Reportagem

Primeira infância na rua: as vidas ignoradas pela estatística

Gabriela Teixeira e Letícia Messias

20 de janeiro de 2022(atualizado 28/12/2023 às 22h18)

Levantamentos sobre população em situação de rua no país ainda são precários, e não trazem dados sobre crianças pequenas, grupo mais vulnerável de uma crise econômica que não cessa

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Este conteúdo foi produzido pelos autores como trabalho final do Lab Nexo de Jornalismo Digital, que teve como tema “Primeira Infância e Desigualdades” e foi realizado no segundo semestre de 2021. O programa é uma iniciativa do Nexo Jornal em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal e apoio da Porticus América Latina e do Insper.

23 de novembro de 2021, terça-feira à noite. Uma fila de pessoas em situação de rua se estendeu pela praça Saens Peña, na Tijuca, Zona Norte carioca. O clima era de descontração, à espera do bolo que seria oferecido por uma entidade do terceiro setor que completava seu primeiro ano de atuação no bairro.

Havia mulheres e crianças pequenas na fila, e nós nos aproximamos para tentar conversar. A ideia era entrevistar mães para esta reportagem, a fim de que elas falassem sobre as dificuldades de criar os filhos estando em situação de rua. Mas não tivemos sucesso. Elas davam respostas evasivas, sem muita disposição.

“Com essa abordagem, vocês não vão conseguir que alguém fale”, disse um homem ao se aproximar. Era o catador de material reciclável Eduardo de Moura, de 42 anos, que vive nas ruas desde os 6 anos. Ele explicou o temor das mulheres: perder a guarda dos filhos.

Filho de pai alcoólatra, Eduardo traz consigo memórias da violência doméstica, motivo pelo qual, logo cedo, encontrou na rua um ambiente mais seguro que o próprio lar. Hoje, além do serviço de reciclagem, ele é faixa roxa de muay thai, graças aos projetos sociais de que participou na infância, e busca retribuir o que aprendeu como voluntário em organizações que ensinam esportes a crianças carentes.

“Aos 17 anos eu fui pai. Tenho cinco filhos, mas os quatro mais velhos foram tirados de mim.” Na ocasião da separação, as crianças haviam sido deixadas temporariamente em um abrigo enquanto Eduardo e a esposa trabalhavam coletando papelão.

“Qualquer madame deixa seus filhos com a babá. Nós deixamos nossos filhos com uma moça que também morava lá. Quando chegamos, no outro dia, eles tinham sido levados para outro abrigo. Não nos falaram onde estavam e nos expulsaram do lugar, porque era um abrigo de família”, conta.

“Levaram eles e falaram que eu não tinha condição de criá-los, a juíza falou que não sou mais pai deles. Tiraram todos os meus filhos de uma vez e eu me senti na merda”, afirmou Moura, que hoje é pai solo da filha caçula.

O medo da destituição

Segundo o artigo 101 do ECA ( Estatuto da Criança e do Adolescente ), o afastamento de uma criança do convívio familiar é uma medida extrema, que deve ser empregada somente por meio de um procedimento judicial em que os pais ou responsáveis tenham direito de defesa.

“Pobreza não é motivo para destituição familiar. Uma família em situação de vulnerabilidade social não pode ser punida com a perda do poder familiar, como se não tivesse competência para cuidar de seus filhos”, diz Isaías Bezerra de Araújo, educador social e conselheiro tutelar.

“Mas, ainda que não haja previsão legal para isso, existe uma previsão cultural perversa que faz com que as pessoas acreditem que pobreza é motivo suficiente para que a criança seja colocada em situação de abandono ou em programas de adoção.”

Ele explica que, desde que por vontade própria e com a devida orientação, uma família pode entregar a criança para adoção. O ECA prevê também o apadrinhamento, programa que permite a formação de vínculos afetivos e/ou financeiros duradouros com pessoas de fora da família, para que colaborem com o pleno desenvolvimento da criança ou adolescente.

