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O mundo real no Brasil sempre esteve muito distante da narrativa dominante do país alegre do carnaval e do futebol, da democracia racial, da cordialidade hospitaleira e das promessas de futuro. Só não via quem não queria ou deixava se encantar pelos próprios privilégios refletidos no espelho narcísico da branquitude. A operação de ocultação do país real é de grande complexidade e requer um processo permanente de desumanização do outro. O racismo e a violência sempre foram parte central dessa operação.
Esse outro dissonante da imagem embranquecida desse país do futuro, resquício de sonhos coloniais, precisa ser expropriado da sua condição humana. São pessoas que não podem ser vistas como gente, precisam ser tratadas pior do que bicho, somente assim nós conseguimos suportar a visão cotidiana do seu sofrimento, na busca desesperada pelos meios de sobrevivência, diante de nossos olhos, à céu aberto. Seus corpos são invisíveis, mesmo quando esbarram com os nossos. Somos programados para ignorar a humanidade desses corpos negros, indígenas, e de todos aqueles que Franz Fanon chamou de “condenados da terra”.
Na semana que celebramos o dia dos mortos vale refletir sobre o quanto o luto é seletivo, triste e reprimido. O quanto muitas de nossas dores são obrigadas a se conterem no silêncio para não atrapalhar a celebração das vidas reconhecidas (e choradas) como vidas de valor. A morte reforça nossas desigualdades e escancara nosso racismo. Ao contrário do senso comum, a morte não iguala o que o processo histórico fez desigual.
Em muitas culturas, como no México, o dia dos mortos é celebrado com alegria e festa nas ruas. Em outras, como no Japão, é um dia de visitas e reencontros entre os vivos e os mortos. Em algumas culturas indígenas brasileiras a morte é pranteada durante muitos dias pela comunidade inteira, uma espécie de apropriação espiritual de toda a experiência contida naquela vida, boas e ruins, sem distinção. O ritual funerário consiste em uma lenta absorção dos corpos pela terra até que, por fim, seus restos sejam queimados, distribuídos pela comunidade, digeridos e esquecidos em sua individualidade humana, para voltarem a fazer parte da integridade da natureza.
O luto é seletivo, triste e reprimido. Muitas de nossas dores são obrigadas ao silêncio para não atrapalhar a celebração das vidas reconhecidas (e choradas) como vidas de valor
Penso no episódio recente das duas crianças yanomâmis que foram sugadas, no Dia das Crianças, por uma draga mineradora que atuava ilegalmente em seus territórios. O ritual funerário durou dias, ainda que tenha passado praticamente invisível para o restante da sociedade brasileira. O relato da jornalista Carla Rocha , no jornal O Globo, é de partir o coração. Não podia ser mais simbólico da tragédia que nos envolve e da indiferença geral com as vidas descartáveis. Duas crianças sugadas e cuspidas de volta para o rio como se fosse dejetos, material inaproveitável, sem valor, na busca ilegal do ouro. Tudo isso às vésperas da COP26, onde de maneira espetacular, a voz das lideranças indígenas, em particular dos jovens, reivindicam o direito de continuarmos vivos. Com seu exemplo de luta e renovação mostram que é possível resistir à extinção, sobreviver ao genocídio.
O número de indígenas assassinados no Brasil em 2020 foi o mais alto em 25 anos. Segundo relatório divulgado recentemente pelo Cimi (Conselho Missionário Indigenista) , ocorreram 182 assassinatos, um recorde desde que o levantamento começou a ser divulgado, em 1995. Na comparação com 2019, quando contabilizaram 113 assassinatos, a alta foi de 61%. A morte é uma das muitas maneiras da violência atingir os povos indígenas. O descaso do Estado diante da pandemia, o desmonte das instituições responsáveis pela garantia de seus direitos constitucionais, a cumplicidade com as invasões de suas terras por grileiros, garimpeiros, madeireiros, entre outros interesses econômicos, compõem um quadro devastador.
A morte violenta não é privilégio dos povos indígenas. No coração de nossas cidades crianças e adolescentes são assassinadas em uma escala que não merece outro nome senão o de genocídio, um processo que atinge principalmente a juventude negra e periférica. Relatório divulgado conjuntamente, no mês de outubro, pelo Unicef e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública , aponta que em cinco anos o Brasil teve um total de 34.918 crianças e adolescentes assassinados, uma média de quase 7.000 crimes por ano, entre 2016 e 2020. Isso representa 88% do total de “mortes violentas intencionais”, sendo que 75% eram negros.
O impacto da presença cada vez mais facilitada das armas de fogo se revela nos números apurados na pesquisa do Unicef e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2020, segundo o estudo, 68% das mortes com vítimas de 10 a 14 anos foram praticadas por arma de fogo, 19% por armas brancas e 3% por agressão. No caso de vítimas de 15 a 19 anos, em 85% dos casos as mortes ocorreram com o emprego de armas de fogo e 10%, com armas brancas.
A atitude diante da morte, ou melhor, diante dos mortos, diz muito sobre os vivos. Somos um país construído sobre camadas e camadas de mortes invisibilizadas, não pranteadas, vidas perdidas que não merecem fazer parte da memória e do luto coletivos. Basta pensar que até hoje não temos um museu da escravidão, apesar do Brasil ter sido o porto de chegada de quase metade (46%) do total de pessoas escravizadas sequestradas do continente africano e trazidas para as Américas. São vidas perdidas que são choradas, muitas vezes, apenas pelas mães e irmãs, em desafio corajoso à violência que continua a espreitar as suas vidas. Não por acaso a luta por justiça para as vítimas da violência policial é quase sempre protagonizada por mulheres, mães e familiares que insistem em transformar o luto em luta.
No momento em que paramos para lembrar e celebrar os mortos que nos pertencem, nesse ano marcado pela pandemia de covid, tanto luto reprimido, convém acolher as vozes das mulheres negras, das lideranças indígenas e de todas as vítimas que insistem em não serem silenciadas. É preciso gritar por todos, não apenas pelos nossos, ou seremos cúmplices desse silêncio ensurdecedor.
Atila Roqueé historiador, cientista político e diretor da Fundação Ford no Brasil. Exerceu papel de liderança em diferentes organizações da sociedade civil no Brasil e no exterior. Foi diretor-executivo da ActionAid International nos EUA e do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos). Antes de assumir a Fundação Ford, em 2017, foi diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. Faz parte do Conselho Diretor do GIFE (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas).
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