Coluna

Alicia Kowaltowski

A incrível estupidez de se destruir a educação pública

02 de junho de 2021

Temas

Compartilhe

A infraestrutura básica de ensino sempre foi negligenciada, mas agora chegou a última cartada contra a educação brasileira: tentar desmantelar a educação pública de nível superior

Faço parte de uma geração de brasileiros que viveu sem ter conhecido governantes que verdadeiramente investiram no ensino fundamental e médio. Assistimos ao lançamento de alguns programas pontuais, populistas e com slogans bonitos, falando em rediscussão curricular, ou ideias modernas copiadas do primeiro mundo, mas sem ações efetivas ou consistentes. Vimos muita discussão sobre cotas e outras formas de melhorar a distribuição do acesso ao ensino superior, mas poucas sobre como resolver o problema que leva às diferenças demonstradas no ingresso na universidade. Nunca vimos investimento verdadeiro e ações de longo prazo focados na valorização de professores e infraestrutura básica de ensino. O resultado é que o Brasil, consistentemente, é pessimamente classificado em sua educação básica, quando avaliado internacionalmente.

Essa situação só piorou com a pandemia. O Brasil faz parte de um grupo de países em que níveis de infecção pelo novo coronavírus se mantiveram altos por mais de um ano, e governantes preferiram manter shoppings, restaurantes, igrejas e bares abertos a garantir condições mínimas para que se possa ter educação básica presencial. O resultado é que o Brasil, que já tinha mais de um milhão de crianças em idade escolar obrigatória fora da escola em 2019 , passou a ter mais de 5 milhões de crianças fora da escola ou sem atividades escolares em novembro de 2020, correspondente a 13,9% de todos os estudantes desta faixa.

Essa situação isoladamente já seria de extrema preocupação, mas precisamos acrescentar a ela o fato conhecido de que mesmo as crianças com algum tipo de atividade escolar tiveram este acesso muito precarizado. A maioria não tem computadores, internet estável ou ajuda de familiares para a realização de atividades a distância. Para piorar, um estudo na Holanda demonstrou que crianças em idade escolar aprendem muito pouco com o ensino virtual (que no caso holandês durou apenas oito semanas), mesmo com uma das melhores condições sociais e de ensino no mundo presentes naquele país. A perda de aprendizado das crianças brasileiras é, consequentemente, incalculável, e só entenderemos os resultados desta no decorrer dos próximos anos.

Mas a última cartada contra a educação brasileira, produto de ações concertadas do atual governo federal, é uma verdadeira estupidez: tentar destruir a educação pública de nível superior. O ensino público superior brasileiro sempre foi reconhecido como sendo o de maior qualidade nacional. Nossas universidades públicas são as mais bem classificadas em ranqueamentos internacionais. Procuramos por profissionais formados nas universidades públicas quando queremos alguém para atender a nossa família, por saber de sua qualidade. As nossas escolas privadas exibem com orgulho os seus estudantes aprovados nessas mesmas universidades públicas, pois sabem que a conquista dessas vagas é difícil e prestigiosa. Além disso, essas universidades são responsáveis pela maioria da produção científica nacional.

A despeito disso, o governo federal parece decidido a destruir o único nível de ensino público no país que tem qualidade. Em épocas pré-pandemia, já ouvimos absurdos, como acusações de que as nossas universidades tinham plantações extensas de maconha ou eram frequentadas por estudantes “peladões” . Com o decorrer da crise sanitária, a situação só piorou. Cientistas e especialistas das universidades públicas brasileiras se desdobraram para desenvolver soluções e informar a população com base no melhor conhecimento disponível, mas se viram desprezados, quando não perseguidos diretamente, pelo governo federal.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas