Coluna

Atila Roque

Reconstruir utopias a partir de um mundo em ruínas

28 de dezembro de 2021

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Como expressão de uma crise paradigmática e civilizacional, a pandemia abre espaço para uma nova era

O ano de 2021 vai ser lembrado como um dos mais trágicos e desesperadores já vividos pelo Brasil ao longo de sua história. O país esteve no epicentro de uma pandemia mundial de covid-19, agravada pela ação de um governo que demonstrou profundo desprezo pelo sofrimento incomensurável de milhões de brasileiros. As graves revelações trazidas à tona pela CPI da Covid , encerrada em outubro de 2021, apontaram para crimes de responsabilidade praticados por autoridades federais, gestores públicos e privados, que precisam ser acolhidos e devidamente julgados pelas instâncias judiciais competentes. As mais de 600 mil mortes decorrentes da covid no Brasil não podem ficar sem resposta.

Como se isso não fosse mal suficiente, assistimos a destruição ativa de políticas sociais e ambientais consagradas ao longo de vários governos desde o início do processo de democratização, em 1985; o enfraquecimento de políticas e mecanismos de defesa dos direitos humanos, o agravamento da crise econômica e do desemprego, e o desmonte das áreas de educação, tecnologia e ciência. A fome voltou a assombrar o cotidiano de cerca de 20 milhões de brasileiros. Uma catástrofe completa. A reconstrução do país vai precisar de um olhar voltado para o futuro e de uma disposição para experimentar novos caminhos e novas perspectivas.

Em consonância com o que ocorre em outras paragens do mundo, vamos precisar mobilizar todas as forças criativas para a reconfiguração do que se convencionou chamar de progresso e desenvolvimento ao longo dos últimos séculos. O que nos trouxe até aqui claramente fracassou. O sociólogo português Boaventura Santos fala da necessidade de abraçar as “epistemologias do sul”, decoloniais, como um dos caminhos para a superação da crise civilizacional na qual estamos mergulhados. Essa perspectiva dialoga com o que a filósofa e intelectual negra Sueli Carneiro já chamou de “epistemicídio”, o apagamento das trajetórias e conhecimentos das populações negras e indígenas, as quais se reserva apenas o lugar da subalternidade. O futuro requer resgates históricos de conhecimentos e projetos de mundo suprimidos pela colonização e ocidentalização do mundo a partir dos séculos 15 e 16, combinados com a capacidade de resistência e mobilização demonstrada por populações subalternalizadas do presente, com um olhar capaz de imaginar e sonhar com outros mundos possíveis.

Em consonância com o que ocorre em outras paragens do mundo, vamos precisar mobilizar todas as forças criativas para a reconfiguração do que se convencionou chamar de progresso e desenvolvimento

Houve um momento na história recente, nos estertores do século 20, em que o mundo parecia acordar para a necessidade de novos caminhos. O fim da guerra fria, a queda do muro de Berlim, as expectativas otimistas criadas pela globalização, abriu uma janela de esperança para um mundo mais inclusivo e sustentável. Governos, instituições multilaterais e organizações da sociedade civil — em maior ou menor medida — pareciam dispostos a mergulhar na busca de modelos de desenvolvimento menos excludentes e mais igualitários. A década de 1990 ficou conhecida como a década das conferências mundiais da ONU — o chamado “ciclo social de conferências” da ONU —, durante o qual assistimos o que talvez tenha sido o mais amplo esforço coletivo de construção de um futuro comum, com recomendações e metas claras para governos, organizações da sociedade civil e setor privado. Uma década aberta simbolicamente com a conferência do Rio, em 1992, sobre o tema do meio ambiente e do desenvolvimento, e encerrada com a conferência de Durban contra o racismo e outras formas de intolerância.

