Coluna
Lilia Schwarcz
Literatura em tempos de pandemia: quando a realidade imita a ficção
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Muitas vezes a realidade copia a ficção, e não contrário. Este é o caso do famoso conto “O Alienista” (1881), de Machado de Assis. A descrição do médico, que internou a todos na cidade (incluindo a mulher), e depois internou a si próprio, tudo em nome da ciência, antecede em alguns anos os estudos de Raimundo Nina Rodrigues, médico que nasceu no Maranhão, mas ficou conhecido como fundador da Escola Médica da Bahia. Em suas obras, o alienista de Salvador procurava demonstrar como os casos de alienação e de criminalidade eram provenientes da mestiçagem e do que chamava ser “degeneração”. Por isso, em seu livro “As Raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil”, publicado postumamente em 1938, ele propunha a exclusão desses indivíduos do convívio social. Mas atenção: a obra de Machado antecede em alguns anos a de Rodrigues. Portanto, a literatura, nesse caso, não se comporta como “produto” de sua época. Na verdade, ajuda a “produzir” a realidade que pretende apenas copiar.
E nesses tempos de coronavírus, nunca a literatura foi tão necessária! Com um livro na mão, nunca se está, de fato, “isolado”. Um livro também permite viajar, mesmo sem ter que enfrentar aeroportos e aviões superlotados.
Vários autores, veículos e jornais têm feito listas de livros cuja associação com o momento que estamos passando é quase imediata. Com o perigo de me repetir, vou fazer aqui a minha relação de obras e da minha maneira.
O livro “A Peste”, de Albert Camus, cuja primeira edição data de 1947, virou best-seller em 2020 e no mundo todo. A história se passa na década de 40, em torno da pequena cidade litorânea de Oran, localizada na Argélia, e que é atingida por uma terrível epidemia que vai dizimando a população. Na época, a trama do romance foi associada à ocupação nazista da França, durante a Segunda Guerra Mundial: o nazismo era a própria peste. Camus, um existencialista de carteirinha, também discute valores caros à modernidade: a morte, a solidão e os gestos (necessários) de solidariedade em momentos de crise. “A estupidez insiste sempre”, é uma frase conhecida desse romance, que mostra como, mesmo com tantas conquistas, teimosamente “insistimos” em voltar atrás. Em tempos de “estupidez contagiosa” do nosso presidente, nada mais atual.
Um segundo livro, muito lembrado nesse nosso contexto nervoso, é “Ensaio sobre a cegueira”, do escritor português José Saramago. Publicado pela primeira vez em 1995, o livro conta a história de uma epidemia que se espalhou por uma cidade, atacando as pessoas contaminadas com a doença da cegueira. Tratava-se de uma cegueira branca, que não escolhia gênero ou raça, com os casos envolvendo médicos, ladrões, famílias inteiras ou indivíduos isolados, idosos, crianças, prostitutas e até cachorros. As pessoas e animais contaminados eram colocados em quarentena, num antigo manicômio, com o escritor – que ganhou o Prêmio Nobel três anos depois da publicação do livro – retratando de forma brutal, e sem dar possibilidade de respiro ao leitor como uma série de comportamentos precedentes se exacerbavam, para o bem e para o mal, nesse ambiente recluso. A metáfora da doença é clara: respostas mesquinhas, mas também solidárias, são reações comuns nessa cegueira branca, que não tem origem biológica e muito menos representa castigo divino – como, aliás, alguns líderes de cultos evangélicos brasileiros têm falsamente alegado sobre o coronavírus. Há uma alusão direta à nossa sociedade, que tem gerado muita alienação e consumo descontrolado. Como diz o ditado, citado por José Saramago na obra, “o pior cego é aquele que não quer ver”.
Lilia Schwarczé professora da USP e global scholar em Princeton. É autora, entre outros, de “O espetáculo das raças”, “As barbas do imperador”, “Brasil: uma biografia”, "Lima Barreto, triste visionário”, “Dicionário da escravidão e liberdade”, com Flavio Gomes, e “Sobre o autoritarismo brasileiro”. Foi curadora de uma série de exposições dentre as quais: “Um olhar sobre o Brasil”, “Histórias Mestiças”, “Histórias da sexualidade” e “Histórias afro-atlânticas". Atualmente é curadora adjunta do Masp para histórias.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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