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Atila Roque

Em busca da esperança: voltar a sonhar o Brasil

29 de junho de 2021

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Sou de uma geração que cresceu ouvindo que o futuro seria inevitavelmente melhor. Por um breve momento parecia que era verdade

Passamos por um período, no Brasil, em que temos a sensação de estarmos prisioneiros do agora, do momento presente, quando tudo parece tão ruim, como uma maldição do tempo. O retrocesso autoritário, aliado ao desastre humanitário trazido pela pandemia da covid, esvazia a nossa energia e enche nossos dias de tristeza. Um contexto muito desfavorável à resistência política. Um sentimento de derrota que a transição para a democracia, percorrida nas últimas décadas, aparentemente, não nos preparou para viver.

Para usar uma personagem sombria tirada das aventuras de Harry Potter, vivemos no Brasil sob o ataque de “dementadores”, figuras que saem das sombras para absorver e destruir toda a alegria e a beleza que possuímos, deixando-nos sem energia, tomados apenas por sentimentos lúgubres que nos matam aos poucos. A única saída para escapar do sopro mortal dos dementadores, aprendemos com Harry, é resgatar “lembranças felizes”. Talvez seja esse o caminho, resgatar em nosso percurso histórico – e também nas experiências presentes e projeções futuras – a beleza possível nas utopias de igualdade e justiça. Precisamos voltar a sonhar com o Brasil.

Sou de uma geração que cresceu ouvindo que o futuro seria inevitavelmente melhor. Por um breve momento parecia que era verdade. Pelo menos parecia ser o caso no que se refere ao progresso democrático e ao avanço da igualdade.

Aos trancos e barrancos saímos da ditadura e começamos a forjar uma democracia que apontava para uma ruptura gradual com o patrimonialismo escravista, clientelista, autoritário, profundamente racista e violento.

Mesmo com suas imperfeições, a Constituição de 1988, fortemente ancorada em um ideário de direitos fundamentais e na valorização da participação cidadã ofereceu um caminho para reformas sociais, políticas e econômicas que, se implementadas, impactariam fortemente as estruturas do poder no Brasil. Vivemos a ilusão de que isso bastaria; deixamos intocados, no aguardo da melhor oportunidade, alguns dos pilares mantenedores de nossas desigualdades, como o latifúndio e a concentração escandalosa da riqueza.

Também não fizemos o necessário acerto de contas com os crimes cometidos pelo Estado. A democracia não puniu os agentes militares e civis, responsáveis por graves violações de direitos humanos durante a repressão a oponentes ao regime ditatorial de 1964. A própria memória e a história desse período ficou restrita, em grande medida, ao cuidado de especialistas acadêmicos e de organizações de direitos humanos, sem um devido reconhecimento por parte do Estado dos crimes cometidos em seu nome. A instalação tardia de uma Comissão da Verdade, ainda que necessária e fundamental para o registro histórico, não teve consequências do ponto de vista do reconhecimento das violações cometidas pela ditadura.

Todos os governos democráticos pós-ditadura falharam gravemente ao não encarar de frente o papel dos militares. A incapacidade de pensar e reconhecer os erros do passado faz com que uma parte significativa das Forças Armadas se mantenha fiel à ideia de que possa, a qualquer momento, ser convocada a proteger o Brasil de um inimigo interno. Isso se agravou com o apelo aos militares para cumprir tarefas típicas de segurança pública, como as sucessivas operações de Garantia da Lei e da Ordem, onde se estreitaram as relações entre militares e forças de segurança estaduais. Uma circunstância que acentuou o princípio da guerra e da militarização da política de segurança, com consequências tremendas para as populações das favelas e periferias, em particular os jovens negros, sujeitos a um verdadeiro genocídio.

A ascensão do bolsonarismo, com a insurgência de um movimento radical de direita e a crescente militarização do governo, propicia que essas correntes subterrâneas explodam na superfície como uma erupção, ameaçando arrastar a tênue camada de democracia que começa a florescer. Um movimento que ganha corpo através da mobilização de paixões violentas, do ódio à diferença e do messianismo fundamentalista.

Seremos capazes de repactuar uma nova transição para a democracia que seja capaz de disputar as paixões e medos mobilizados pelo bolsonarismo?

Para além dos retrocessos legais e institucionais promovidos com feroz velocidade (o passar da boiada, nos dizeres de um ex-ministro), deparamo-nos com a expansão de uma “incivilidade ativa” que degrada o espaço cívico e interdita o diálogo democrático. Encontramos sinais abundantes dessa incivilidade nos ataques que se repetem nas redes sociais, em especial contra as mulheres, e nos episódios de violência cada vez mais brutais contra a população LGBTI. O que temos de pior como sociedade é conjurado.

Para focar em um horizonte de esperança é preciso não apenas resgatar “os momentos felizes do passado e do presente”, mas também projetar o que pode representar a felicidade coletiva futura, a agenda positiva portadora de um futuro de igualdade. Tão importante quanto não ficarmos prisioneiros no redemoinho do agora – a nos puxar cada vez mais para o fundo do poço do medo, da violência e do racismo – é identificar quem são os atores coletivos capazes de nos levar para o futuro.

Seremos capazes de repactuar uma nova transição para a democracia que seja capaz de disputar as paixões e medos mobilizados pelo bolsonarismo? Quem são os portadores da esperança?

O fim possível (mas não inevitável) do regime de morte em que nos encontramos se equipara a momentos de pós-guerras e grandes desastres naturais. Vai deixar muita destruição, perdas incalculáveis em vidas e sonhos interrompidos, uma memória de dor e frustrações com as quais precisaremos lidar. Mas também de novas formas de lutas e o reconhecimento de atores sociais que precisam ocupar o protagonismo e a liderança na construção do futuro. Penso especialmente nas juventudes negras e periféricas, nas mulheres negras que enfrentam cotidianamente contextos de violência que atingem seus corpos e os de seus filhos, das populações indígenas e quilombolas que foram as primeiras, mais uma vez, a se colocarem na frente de luta contra a expropriação privada de recursos naturais e a destruição do meio ambiente.

Estamos diante de um grande desafio político que requer capacidade de luta e organização, mas sobretudo, uma enorme capacidade de imaginação na construção de comunidades políticas mais diversas e alinhadas com um futuro que ainda não conhecemos. Um desafio que requer abrir espaço para as novas gerações de profissionais, políticos e cientistas, disponibilizar postos de lideranças para os mais novos, especialmente mulheres, negros e indígenas, portadores de mudanças forjadas pela força que demonstram em sobreviver. Esse é o caminho para o reencontro com a esperança.

Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

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