Na esteira do protagonismo crescente de uma nascente sociedade civil global, por iniciativa de organizações e movimentos da sociedade civil brasileira, tivemos o lançamento da primeira edição do Fórum Social Mundial , em janeiro de 2001, em Porto Alegre, como um espaço de pensamento, aprendizagem e trocas a partir das experiências históricas do sul do mundo. Em contraposição ao Fórum Econômico de Davos, o Fórum Social Mundial afirmava que “um outro mundo é possível”, um mundo capaz de conter muitos mundos a partir da força de experiências e lutas locais e globais, trazendo diversidade de olhares contra hegemônicos à perspectiva neoliberal, que apresentava o modelo de capitalismo global hegemonizado pelos países desenvolvidos do Norte como o ápice civilizacional da humanidade. Em poucos anos, foi capaz de mobilizar mais de 100 mil pessoas para as suas edições no Brasil e, a partir de 2004, levar outras centenas de milhares para eventos realizados em outros países do Sul global, como a Índia e a Nigéria.

Essa onda de mudanças na direção de um mundo mais plural sofreu reveses a partir dos atentados terroristas nos Estados Unidos, em setembro de 2001, que inauguram a era da chamada “guerra global contra o terror”, que levou a um esvaziamento progressivo dos organismos multilaterais, em particular da ONU, assim como a uma crescente militarização das relações internacionais, ao estreitamento do espaço democrático em diversas partes do mundo e ao fortalecimento do chamado estado de vigilância, a partir da expansão dos mecanismos de controle e monitoramento digitais.

O debate climático – com o aumento da consciência global e a mobilização nos últimos anos das juventudes e das mulheres, inclusive indígenas e negras – tem o potencial de injetar uma nova vitalidade nos espaços de coordenação de políticas e acordos globais. A crise da covid proporcionou uma ampliação do debate sobre as relações da humanidade com a natureza, abrindo espaço para perspectivas focadas na sustentabilidade e apontando para outros paradigmas de desenvolvimento. A vitalidade trazida pela presença de novos atores sociais, em particular as populações jovens das periferias urbanas do mundo, abriu caminho para a intersecção de pautas como as das desigualdades, do racismo, da discriminação e da violência contra as mulheres, de mudanças (e justiça) climáticas, entre outras. A COP26, realizada em setembro, foi um momento particularmente esperançoso na incorporação de uma maior diversidade de atores sociais e perspectivas territoriais aos ambientes quase sempre modorrentos dos encontros oficiais. As vozes das juventudes indígenas e urbanas do mundo, em particular das mulheres, se fizeram ouvir. O impacto vai depender da capacidade dos “donos do mundo” escutarem o recado dado.

No Brasil, a nossa democracia se mostrou profundamente vulnerável a projetos autoritários, racistas e genocidas. A crise não é apenas de um governo, nem começou agora, mas certamente chegou a um grau de estresse e esgarçamento social que poucos de nós fomos capazes de imaginar, apesar dos muitos sinais. As instituições não estão apenas vivendo uma crise profunda de representatividade, legitimidade e liderança, como também se mostraram facilmente capturáveis por líderes autoritários, desde que estejam dispostos a satisfazer os interesses clientelistas de uma parte importante da classe política, capaz de formar maiorias parlamentares sem compromissos programáticos; além da costumeira voracidade predatória das elites econômicas e privadas, habituadas a colocar o Estado a serviço dos seus ganhos.

Tudo isso em meio a uma crescente violência social, agravada por um Estado cada vez mais associado a forças informais e criminosas, fortemente organizadas em redes locais, nacionais e internacionais. O assassinato de lideranças políticas, ativistas socioambientais e defensores de direitos humanos colocam o Brasil como um dos países mais perigosos do mundo para o exercício da participação política.

A difícil tarefa que temos pela frente passa por uma necessária reforma institucional que revigore e fortaleça os mecanismos de monitoramento e controle dos governantes — em certa medida uma repactuação política e constitucional, nos moldes da que fizemos durante a transição para a democracia —, e a abertura definitiva para a participação efetiva de novos atores nos espaços de representação e poder, onde se decide o futuro do Brasil.

A pandemia, como expressão de uma crise paradigmática e civilizacional, abre espaço para uma nova era, cujo resultado vai depender em muito das alianças possíveis entre uma diversidade de atores sociais, situados em diferentes lugares de privilégio ou exclusão, capazes de levantar o país a partir de suas muitas camadas de destruição para que possamos, novamente, sonhar com outros futuros possíveis. Nada é certo, o futuro está em disputa juntamente com o passado e o presente, vai ser preciso coragem e vontade para construir a utopia, resgatar o belo e a força vital das ruínas que herdamos.

Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

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