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Há cerca de um ano, publiquei uma coluna em que discuto o fato de que não há base científica para a crença popular de que produtos naturais são saudáveis. Moléculas naturais são muito variadas, e nem sempre melhores ou piores que moléculas sintéticas. Portanto, não há motivo para dar privilégio a produtos “natureba”. Usei como exemplo o cultivo de alimentos orgânicos e a suposição de que possuem efeitos benéficos, sem que haja embasamento científico para isso. Em resposta, recebi uma inundação de mensagens, polarizadas entre admiração e indignação. A coluna certamente despertou discussão! Notei com interesse que a indignação veio principalmente de impressões errôneas sobre o que são alimentos orgânicos, o que me leva a discutir um pouco mais sobre eles.
Vamos começar pelo que os alimentos orgânicos não são. Embora muitos os associem com pequenos agricultores, alimentos orgânicos não são sinônimos de agricultura familiar. Existem pequenos agricultores com práticas agrícolas convencionais, assim como existem grandes empresas que vendem seus produtos sob a lucrativa etiqueta “orgânica”. Tenho respeito pelos agricultores locais, e recomendo comprar diretamente destes pelo efeito social e ecológico de diminuição de transporte, mas isso não está relacionado com sua produção ser ou não da chamada agricultura orgânica.
Alimentos orgânicos também não são sinônimo de alimentação in natura, com alimentos frescos , conhecidamente mais saudável que alimentação rica em produtos processados. Alimentos processados tendem a não ser saudáveis porque frequentemente contêm altas quantidades de açúcar e gorduras, e não porque são processados industrialmente, afastando-os da origem natural. Existem inclusive alimentos altamente industrializados vendidos com o branding “orgânico”; basta passar em qualquer grande supermercado para encontrar exemplos.
Mas talvez o maior conceito errôneo sobre os alimentos orgânicos seja que são cultivados sem o uso de pesticidas. Pesticidas são usados na agricultura orgânica e convencional para evitar a proliferação de fungos, insetos e outras pragas naturais. De fato, a agricultura orgânica proíbe o uso de uma ferramenta que temos para diminuir a necessidade de pesticidas, os organismos geneticamente modificados. Um exemplo é o feijão resistente ao mosaico-dourado , produto fantástico da ciência brasileira que permite o cultivo do grão sem o uso de inseticidas para evitar a presença de moscas que espalham o vírus que causa essa doença em plantações. Ao proibir alimentos geneticamente modificados, como esse feijão, por preconceito e sem embasamento científico, a agricultura orgânica é excludente dos benefícios que essa ferramenta possibilita.
A agricultura orgânica de fato usa pesticidas, e limita os tipos de moléculas usadas contra pragas, não por sua toxicidade, mas por dar preferência a moléculas presentes na natureza. Alguns destes agentes são derivados de organismos vivos, como a piretrinas (de crisântemos). São moléculas que afastam insetos, mas bastante seguras para nós humanos, não por serem naturais, mas sim pelas suas propriedades moleculares. Derivados sintéticos de piretrinas usados na agricultura também são seguros, enquanto várias outras moléculas da natureza, como ricina, toxina botulínica e cocaína são bastante tóxicas. Novamente destaco que ser natural não tem nenhuma relação com a baixa toxicidade de uma molécula. O glifosato, um herbicida sintético, requer quantidades 1.000 vezes maiores do que a nicotina, molécula natural presente no tabaco (que protege a planta contra insetos), para atingir níveis tóxicos em humanos.
Interessantemente, vários dos pesticidas usados na agricultura orgânica não são sequer orgânicos na sua definição química (ou seja, moléculas que contém carbono), nem derivados de organismos vivos. Cobre e enxofre são frequentemente usados nesse tipo de agricultura, apesar de não conterem carbonos nas suas estruturas, sendo portanto compostos inorgânicos. Este fato, e a toxicidade e a persistência ambiental conhecida do cobre, parece causar desconforto na comunidade de cultivos orgânicos, pois tentaram retirar o uso dele das plantações orgânicas na Europa, mas acabaram tendo que reintroduzi-lo , devido a dificuldades de cultivo na sua ausência.
A agricultura orgânica também utiliza minerais como o calcário e o fosfato derivado de rochas como fertilizantes. Quando crescemos plantas na terra, elas extraem do solo componentes como fosfato, potássio e nitrogênio, que, se não repostos, vão faltar para o desenvolvimento de plantas futuras, limitando a produção. É por isso que a adubação é de vital importância na agricultura. A agricultura orgânica se vangloria de não usar “fertilizantes químicos”, mas todo fertilizante, seja este estrume animal, compostagem ou minerais purificados industrialmente, é químico, porque toda a matéria é química. A diferença entre fertilizantes da agricultura convencional e da orgânica é uma questão de concentração de componentes e eficácia destes. Os átomos que esses fertilizantes contêm são exatamente os mesmos, e agirão de maneira idêntica uma vez dentro da planta, independentemente do tipo de fertilizante do qual originaram: não existe uma “memória” atômica.
Ao desenvolver a agricultura e nutrição, deveríamos nos atentar a dados científicos sobre segurança alimentar, toxicidade, impacto ambiental e produtividade, e não ao foco central da agricultura orgânica, de quão naturais os produtos são. Interessantemente, aprendi com a coluna anterior que esta é uma realidade de muito difícil convencimento. Há, por motivos que ainda não entendo, uma crença instintiva muito forte e quase religiosa na bondade das moléculas naturais e maldade de moléculas sintéticas, por mais estudadas e seguras que sejam. E está aí uma nova ideia de projeto científico, gerado por mensagens de indignação em resposta a uma coluna: entender por que aquilo que é de origem natural é assumido ser saudável. Scientia vinces!
Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.
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