Coluna
João Marcelo Borges
Adversário incomum: sobre alhos, bugalhos, boiadas e o novo Ideb
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O MEC (Ministério da Educação) permanece como um dos principais teatros de operação da ‘guerra cultural’ deflagrada pelo presidente Jair Bolsonaro e seus aliados extremistas. Nas últimas semanas, geraram forte reação de jornalistas, educadores, ativistas e parlamentares algumas medidas referentes à reformulação do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica), bem como a prioridade dada pelo governo à regulamentação do homeschooling (educação domiciliar) em detrimento de temas mais urgentes e abrangentes requeridos pela enorme crise educacional gerada pela pandemia.
A preocupação manifestada por importantes atores do campo educacional do país é pertinente. Comentando esses e outros assuntos, por exemplo, Renata Cafardo, uma das principais jornalistas de educação do país, cravou no título de sua coluna: “ Passam a boiada no MEC ”. Alguns dos argumentos por ela utilizados foram posteriormente repetidos por Claudia Costin, para quem a desmobilização de um grupo técnico criado para oferecer recomendações à reformulação do Ideb e a transferência de suas atribuições para a Secretaria Executiva do Ministério poderiam “ destruir parte da muralha edificada por gerações anteriores ”.
Por sua vez, a deputada federal Tabata Amaral , uma das principais lideranças da bancada da educação no Congresso, criticando a dissolução do mesmo grupo de trabalho, entre outras ações e omissões do MEC, pediu a demissão do ministro Milton Ribeiro. No mesmo sentido, o jornal O Estado de São Paulo declarou estarmos vivendo o “desmonte do sistema educacional” , em editorial duro, enfraquecido apenas pois mistura análises superficiais sobre o que o diário chama de “método fônico” (a instrução fônica como etapa do processo de alfabetização é privilegiada no Reino Unido, na Austrália, em Portugal e, entre nós, no Ceará, estado que mais avançou na última década nesse indicador) com a equivocada afirmação de que eventual nova versão da Avaliação Nacional da Alfabetização serviria para compor o Ideb.
Começo dizendo que concordo com e partilho da preocupação e indignação das pessoas e organizações que citei anteriormente. De fato, há um processo em curso que visa o desmonte das políticas públicas no país, senão do próprio Estado como definido pela Constituição Federal promulgada em 1988. O presidente Bolsonaro expressou essa intenção em jantar com próceres da ultradireita na residência do embaixador do Brasil em Washington em 2019. Na oportunidade, disse que “ antes de construir é preciso desconstruir muita coisa ”.
Uso uma metáfora para tentar ilustrar nossa dificuldade para lidar com um governo com tamanha sanha destruidora. Se estivéssemos em jogo normal de futebol, estaríamos enfrentando um adversário que poderia jogar para vencer, empatar ou até perder por diferença mínima se isso fosse suficiente para se classificar ou vencer o campeonato. O atual governo é um adversário completamente diferente: enquanto estamos ocupados em não levar gols ou buscando fazer algum, o governo parece disposto a destruir o campo de jogo. Sem o campo de jogo, o placar é pouco relevante.
Por outro lado, enquanto esse campo ainda existe, cabe-nos aprender a lidar com o adversário. Nesse caso, um dos erros mais comuns é entender que o “governo” é um ente monolítico, que dentro dele não há agentes com visões distintas e esquecer que, no cotidiano dos órgãos públicos, convivem dirigentes passageiros (comissionados) com uma maioria de servidores estáveis (dentre os quais também há diferenças de visão, filiação ou preferência política etc.). Tomar a parte pelo todo também pode ser arriscado. No campo da disputa política, faz sentido não ver distinção entre o MEC e o governo, como corretamente fez Tabata Amaral em sua coluna.
De fato, há um desmonte do sistema educacional em curso e uma tentativa continuada de desconstruir o quadro institucional e de direitos consagrado na Carta Magna de 1988
Na seara da construção das políticas públicas, porém, essa sinédoque pode ser deletéria, pois dá visibilidade extremada a alguns temas negativos, enquanto menospreza ações e movimentos positivos. Por exemplo: não é prioridade do MEC a regulamentação do homeschooling. Trata-se de prioridade do Palácio do Planalto e do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, à qual Milton Ribeiro não se opõe, mas pela qual não vai trabalhar com afinco.
No âmbito do mesmo MEC, por incrível que possa parecer, formulou-se nesse período aquele que considero o programa mais bem desenhado no Ministério desde a gestão Haddad-Paim: o Programa Brasil na Escola , voltado ao segundo ciclo do ensino fundamental, e que será lançado nesta quarta-feira (31). Não estaríamos dando visibilidade exacerbada a alguns temas e desprezando outros? Enquanto homeschooling ganhou enorme atenção, pouca repercussão teve esse programa, concebido em diálogo com especialistas, gestores estaduais e municipais, orientado para o maior gargalo de nossa educação básica, que é o fundamental 2, e que propõe em seu modelo a execução em parcerias com atores sociais.
