Bets: quando procurar ajuda e o que fazer para não se perder
Isadora Rupp
25 de setembro de 2024(atualizado 25/09/2024 às 22h00)Descontrole sobre apostas esportivas e jogos de azar já é considerado problema econômico e de saúde pública no Brasil. Veja recomendações para lidar com os riscos da atividade
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Ilustração mostra resultados negativos de bets
As apostas esportivas online e outras plataformas de jogos de azar – popularmente conhecidas como bets – vêm gerando impactos econômicos, sociais e legais no Brasil.
R$ 23,9 bilhões
é o valor que os brasileiros perderam com apostas entre junho de 2023 e junho de 2024, segundo estudo de economistas do banco Itaú
Legalizadas em 2018 no Brasil, as bets correram soltas, sem regras, fiscalização ou pagamento de impostos até dezembro de 2023, quando a atividade começou a ser regulamentada pelo governo federal. A maioria das regras criadas pelo Ministério da Fazenda começa a valer em janeiro de 2025.
O fenômeno preocupa o governo, o Banco Central e psicólogos, que já falam que o vício em bets é um problema que vai impactar o Sistema Único de Saúde no curto prazo.
Neste texto, o Nexo mostra os sinais de quando as apostas deixam de ser entretenimento para virar vício e como procurar ajuda ao detectar descontrole.
Jogos de azar envolvem empenhar um valor em dinheiro para um eventual retorno no futuro – mas sem quaisquer garantias. Portanto, o resultado não depende das ações de quem apostou, mas de pura sorte. No caso das apostas esportivas, por mais que o apostador leve em conta a capacidade do time antes de palpitar valendo dinheiro, não há exatamente como cravar se o resultado será de fato o esperado.
De acordo com o Pro-Amiti (Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo), o jogo é uma atividade estimulante do Sistema Nervoso Central. A prática recorrente se assemelha aos relatos de tolerância ou abstinência descritos nas dependências em geral, como álcool e drogas ilícitas.
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“A compulsão por jogos é muito semelhante ao álcool e outras drogas. É um comportamento que acaba prevalecendo, e que a pessoa encobre apesar dos problemas que possa ter. E isso não a impede de continuar apostando. É a mesma coisa de alcoólatra, que continua apesar dos prejuízos. O perfil do jogo patológico preenche os mesmos critérios das dependências químicas”, disse ao Nexo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pós-doutor em dependência química pela Universidade de Londres.
Site de apostas esportivas
O prazer que o apostador tem de projetar as chances de ganhar dinheiro faz com que a pessoa retroalimente o processo, afirmou ao Nexo o psicólogo Maycon Torres, professor do Departamento de Psicologia da UFF (Universidade Federal Fluminense). “Por isso, o sofrimento é percebido após muitos prejuízos econômicos e nos relacionamentos”.
A perda de controle sobre a atividade se revela no tempo e no dinheiro gastos com ela — o excesso indica que a aposta deixou de ser entretenimento para se tornar um vício. E esse processo é progressivo, disse Torres.
“Não é de uma hora para outra, a pessoa tende a ter um aumento de tempo e de gastos e começa a perder o controle do que estava disposta inicialmente” , afirmou o psicólogo.
Endividamento, brigas com a família, falhas no desempenho acadêmico e desemprego são as consequências negativas mais relatadas por pacientes que procuram tratamento. Em casos mais extremos, a pessoa pode se envolver em atividades ilegais e tentar suicídio.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), da Associação Americana de Psiquiatria, define os critérios para diagnosticar se uma pessoa tem transtorno do jogo.
Se ela se encaixa em dois ou mais dos sintomas abaixo, ela já tem uma dependência, que pode ser leve, moderada ou grave:
Ao contrário de outros tipos de jogos de azar, que exigem certa espera ou deslocamento até um estabelecimento, as bets estão disponíveis a qualquer momento no celular, e essa facilidade é um dos elementos mais perigosos para desenvolver dependência.
“O grande acesso inesperado, o bombardeamento de propagandas que fala dos ganhos e obviamente não fala das perdas, cria um ambiente propício, porque a pessoa fica ali em cima, vai ganhando ou perdendo muito rapidamente. O reforço positivo ou negativo é imediato. Por isso, estamos vendo esse crescimento de pessoas dependentes em tão pouco tempo”
Ronaldo Laranjeira
Psiquiatra e professor da Unifesp
Segundo Maycon Torres, o celular por si só já estimula a impulsividade: seja no uso das redes sociais, no consumo ou nas bets. E, embora a maioria das pessoas use o celular o dia todo, mudanças no padrão desse uso podem ser um alerta às famílias ou amigos, como o de nunca ficar sem o aparelho, conferir as notificações excessivamente e esconder o que está vendo no telefone.
Padrão de pensamento persistente no jogo, ou organizar o dia pensando no momento de acessar os apps são outros alertas, de acordo com o psicólogo.
No Pro-Amiti, a busca pelo tratamento de dependência em jogos cresceu 178%: em 2022, eram 58 inscritos no programa. Em 2023, o número saltou para 160. Adultos jovens são o público majoritário, o que condiz com o perfil dos apostadores mapeados em pesquisas como um estudo da consultoria Strategy & Brasil – PwC Strategy. O relatório mostra que a maioria dos apostadores no Brasil é homem (73%), mora na região Sudeste (48%) e é da classe C (53%).
O mercado de apostas esportivas foi legalizado em 2018 no Brasil, mas só começou a ser regulamentado em 2023, quando Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a lei das bets com diretrizes para a operação de sites de apostas esportivas.
