira

Uma das minhas frases favoritas de Lima Barreto é “Ah! Ou a Literatura me mata ou me dá o que eu peço dela”. Pensando em tantas histórias de acadêmicos como Azoilda Loretto da Trindade, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Luiza Bairros, intelectuais negros que tiveram suas vidas interrompidas por contingências também relacionadas ao racismo acadêmico, é uma explosão de sentimentos lidar com o indiscutível fato de que aos 38 anos “eu consegui chegar” — por meio dos investimentos de familiares, de profissionais que acreditaram em mim e em meu próprio trabalho — ao lugar onde sempre desejei estar: no topo. Enquanto houver base, vislumbrar o topo como um lugar para chamar de nosso também representa uma ação afirmativa e não um rompante da “ neguinha atrevida ”, tão bem desenhada por Lélia Gonzalez.

A cada refeição preterida, noite virada, lazer abandonado, eu sempre lembro de Lima: “Ou a academia me mata ou me dá o que eu peço dela”. Infelizmente, falamos pouco do backstage da vida universitária porque, na lógica conservadora, publicizar a ciência e as formas pelas quais seus discursos se produzem é enfraquecer a eficácia. Em contraponto, desejo que as histórias de bastidores a seguir, articuladas neste lugar de uma colunista que assina “na primeira pessoa”, contribuam para refletirmos que combater desigualdades raciais e de gênero tem a ver com a construção de projetos de democracia que dizem respeito a toda a sociedade brasileira. Escrever, falar e pensar sobre tudo isso me dá muito medo. O medo típico de quem ocupa lugares não pensados para si própria, ainda que sejamos a maioria da população.

***

Nos dias anteriores ao Carnaval, recebi pelo menos 50 mensagens de mulheres de diferentes faixas etárias que ao conhecerem minha história tiverem reacendido o desejo de voltar a estudar. Elas estão procurando formas de “superarem seus medos”. Há três dias, em uma balada, uma universitária me pediu um abraço. Enquanto o fazíamos, ela me disse que agora tinha certeza que também “poderia ser doutora”. Em outra festa, uma estudante da UFRJ explicou que não tinha sido minha aluna, mas me conhecia e queria me contar que no fim do ano concluiria sua graduação em medicina. Há pouco mais de dois meses, esta jovem, chamada Larissa Jatobá, divulgou imagens da formatura, na qual pousava de beca ao lado de toda a família. Em vez de “medo”, seus parentes sentiram orgulho de cruzar as portas da universidade pública, transformando o diploma individual em patrimônio coletivo. Na semana passada, no intervalo da gravação de um programa de TV no qual debatíamos feminismos e literatura, uma das participantes me perguntou como era ser mãe. Durante o almoço, ela compartilhou dúvidas e “medos” relacionados a assumir esse papel…

Acostumada a cotidianamente responder questões espinhosas, essas cenas somadas à última pergunta, vinda de uma jovem com carreira promissora, me fez pensar, de forma mais sistematizada, o quanto poucas vezes na vida conversei com alguém sobre meus próprios medos. O fato é que naquele exato momento em que era indagada e em todas as outras situações — vividas “na primeira pessoa” — senti muito medo. Medo de responder a partir dos temores que sinto, que a cada dia aumentam de tamanho. Medo de decepcionar. Medo de me frustrar. Medo de não dar conta… Medo de… Medo de… Medo de…

Giovana Xavieré professora da Faculdade de Educação da UFRJ. Formada em história, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado, por UFRJ, UFF, Unicamp e New York University. É idealizadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Em 2017, organizou o catálogo “Intelectuais Negras Visíveis”, que elenca 181 profissionais mulheres negras de diversas áreas em todo o Brasil.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas