Coluna

Alicia Kowaltowski

O fígado e o prêmio Nobel, ao longo da história

07 de outubro de 2020

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Desde a década de 1940, grandes descobertas sobre esse fascinante órgão humano foram reconhecidas pela Academia Sueca

Entre 5 e 12 de outubro de 2020 são anunciados os prêmios Nobel, uma emocionante celebração da ciência com um selo de qualidade tão inquestionável que o mundo todo se junta às festividades. As comemorações já se iniciaram muito bem na segunda-feira (5), com o anúncio do prêmio em fisiologia ou medicina para cientistas que identificaram o vírus que causa a hepatite C . O trabalho dos pesquisadores Charles M. Rice, Harvey J. Alter e Michael Houghton identificou uma causa de danos ao fígado que não era associada à hepatite tipo A ou B, mas leva a lesões graves, de modo transmitido por transfusões de sangue. Ao encontrar o vírus responsável, eles puderam estabelecer modos de detectar sua presença em bancos de sangue e prevenir lesões aos fígados de pessoas que recebem transfusões. Essas lesões incluem cirrose (uma espécie de cicatrização com perda de atividade normal das células), perda da função do fígado e desenvolvimento de câncer.

O fígado, sem dúvidas, é uma parte do corpo cuja proteção é meritória de Nobel. Trata-se do órgão que centraliza a maior quantidade de processos metabólicos – ou seja, de transformações de moléculas – no nosso corpo. Quando acabamos de comer, e temos glicose (açúcar) abundante circulante, o fígado é o principal órgão que armazena essa glicose, construindo moléculas de glicogênio, uma espécie de caderneta de poupança de açúcares, necessários para uso posterior. O mecanismo de formação dessas moléculas de glicogênio foi descrito por Gerty e Carl Cori, que foram agraciados com o Nobel em 1947 pela descoberta.

O fígado também é responsável pela transformação de aminoácidos vindos de proteínas em outros tipos de moléculas, retirando nitrogênio desses aminoácidos e formando moléculas de ureia. Essa ureia é depois eliminada na urina, dando a ela sua cor e cheiro característicos. O processo de formação de ureia foi desvendado por Hans Krebs, outro laureado com Nobel em 1953, e que também desvendou o famoso ciclo de Krebs (ou ciclo do ácido cítrico), uma via central metabólica que congrega a degradação de carboidratos, proteínas e gorduras em vários órgãos, incluindo, é claro, o fígado.

O fígado adicionalmente participa muito ativamente do metabolismo de lipídeos e colesterol, estudados por Konrad Bloch e Feodor Lynen, laureados com Nobel em 1964. As transformações de carboidratos e aminoácidos em gorduras envolvem a formação de uma molécula chamada acetil coenzima A (nós, bioquímicos, adoramos nomes complicados…), cuja identificação foi reconhecida com o Nobel a Fritz Lipmann em 1953, junto com Hans Krebs. Embora as pessoas de modo geral associem gorduras e colesterol a más condições de saúde, nada poderia ser mais longe da verdade. Ter quantidades normais de gorduras em nossos corpos é essencial como reserva de energia e para controlar os nossos níveis de açúcar circulantes: animais de laboratório criados para não ter como estocar gorduras são diabéticos. Além disso, colesterol é uma molécula essencial para a manutenção das nossas células. É apenas o excesso de gorduras e colesterol, comum em dietas contemporâneas, que é pouco saudável.

Um dos motivos pelos quais a ingestão de altas quantidades de gorduras é pouco saudável é devido aos seus efeitos no fígado. Sabemos que, além de ser promovidas por vírus, lesões do fígado podem ser causadas pela ingestão excessiva de gorduras, que leva a esteatose (fígado gorduroso), que pode evoluir para cirrose e câncer. Um interesse grande atual do Laboratório de Metabolismo Energético da Universidade de São Paulo, que eu lidero, é entender mecanismos pelos quais a dieta leva a lesões do fígado, e esperamos ter em breve resultados novos e interessantes sobre como gorduras no fígado regulam o metabolismo de açúcares. Também estudamos atualmente como o fígado recicla e renova seus componentes através de autofagia, processo cuja descrição rendeu Nobel a Yoshinori Ohsumi em 2016.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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