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A homeopatia é uma prática pseudocientífica muito difundida no mundo, inclusive com o apoio de entidades que deveriam prezar pela boa ciência e boas práticas médicas, mas frequentemente não o fazem , como o Conselho Federal de Medicina. Apesar de ser amplamente comprovado que não funciona para além do efeito placebo , no Brasil, a prática ainda recebe financiamento público, fazendo parte do SUS, lamentavelmente.
Para quem entende um pouco sobre estrutura de moléculas e dos nossos corpos, é bastante claro que não há mecanismo em que a prática possa funcionar, pois os medicamentos homeopáticos são preparados usando diluições tão grandes que o produto final não contém mais nenhuma molécula da substância inicialmente diluída, permanecendo somente água. A homeopatia se baseia na ideia esdrúxula de que as moléculas de água de alguma forma “lembram” do que estava diluído nelas, e assim possuem propriedades distintas depois de purificadas deste composto. Este é um conceito absurdo, pois água, uma molécula, não tem a complexidade de organização de um cérebro, que possui milhões de células cujas atividades diferentes e interconexões produzem memórias. Mais absurdo ainda é achar que a água possui memória seletiva, lembrando apenas o que foi diluído nela para se produzir terapias homeopáticas, e não que esta mesma água já foi esgoto ou sangue de barata. Ainda bem que a água não tem memória!
Mas o fato de a água ser uma molécula simples e sem memória não a faz desinteressante. Muito pelo contrário: é uma molécula com várias propriedades muito importantes, que a tornam essencial para a vida. É composta de um átomo de oxigênio (que é maior) e dois de hidrogênio. Por causa de suas propriedades físico-químicas, os átomos de hidrogênio ficam de um lado predominante da molécula, como se fossem as orelhas no rosto (representado pelo oxigênio) do desenho do Mickey. Do outro lado da molécula se localizam predominantemente seus elétrons, dando à água uma polaridade, com um lado mais positivo e outro mais negativo.
Essa polaridade é essencial para o funcionamento das nossas células, pois permite que a água interaja bem com a enormidade de moléculas que as nossas células abrigam no seu interior. A água, correspondendo a mais de 70% de nossos corpos, é o solvente dessas moléculas, possibilitando que elas se difundam e atuem pelas células. Mas a água não dissolve qualquer coisa. Por conta de sua polaridade, interage mal com moléculas que não tem carga ou polaridade, como os lipídeos (óleos e gorduras). Ao se separar destes componentes celulares, a falta de água em compartimentos lipídicos os faz bons para armazenar energia (na forma de gorduras) ou separar células e partes das células do resto do corpo ou ambiente, através de membranas. A composição de nossas células é toda determinada pelo modo com que essas moléculas interagem com a nossa molécula mais abundante, a água.
A maneira com que moléculas de água interagem entre si mesmas também é decisiva para nosso mundo. Por causa da polaridade da água, interações entre suas moléculas e seu formato tipo Mickey, a água expande em volume quando congela, ao contrário da maioria das moléculas, que em estado sólido são mais densas que quando líquidas. Imagine como seria a Terra se gelo não flutuasse: a água que cobre a maior parte da superfície do nosso planeta, quando congelada, desceria para o fundo dos oceanos e lagos, onde não seria mais aquecida pelo sol. A grande maioria dela permaneceria na forma de gelo. Não existiriam as fontes hidrotermais no fundo do oceano onde, ao que toda a melhor ciência atual indica, surgiram as primeiras reações químicas e aglomerações de moléculas que deram origem à vida.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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