Até então, as companhias atuavam sem regras e sem o pagamento de impostos. Faz parte do modo de operação das bets a publicidade agressiva nas redes sociais, com propagandas de astros esportivos e de influenciadores. Há relatos de pessoas que compraram celulares novos que vieram com apps de bets pré-instalados.
A regulamentação das bets está sob os cuidados do Ministério da Fazenda, que vai finalizar o trabalho até o final de setembro de 2024. A partir de outubro, empresas de apostas que ainda não solicitaram autorização para operar não vão mais poder funcionar no Brasil.
R$ 30 milhões
valor da outorga que as empresas precisam pagar até dezembro de 2024 para seguir funcionando no país. A partir de janeiro de 2025, devem atender todas as normas para combate à fraude, lavagem de dinheiro e publicidade abusiva
Outra regra que precisará ser cumprida pelas plataformas é a “trava antivício” em seus sites e apps de apostas, para detectar jogadores dependentes e compulsivos e bloquear contas ao detectar comportamentos nocivos.
Em São Paulo, uma mulher de 30 anos trava na Justiça uma briga com a empresa Blaze: ela pede que a plataforma exclua sua conta para sempre. Em tratamento contra o vício, ela acaba reinstalando o app em momentos de recaída e diz receber e-mails com ofertas de bônus para que volte a jogar.
Vários países do mundo regularam as bets, como o Reino Unido, Espanha e Argentina – o que gerou uma arrecadação bilionária aos cofres públicos. No Reino Unido, por exemplo, as bets têm alíquota de 15% sobre a receita bruta das plataformas, e a maior parte da arrecadação vai para o NHS, sistema de saúde britânico.
Segundo a consultoria Strategy & Brasil – PwC Strategy, as apostas esportivas têm uma participação cada vez mais relevante no orçamento das famílias brasileiras, que deixam de lado gastos pessoais, com cultura, entretenimento e até com alimentos e bebidas para direcionar às bets.
O Banco Central já classifica o crescimento desse mercado no país como preocupante, e alerta para o risco de inadimplência das famílias e impacto no juro do crédito pessoal. Entidades do varejo brasileiro reclamam do impacto das bets nas suas atividades e pedem regras mais rígidas.
Uma das solicitações é a proibição imediata do uso de cartão de crédito para atividade, o que deve ser adotado por ao menos parte das empresas a partir de outubro. Segundo a regulamentação do Ministério da Fazenda, o cartão de crédito não vai mais poder ser usado a partir de janeiro de 2025.
Imagem de parte de um cartão de crédito
Embora apostar possa ser divertido, bets não são um investimento e nem um caminho para construir patrimônio, alerta a Febraban (Federação Brasileira dos Bancos). Apostas envolvem sorte. Dinheiro aplicado envolve planejamento e retorno ao longo do tempo, de acordo com o objetivo traçado.
A entidade exemplifica: se R$120 mensais destinados para bets forem aplicados no Tesouro Selic 2027, a pessoa vai acumular, em 29 meses, mais de R$ 4.000.
Para o apostador que não está no patamar de dependência, a Febraban indica alguns cuidados, para não comprometer o orçamento familiar:
Tratamentos contra dependência e adição, inclusive de jogos online, são realizados pelo SUS (Sistema Único de Saúde), via unidades básicas de saúde, e pelos Caps (Centro de Atenção Psicossocial), que cuida de doenças psiquiátricas.
Conforme disse o Ministério da Saúde ao Nexo, a pasta tem ampliado, desde 2023, a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) para melhorar o atendimento a pessoas com problemas de saúde mental, incluindo o jogo patológico. Segundo o ministério, foram habilitadas mais de 2.000 unidades do Caps, e o orçamento para a RAPS aumentou 27%.
Entrada de Centro de Atenção Psicossocial
Além disso, a pasta informou que a rede conta com pontos de Atenção Primária à Saúde, com as equipes de Saúde da Família, que podem direcionar o atendimento, e que a pasta participa de um Grupo de Trabalho Interministerial junto com o Ministério da Fazenda com o objetivo de tratar o jogo patológico.
Na avaliação do psicólogo Maycon Torres, o Estado brasileiro vai precisar organizar seus sistemas de assistência para que as pessoas dependentes procurem ajuda.
“Pensar em uma abordagem intersetorial, considerando dispositivos da assistência social junto com os Caps, postos de saúde e clínica da família será de grande ajuda para uma intervenção mais ampla, de trazer as pessoas para enfrentarem o problema”
Maycon Torres
Psicólogo e professor da UFF
Ambulatórios especializados ligados à universidades públicas são outro meio de atendimento para dependentes em jogos, além da rede privada. O médico psiquiatra é o responsável pelo diagnóstico e pela condução do tratamento, que inclui o uso de medicamentos e de psicoterapia, realizada por um psicólogo.
Faz parte do protocolo frequentar grupos de apoio, como o Jogadores Anônimos, que realizam reuniões remotas e gratuitas. “O fato de estar com outras pessoas que compartilham as experiências ajuda na adesão ao tratamento e apresenta resultados muito bons”, disse Torres.
Segundo o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, pessoas dependentes de jogos geralmente buscam tratamento quando já houve muita perda econômica e quando uma parte substancial do patrimônio da família foi comprometida. “[A pessoa] reluta, pois acha que está no controle”, disse.
Decisões coercitivas fazem parte do processo de desintoxicação, de acordo com Laranjeira: não ter acesso a dinheiro e cartão de crédito é uma das medidas, além de estimular outras fontes de lazer. “O jogo afeta não só o sujeito, mas toda a família, os filhos, por causa do caráter compulsivo. E aí a família precisa se engajar nessas decisões coercitivas. Senão, a pessoa dependente vai continuar jogando e perdendo patrimônio familiar”, afirmou o médico.
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