Voltemos ao Ideb. Sua reforma não é obrigatória apenas porque se encerra em 2021 o ciclo para o qual existem metas definidas. Ela também se impõe porque, depois de criado o índice, a Base Nacional Comum Curricular foi homologada pelo MEC, trazendo uma série de novas competências e habilidades que deverão ser consideradas nas avaliações das diferentes etapas da educação básica. Diferentemente do que afirma o Estadão em seu editorial, não entram no cálculo do atual Ideb os resultados da prova de alfabetização e não há nada na base curricular que exija isso. Por certo, o melhor caminho para reformular o Ideb é construir um processo do qual participem servidores públicos e especialistas, brasileiros e até estrangeiros.
Dito isso, não cabe e jamais coube ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) definir o que é qualidade (ou “desenvolvimento”) da educação básica ou estabelecer metas para o país. Essas são atribuições do MEC, definidas em lei. Concordo que deixar essa tarefa a cargo dos “políticos do MEC” é ruim, sobretudo porque os “políticos” do atual MEC pouco conhecem de educação pública, mas isso não seria ilegal e nem afrontaria o histórico nesse campo. Com efeito, isso ocorreu em 2018, quando o Inep divulgou os dados do Sistema de Avaliação da Educação Básica com escalas de proficiência completamente desconhecidas pela comunidade educacional, construídas pela Secretaria de Educação Básica do MEC. De novo, será que não exageramos nas tintas ao falar do grupo técnico e desprezamos os enormes desafios técnicos, institucionais e operacionais de um novo Ideb?
A mesma lógica se aplica ao Saeb, que agrupa, dentre outras, as avaliações que permitem calcular o atual Ideb. De um lado, ele precisará ser alterado porque a Emenda Constitucional 108 afirma que parte dos recursos do novo Fundeb (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) deverá ser distribuída com base em indicadores calculados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica , previsto no Plano Nacional de Educação, mas ainda inexistente. Com alarde, o MEC e o Inep anunciaram que o novo Saeb incluiria mais disciplinas, seria realizado anualmente e de forma censitária. Mas os servidores do Inep pouco participaram dessas decisões. Agora, começam a surgir dúvidas quanto à viabilidade desse anúncio, tanto pelas incertezas do quadro sanitário como pelas restrições orçamentárias.
Na verdade, é inviável e desnecessário realizar o Saeb como anunciado pelos então titulares do MEC e do Inep (a proposta de Exame Nacional do Ensino Médio seriado é ainda pior, mas sobre ela comentarei em outra coluna). Melhor seria trabalhar no sentido de uma cooperação técnica que começou a ser desenhada entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Inep em 2015, mas que foi descontinuada depois da mudança de gestão trazida pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef. Esse acordo consistia em dois componentes. O primeiro era voltado ao fortalecimento da capacidade institucional do Inep, por meio da qualificação de seus servidores, para que pudessem modernizar o Saeb, hoje composto por avaliações confiáveis, mas obsoletas (técnica e operacionalmente). O segundo auxiliaria na concepção de um novo Saeb em modelo federativo (nos objetivos, financiamento e aplicação), superando a realidade atual, em que alunos de alguns municípios chegam a ser submetidos a três avaliações externas em um mesmo ano (perdendo dias de aula), todos os entes gastam recursos para obter praticamente o mesmo fim e, pior, poucos sistemas de ensino conseguem aproveitar adequadamente os resultados dessas avaliações para reorientar suas políticas educacionais.
De fato, há um desmonte do sistema educacional em curso. Há, em verdade, uma tentativa continuada de desconstruir o quadro institucional e de direitos consagrado na Carta Magna de 1988. Por outro lado, existem também iniciativas de resistência e avanço dentro dessa gigantesca organização de organizações que é o governo federal. Para não descartarmos o bebê com a água do banho, como bem lembrou Costin na coluna que citei anteriormente, precisamos estar atentos aos diferentes atores e interesses em campo. Em outras palavras, precisamos tanto de política como de economia política. Críticas que não fizeram essa distinção contribuíram, por exemplo, para a exoneração da secretária de Educação Básica do MEC que, além de se ver numa situação pessoal dramática, também se viu fragilizada por ser incluída no mesmo balaio em que se encontram os “olavistas” que hoje habitam o MEC, como precisamente retratou Paulo Saldaña em excelente matéria recente. Nesse jogo com um adversário incomum, creio que precisaremos aprender outras jogadas, pois elas também podem ajudar a preservar o campo.
João Marcelo Borgesé pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Gestão Pública e Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas. Foi diretor de Estratégia Política do Todos Pela Educação (2018-2020), Consultor Sênior e Especialista em Educação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2011-2018), além de ter ocupado cargos de direção no governo do estado de São Paulo e de gerência no Ministério do Planejamento. Idealizador e cofundador do Movimento Colabora Educação, é mestre em economia política internacional, pela London School of Economics, onde estudou como bolsista Chevening, do governo do Reino Unido.
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