Coluna

Alicia Kowaltowski

O problema da educação médica é básico

28 de julho de 2021

Temas

Compartilhe

É impossível um profissional da saúde hoje atuar bem sem saber nem ser cobrado pela atualização de seus conhecimentos

Ministrei por muitos anos aulas de bioquímica para estudantes de medicina da USP (Universidade de São Paulo). Os estudantes são invariavelmente excelentes, resultado de um processo altamente seletivo de ingresso. Mas invariavelmente também havia dificuldade de convencê-los da importância da disciplina que eu ministrava, considerada por eles “básica” demais. Havia uma ansiedade por adentrar logo em disciplinas da prática médica, mesmo estando no primeiro semestre da universidade. Minha impressão é que essa dificuldade não vinha originalmente destes estudantes ingressantes: jovens que têm sucesso nos processos muito seletivos de entrada na universidade costumam gostar de estudar e adquirir conhecimento. No entanto, nos dias iniciais de aulas eram influenciados por alunos mais avançados e alguns profissionais médicos, depreciando sua percepção da importância de nossa disciplina “básica”.

Parece estranho profissionais médicos e estudantes mais avançados diminuírem a importância de se aprender bioquímica, disciplina que ensina a estrutura e transformações das moléculas que compõem um ser humano, e que é, portanto, a base para todo entendimento de como nossos corpos funcionam. De fato, cansei de ouvir elogios à disciplina vindos de estudantes no final da desta, questionando o motivo pelo qual teriam sido avisados de que era irrelevante. A verdade é que há muitos profissionais médicos que não compreendem as bases da medicina, e com isso acreditam que é possível e até desejável para médicos não aprender essas bases, e sim se concentrar no aprendizado técnico da prática médica. Há técnicos médicos querendo propagar a formação tecnicista na medicina.

Essa falta de conhecimento básico se mostrou muito aparente durante a pandemia de covid-19. Profissionais com bons fundamentos de ciências básicas, como bioquímica, biologia molecular, fisiologia e farmacologia, entendem que medicamentos contra parasitas, como cloroquina e ivermectina, possuem muito pouca chance de funcionar contra uma doença viral, por mais que se torça para um improvável achado de que tenham benefício. A improbabilidade se deve ao fato de não haver mecanismo molecular para que funcionem, e os parasitas afetados por esses medicamentos serem muito mais semelhantes a nós, humanos, que ao vírus Sars-CoV-2. Médicos que aprenderam as bases da medicina reconhecem isso e também são capazes de compreender com mais facilidade os processos científicos pelos quais se desenvolvem e testam novas terapias.

Se é difícil exigir as bases essenciais da boa formação médica na USP, imagino que seja mais complexo ainda nas faculdades de menor tradição. Nesse sentido, o Brasil tem em mãos um problema grave, pois triplicou o número de faculdades de medicina nas últimas duas décadas , sendo a grande maioria destas instituições particulares, com interesses financeiros, e não centrados na qualidade da formação profissional. Além dessa desenfreada criação de novas faculdades de medicina no passado recente, no Brasil a prática médica não é atrelada a aprovação em testes de conhecimento. Enquanto médicos formados no exterior precisam (corretamente) demonstrar que possuem conhecimentos através do Revalida, para médicos formados no Brasil, o Conselho Federal de Medicina exige apenas o pagamento da taxa de sua anuidade. O resultado, assustador, é que temos muito pouco controle de qualidade sobre a educação médica no país.

Em seu conto “Profession” (Profissão), Isaac Asimov, um bioquímico que se tornou escritor, fala sobre um futuro distópico em que se aprendeu a programar cérebros humanos instantaneamente através de interface com computadores, colocando nas pessoas aos18 anos todas as informações necessárias para atuação profissional em um “Dia da Educação” unificado. Após receber todas as informações para sua atuação profissional em uma única transferência de dados, os novos profissionais formados competiam em “Olimpíadas Profissionais”, e aos melhores eram então oferecidos empregos mais desejáveis. Nessa situação fictícia, imagine a decepção do protagonista da história ao ser informado que não poderia receber sua formação através da interação computacional, e seria capaz apenas de aprender aos poucos, por conta própria. Apenas após a observação das limitações dos colegas formados, que possuem conhecimento estático determinado pelo pacote educacional recebido, o protagonista percebe que saber se educar é uma vantagem, e que ele fará parte da pequena minoria de profissionais que irá gerar os programas e pacotes de conhecimento usados no “Dia da Educação”. É preciso saber se educar para poder acompanhar as mudanças profissionais no tempo.

Alicia Kowaltowskié médica formada pela Unicamp, com doutorado em ciências médicas. Atua como cientista na área de Metabolismo Energético. É professora titular do Departamento de Bioquímica, Instituto de Química da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo. É autora de mais de 150 artigos científicos especializados, além do livro de divulgação Científica “O que é Metabolismo: como nossos corpos transformam o que comemos no que somos”. Escreve quinzenalmente às quintas-feiras.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões do Nexo.

Navegue por temas