Coluna

Laura Carvalho

Recuperação em K: o que é ruim para os EUA é péssimo para o Brasil

01 de outubro de 2020

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A crise da pandemia se abateu sobre um país que ainda se recuperava de uma recessão que prejudicou muito mais os brasileiros pobres

No primeiro debate entre os candidatos à presidência dos EUA, na terça-feira (29), o democrata Joe Biden argumentou que a recuperação econômica será em formato de um “K” e não de um “V”. A ideia é relativamente simples: os mais ricos estariam recuperando sua renda de forma rápida (parte de cima da letra “K”), enquanto os mais pobres continuariam perdendo renda (parte de baixo). Na recuperação em formato de “V”, vendida por Donald Trump, todos retornariam rapidamente à renda que tinham antes da crise.

O que pode dar razão a Biden na ideia de que a recuperação após a catástrofe da pandemia terá o formato de um “K”? De fato a perda de renda e empregos na crise em que estamos todos mergulhados não se deu de forma proporcional para todos os tipos de ocupação: trabalhadores mais escolarizados preservaram relativamente mais seus empregos e sua renda. No Brasil, segundo dados da Pnad-Covid, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a renda do trabalho de indivíduos com no máximo o diploma de ensino médio já caiu 18,5%, ante uma queda de 13% para trabalhadores com ensino superior ou mais. Os números referentes à renda per capita do trabalho habitualmente recebida antes da pandemia e no mês de junho de 2020 sugerem que a desigualdade subiu cerca de 5% durante a crise quando medida pelo índice de Gini.

A dinâmica setorial do número de pessoas ocupadas pode ajudar a explicar o fenômeno. De acordo com a Pnad ( Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), as maiores perdas de emprego na pandemia se deram nos setores de alojamento e alimentação, serviços domésticos, construção e outros serviços (queda de 26,1%; 24,7%; 19,4% e 17,5%, respectivamente, entre abril e junho de 2020 em relação ao mesmo trimestre de 2019). O problema é que esses setores, mais afetados pela crise, são justamente mais intensivos em uma mão de obra relativamente menos escolarizada.

Nos EUA não está sendo diferente. Para além das perdas maiores de emprego e renda na base da pirâmide, o recorte racial mostra que o desemprego entre norte-americanos brancos é de 7,3%, enquanto o desemprego entre negros ainda é de 13%. Além disso, a recuperação do mercado de ações e outros ativos financeiros está sendo muito mais rápida do que a recuperação do mercado de trabalho, o que contribui para elevar a renda do topo da distribuição, formada majoritariamente por rendimentos do capital.

Nada disso soa como uma grande novidade para quem já vivia uma recuperação desigualitária antes mesmo da pandemia chegar. Ao contrário dos EUA, que vinham de uma longa expansão econômica desde o fim da crise de 2008 a 2009, que culminou em baixíssimo desemprego e ganho de renda na base da pirâmide,o pouco que havia de recuperação no mercado de trabalho brasileiro desde a crise de 2015 a 2016 beneficiava apenas os trabalhadores melhor posicionados – com carteira assinada e empregados nos setores de educação, saúde, administração pública e serviços financeiros.

Laura Carvalhoé doutora em economia pela New School for Social Research, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo e autora de “Valsa brasileira: Do boom ao caos econômico” (Todavia). Escreve quinzenalmente às sextas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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