Ainda assim, mulheres pobres são alvo de situações de assédio moral e violência psicológica. Bezerra conta que na zona sul do Rio de Janeiro, onde atua, muitas gestantes em situação de rua procuram maternidades específicas no momento de dar à luz, pois temem que seus filhos sejam levados para abrigos após o nascimento.

Uma vez que o Conselho Tutelar, que é responsável por fiscalizar e assegurar que os direitos das crianças e adolescentes não sejam violados ou ameaçados, identifique este tipo de retirada arbitrária, uma denúncia deve ser feita ao Ministério Público ou ao Conselho Nacional de Justiça.

Já para as famílias envolvidas, a orientação do conselheiro é de que procurem imediatamente a Defensoria Pública: “A Defensoria tem acesso aos casos de adoção em segredo de Justiça, podendo auxiliar também os pais que, em qualquer momento do processo de adoção, desistirem dele e desejarem suspendê-lo”, diz Bezerra.

A invisibilidade na crise

As ruas das grandes metrópoles costumam expor a desigualdade do Brasil. Mas a situação vem se agravando desde a crise econômica iniciada em 2014. Após uma tentativa de retomada que nunca se concretizou, a pandemia de covid-19 iniciada em 2020 trouxe novos impactos para famílias de baixa renda. A crise levou a uma mudança no perfil das pessoas em situação de rua. Antes eram majoritariamente homens sozinhos. Agora há mais famílias inteiras , segundo grupos que atuam junto a esse público.

Um estudo realizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) indicou que, em março de 2020, mês em que a pandemia foi declarada pela OMS (Organização Mundial da Saúde), havia aproximadamente 222 mil pessoas nas ruas do Brasil, concentradas sobretudo nos grandes centros urbanos das regiões Sudeste, Nordeste e Sul. O Cadastro Único e o Censo Suas (Sistema Único de Assistência Social) estimavam um crescimento de 140% dessa população entre os anos de 2012 e 2020 e alertavam para a possibilidade de aumento desse número em consequência dos impactos da crise sanitária.

“Há uma discussão e uma militância imensa para que o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) inclua no Censo Demográfico as pessoas em situação de rua. Isso vem há anos sendo cogitado, mas não entra. O IBGE diz que não tem a metodologia adequada, mas quem faz o Censo tem que criar as metodologias. Temos uma falta de dados no sentido de olhar o Brasil como um todo”, disse ao Nexo Irene Rizzini, professora do Departamento de Serviço Social da PUC-Rio ( Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro). Realizado de dez em dez anos, o Censo Demográfico de 2020 foi adiado por causa da pandemia. O levantamento deve ser feito agora em 2022, mas não há planos para mensurar o tamanho da população de rua brasileira.

No trimestre encerrado em outubro de 2021, a taxa de desemprego no Brasil era de 12,1%, chegando a 12,9 milhões de pessoas, segundo o IBGE. A pobreza atingia 27,7 milhões em abril de 2021, de acordo com levantamento realizado pela FGV (Fundação Getulio Vargas). No contexto da pandemia, o auxílio emergencial de R$ 600 trouxe um alívio em meados de 2020. Mas posteriormente o valor do benefício foi reduzido, assim como o número de pessoas que recebem a ajuda oficial, rebatizada agora de Auxílio Brasil .

O novo programa do presidente Jair Bolsonaro substituiu não apenas o auxílio emergencial, mas também o Bolsa Família. A atuação do governo recebe críticas na área social. “Com o desmonte de políticas públicas, o Brasil volta para o mapa da fome. Muitos perderam o benefício do Bolsa Família e da habitação, que, muitas vezes, é extremamente precária. Então, é muito importante olhar para a precarização das políticas de proteção social para as crianças mas, principalmente, para os cuidadores”, afirmou Rizzini, da PUC-Rio.

