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Foi publicado em 9 de fevereiro deste ano um estudo sobre o consumo de ovos na saúde populacional. O trabalho é muito robusto: acompanhou mais de meio milhão de norte-americanos acima de 50 anos de idade durante 15 anos de suas vidas, coletando dados sobre sua alimentação, doenças e mortes. Os resultados demonstram que pessoas que consumiam o equivalente a dois ou mais ovos inteiros diariamente tinham chances significativamente maiores de morrer por várias causas, incluindo por doenças cardiovasculares, câncer e diabetes.O estudo também sugere que esse aumento de mortes está relacionado ao consumo de colesterol de outras fontes. Além disso, o uso de substituições na dieta que diminuem a quantidade de colesterol, como comer apenas as claras dos ovos ou usar preparados industrializados de componentes de ovos sem colesterol, protegeria contra a morte elevada. Os autores do trabalho concluem que limitar a ingestão de colesterol e ovos pode aumentar a nossa saúde e sobrevida.
O que é colesterol, e por que ele constantemente vai e volta nas discussões sobre alimentação saudável? Trata-se de uma molécula presente em vários dos nossos alimentos, que faz parte do grupo dos lipídios, substâncias que se misturam mal com água. Não é uma molécula “má”, que causa danos. Pelo contrário: é muito importante para manter a estrutura e função das membranas que separam as nossas células entre si e também separam os diferentes ambientes dentro das células. É justamente por estar concentrado nas membranas, que eliminar a gema do ovo diminui o colesterol: a maior parte está naquela “pelinha” que separa a clara da gema. Outra maneira de evitar a ingestão dessa molécula é diminuir o consumo de produtos animais. Só animais têm colesterol. Vegetais não possuem essa molécula, e portanto não é resultado da bondade industrial que um pote de margarina ou óleo de milho leva a inscrição de que o produto não contém colesterol. A empresa não precisou tirá-lo de lá, porque nunca houve colesterol na planta de onde veio o óleo ou margarina.
Quando fazemos exames laboratoriais, é comum dosar no nosso sangue dois tipos de moléculas: LDL (da sigla em inglês “low density lipoprotein”) e HDL (“high density lipoprotein”). O LDL é popularmente conhecido como o “colesterol ruim”, enquanto HDL é conhecido como o “colesterol bom”. Esses termos populares não são muito precisos, porque na realidade a molécula de colesterol é a mesma. Por ser pouco solúvel em água, o colesterol é transportado no sangue junto com outros lipídeos e proteínas, nas chamadas lipoproteínas de transporte. Esses conglomerados de moléculas são quantificados no nosso sangue porque indicam o suprimento versus a demanda de colesterol no corpo. Alto LDL significa que se está suprindo mais do que está sendo usado pelas células, enquanto alto HDL indica que o colesterol produzido está sendo usado, sem excessos. São os excessos de colesterol que são preocupantes, pois pode se acumular nos nossos vasos junto com outras moléculas, ser modificado e atrair inflamação para o local, de modo a produzir obstruções que levam a infartos e derrames, por exemplo
Nosso colesterol não vem primariamente da nossa alimentação — se viesse, uma dieta vegana seria destrutiva, pois não possui essa molécula importante. Colesterol é produzido pelas nossas células, em especial no nosso fígado, de onde é exportado para outras partes do corpo. Em pessoas sem doenças do metabolismo de colesterol, com dietas usuais, cerca de dois terços do colesterol presente no corpo é produzido, enquanto o terço restante vem da alimentação. Essa produção de colesterol nos nossos corpos é regulada, de modo que em pessoas com grande quantidade de colesterol na alimentação, a produção no corpo tende a diminuir. Por outro lado, em pessoas com baixo colesterol na alimentação há um aumento compensatório da produção pelo corpo, suprindo as necessidades. Por isso, a não ser em casos extremos, intervenções dietéticas focadas apenas em limitar a ingestão de colesterol podem ter pouco impacto sobre seu LDL ou HDL. De fato, há também forte componente genético regulando os níveis desses transportadores.
Mas se a quantidade de colesterol que ingerimos regula a quantidade que produzimos, por que um trabalho tão abrangente, que acompanhou tantas pessoas, mostra claramente que ingerir mais ovos e colesterol está associado a mais mortes? Primeiro, temos que levar em consideração que o trabalho é observacional: não tentou achar motivos para os achados, nem interferiu na dieta das pessoas. Apenas viu o que comiam e relatou as mortes nos diferentes grupos, achando correlações. Certamente há mais diferenças entre as pessoas que comiam mais ovos e as pessoas que comiam menos ovos, incluindo renda familiar, outras características de alimentação, atividade física etc. O estudo procurou eliminar essas diferenças por métodos estatísticos, mas esses só eliminam parâmetros que eles podem medir, e não outros, que não foram investigados. Há também que se notar que o estudo foi feito exclusivamente com norte-americanos, e que há uma diferença bastante grande na alimentação destes em relação ao restante do mundo, particularmente quando se olha para a quantidade de ovos e outros alimentos ricos em colesterol, como carnes vermelhas e embutidos.
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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