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Alicia Kowaltowski

Quando médicos se tornam monstros abomináveis

21 de abril de 2021

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Os profissionais de saúde negacionistas não seriam um problema nacional se não encontrassem apoio nas instituições que, por natureza, deveriam ser as primeiras a coibi-los

Na semana passada, vivi momentos de notícias contrastantes sobre médicos brasileiros. Por um lado, li o belíssimo trabalho do grupo da professora Ester Sabino (Universidade de São Paulo) sobre a origem, disseminação e características da variante P.1 da Sars-CoV-2, popularmente conhecida como a variante de Manaus. O trabalho cuidadoso mereceu publicação em uma das revistas científicas mais conceituadas do mundo, a Science, e reflete a enorme qualidade de pesquisa de importância internacional que grupos brasileiros são capazes de produzir.

No lado oposto do espectro veio à luz a chocante história dos médicos Michelle Chechter e Gustavo Maximiliano Dutra, que administraram cloroquina nebulizada a pacientes com covid-19 em Manaus, num suposto trabalho de pesquisa clínica, sem que houvesse nenhum protocolo ético para tal realização. Como se não bastasse o fato de que estavam praticando testes em humanos sem autorização, o faziam sem nenhum embasamento científico. Sabe-se que a cloroquina não possui efeito algum contra a covid, e também não há nenhuma doença que seja tratada com cloroquina por via inalatória. Os médicos que fizeram tal “tratamento” se utilizaram de comprimidos orais de cloroquina que foram pulverizados para depois serem diluídos em líquido de inalação. Esse ato fere a todas as normas farmacêuticas, porque comprimidos contém componentes como talcos e farinhas, para dar forma e permitir serem engolidos. Componentes de comprimidos, portanto, nunca devem ser inalados, e podem causar lesões graves ao serem administrados dessa forma. O fato de tal procedimento ter acontecido e ainda ter sido divulgado em mídias sociais com orgulho pelos praticantes é inacreditável, uma verdadeira monstruosidade.

No seu clássico livro “Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde” (traduzido para o português como “O Médico e o Monstro”), Robert Louis Stevenson explorou justamente a dualidade de um personagem médico que, para todas as aparências públicas, parecia boa pessoa, mas que privadamente era capaz de monstruosidades abomináveis. Embora fosse um retrato da sociedade vitoriana, essa dualidade da imagem pública versus privada encontra enormes paralelismos com a sociedade atual, em que pessoas aspiram a imagem pública de perfeição e santidade em mídias sociais, apesar de cometer desvios éticos de imensa gravidade.

O casal de Manaus, infelizmente, não está agindo de forma isolada nas suas atitudes duais de médicos/monstros. Vejo alguns colegas de profissão ainda inexplicavelmente tentando diminuir a importância da situação epidemiológica e ao mesmo tempo acobertar as barbáries das lideranças políticas em relação à pandemia. Continuam defendendo tratamentos com drogas potencialmente perigosas que comprovadamente não funcionam. Postam estatísticas de número de mortes no Brasil normalizadas pela população em comparação com outros países, para tentar justificar que a situação não é tão ruim como é noticiada. Paradoxalmente, preferem colocar dados de vacinação em números absolutos, pois nessa apresentação a numerosa população brasileira ajuda a mascarar a lentidão do processo, causada pela falta de aquisição de vacinas. Tenho dificuldade de entender como essas pessoas, mesmo que sejam um grupo minoritário, conseguem defender tais posições absurdas, apesar de inteligentes e com alto grau de instrução. A explicação para isso parece ser o bolsonarismo absolutista, uma religião que, como todo extremismo, remove a razão e causa cegueira para evidências.

Os médicos individuais com essas atitudes de Mr. Hyde não seriam um problema nacional se não encontrassem apoio nas instituições que, por natureza, deveriam ser as primeiras a coibi-los. A grande ameaça à prática médica nacional no momento vem da infiltração da religião bolsonarista na liderança do CFM (Conselho Federal de Medicina), órgão cujo objetivo é zelar pelo desempenho ético dos médicos, incluindo fiscalizar, julgar e disciplinar más práticas. Seria de se esperar de tal órgão que coordenasse ações para informar médicos nacionais sobre protocolos atualizados de tratamentos da doença, que organizasse painéis de discussão dos últimos dados científicos e epidemiológicos e que fiscalizasse o uso ilegal de drogas sem indicação. Nada disso é feito pelo CFM, que em vez disso prefere tentar se esconder, com a falsa benevolência de Dr. Jekyll, e repetidamente falar em “autonomia do médico”, afirmando que quem deve determinar o tratamento é o paciente em conjunto com o profissional. Se isso de fato é verdade, e médicos sabem fazer todas as determinações sem instituições nacionais para norteá-los, pergunto: para que serve o CFM, se não para recolher a substancial taxa anual obrigatória para a prática médica?

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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