Expostas desde cedo à mendicância, crianças em situação de rua acabam por se tornar mão de obra infantil, seja por acompanhar os familiares nos semáforos ou em atividades como o recolhimento de recicláveis. “Tem muita mãe que usa os filhos para ganhar dinheiro. Mas também tem muita gente que vai pra rua porque precisa”, disse Denise da Silva, de 26 anos, que já esteve em situação de rua e vive no Rio. Mãe de quatro filhos, ela está há quatro meses morando em uma casa alugada com ajuda de projetos sociais.

Silva falou sobre como é criar os filhos na rua. “Passamos aperto. A rotina era sempre ficar trocando de lugar, que nem cigano. Nós acordávamos e fazíamos reciclagem, catando as coisas. E os filhos iam com a gente. Quando chovia a gente montava cabana com uma lona e eles ficavam tranquilos, mas o menor, quando tinha 1 ano, gostava mais de ver as pessoas na rua. A maior dificuldade com os filhos na rua era o banho. A gente arrumava galões de água e dava banho neles”. Silva lembrou ainda que, quando os filhos eram pequenos, dependia da doação de fraldas para realizar a higiene das crianças.

A marginalização histórica

Por definição do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), caracteriza-se como criança em situação de rua toda pessoa ainda em desenvolvimento que, diante da vulnerabilidade, do rompimento de vínculos familiares e comunitários e da violação de direitos, utiliza “logradouros públicos, áreas degradadas como espaço de moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente”. Assim, além das crianças que estão acompanhadas dos pais e sem moradia, também se encaixam nesse conceito aquelas que podem retornar ao lar, que frequentam escolas e que vão para as ruas no turno oposto, inclusive sozinhas.

“É impossível indicar um único fator que faça com que essas crianças estejam em situação de rua, porque elas também se dividem em subgrupos. O que existe é um fator principal que envolve todas essas situações: a pobreza”, disse ao Nexo Fábio Santos de Andrade, educador social e professor da Universidade Federal de Rondônia. “A pobreza extrema faz com que a rua se torne melhor do que a casa, que se torne o espaço de luta pela sobrevivência.”

De acordo com o professor, o que existe atualmente no Brasil é resultado de uma história de violação de direitos, principalmente com relação às populações mais pobres. Segundo ele, um dos pontos centrais a ser considerado é a Lei Áurea, cuja promulgação aboliu a escravidão mas não foi acompanhada por políticas públicas de assistência e cuidado à população negra. “Tivemos pessoas que, do dia para a noite, deixaram de ser escravizadas, mas continuaram sem direitos. Sem trabalho, essas pessoas passaram a estar nas ruas”, destacou.

A falta de saneamento básico, higiene, alimentação e o abandono são algumas questões comuns para quem vive nas ruas. Outra questão para se preocupar é a violência. Em 1993, pouco antes da meia-noite, dois carros pararam em frente à Igreja da Candelária, no Centro do Rio, e homens posteriormente identificados como milicianos atiraram contra dezenas de pessoas, em grande maioria adolescentes, que dormiam na região. O caso, que ficou conhecido como a chacina da Candelária, deixou oito mortos e vários feridos.

A responsabilidade coletiva

Em São Paulo, o número de pessoas que vivem nas ruas ou em centros de acolhimento aumentou mais de 50% em quatro anos, conforme dados do Censo da População em Situação de Rua do município, divulgado em fevereiro de 2020. A pesquisa levou em consideração informações coletadas em 2019, quando identificou 24.344 indivíduos em vulnerabilidade na cidade. Destes, 664 eram crianças ou adolescentes.

Os dados não detalham quantas estavam na primeira infância, de 0 a 6 anos. Lançado em 2020, o relatório do projeto Conhecer para Cuidar, uma das publicações recentes mais completas quanto se trata de dados quantitativos e qualitativos sobre crianças e adolescentes em situação de rua, menciona crianças apenas a partir dos 7 anos de idade.

Rizzini, que coordenou a elaboração do documento, diz que a delimitação se deu pela necessidade de coletar relatos diretamente com as crianças. “Não dava pra entrevistar as crianças de 0 a 6, ao menos não na rua. Até fazemos algumas pesquisas que envolvem a primeira infância, mas são trabalhos cujo foco está mais em jovens grávidas e mães.”

A ausência nos levantamentos – mesmo em São Paulo, cidade que se dedica a levantar dados sobre pessoas em situação de rua periodicamente – tem implicações quando se trata da criação de políticas públicas específicas para esta faixa etária. “Se eu não tenho números, vou pensar em políticas para quem?”, questionou Andrade. “Sim, é preciso pensar nas famílias, pois não existe pensar nas crianças sem considerar seus responsáveis legais. Mas também não dá para atender as pessoas de forma generalizada. Uma mesma política para adultos e crianças é falha, não funciona.”

Apesar de iniciativas locais, é impossível se ter uma real dimensão nacional do tamanho e das especificidades relativas a quantas crianças de 0 a 6 anos estão em situação de rua. “Não se trata apenas de contar pessoas, o censo parte de uma criação de vínculo. Uma contagem feita por quem não estabelece um vínculo de confiança não vai fazer com que as pessoas se abram. Ao contrário, elas vão criar um mundo imaginário de autodefesa. E é este mundo que estará posto no censo”, afirmou Andrade.

Entre as políticas vigentes, Andrade apontou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil e a criação dos Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e Centros Pop. O primeiro, disse ele, demandou uma grande luta no sentido de também abarcar as crianças em situação de rua, uma vez que não havia inicialmente o entendimento de que as atividades exercidas por essas crianças também eram trabalho. Já os outros dois, além de atuarem de modo generalista, em alguns momentos se tornaram políticas de limpeza dos centros urbanos, e não de assistência, na opinião do professor.

“Vemos muitas políticas que montam uma equipe para convencer as crianças a saírem das ruas. A transição da rua para casa não é simples e não ocorre apenas por um convite. Ela deve ser trabalhada de modo que a criança, ao sair da rua, encontre um local de acolhida positivo, para que não sinta vontade de voltar para a rua”, disse o professor Universidade Federal de Rondônia.

Segundo o educador social Ranulfo Cavalari Neto, para além das instituições governamentais, a sociedade como um todo precisa estar envolvida no tema. “O ECA diz que a responsabilidade pelas crianças é da família, do Estado e da sociedade. É dever de cada um de nós preservar os direitos de uma criança, para que ela tenha acesso à segurança, educação, lazer, cultura. Retirar das ruas é a forma mais fácil e não resolve problema nenhum. A prioridade é o acolhimento familiar. Depois, o acolhimento institucional. Mas o que vemos é o inverso.”

Na pandemia, por exemplo, a atuação da sociedade civil foi essencial para fornecer assistência à população em situação de rua, lembrou Andrade. “Essas pessoas ficaram entregues a quem tinha coragem, poder e força para ir à rua atendê-las. Então, o que vimos foi uma participação muito maior de grupos civis e Igrejas. Já os governos não pensaram em políticas públicas de qualidade. Isso mostra um deslocamento da responsabilidade, que é do poder público e passa a ser da sociedade.”

Neste momento de acentuação de uma vulnerabilidade que já era crítica, tanto Andrade quanto Neto veem na articulação em conjunto um caminho para transformações de real impacto. “A principal iniciativa é fazer com que a obrigatoriedade de políticas públicas direcionadas às crianças seja pensada e executada. Mas não executada de modo imediatista, violento ou como forma de limpeza do espaço urbano. Deve ser pensada e discutida principalmente com quem atua na área”, afirmou Andrade.

Neto complementou: “Dizemos que essas crianças e adolescentes têm um comportamento guerrilheiro na rua, de existir sobrevivendo. A sociedade pode olhar para isso com indignação, cobrando mais investimento do setor público. E é preciso construir isso juntos e não de cima para baixo, sem escutar o que as crianças querem”, concluiu.

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